Clemente Rosas

Christ's Appearance to Mary Magdalene after the Resurrection – by Alexander Ivanov (1806 - 1858).

Christ’s Appearance to Mary Magdalene after the Resurrection – by Alexander Ivanov (1806 – 1858).

Comecemos por lembrar que a concepção do homem como um ser dual – constituído de corpo e de alma – vem dos gregos antigos, cujo pensamento é matriz, até hoje, da filosofia e da cultura ocidentais.  A partir dessa concepção é que surgiram as criações mentais de profetas e líderes religiosos – cristãos e espíritas – relativas às almas: imortalidade, julgamento (com o prêmio do céu ou o castigo do inferno), reencarnação e mediunidade.  O objetivo deste texto é submeter à razão crítica essas ideias.

Camões, em belo soneto à eterna amada Catarina, prematuramente morta, roga-lhe: “Se lá no assento etéreo onde subiste / Memória desta vida se consente / Não te esqueças daquele amor ardente / Que já nos olhos meus tão puro viste”.  É sobre essa dúvida em relação à permanência, numa “outra vida”, de memória desta – ponto omisso na doutrina cristã – que queremos fazer a primeira reflexão.

E o que observamos?  Em caso positivo, as almas bem-aventuradas não estariam livres para desfrutar a “eterna beatitude” merecida.  Sofreriam com a lembrança de seus entes queridos, com a preocupação com o destino dos pósteros, e, na hipótese de ciência dos fatos correntes, com o desconforto de não poder interferir nas suas desventuras.  Em caso negativo, desapareceria o sentido do julgamento: as almas condenadas não saberiam por que estariam padecendo no inferno, nem as limpas de pecado, a razão do seu prêmio celestial. Teriam todas novas individualidades, recebendo benesses ou penas sem consciência de qualquer justiça, ou de eventual misericórdia.

Outra questão delicada surge quando procuramos compatibilizar o destino das almas após a morte com os dogmas do “juízo final” e da “ressurreição da carne”, que constam, inclusive, da principal oração dos católicos.  Desde o momento em que, muito depois de Cristo, as autoridades eclesiais estabeleceram que tal destino seria consumado logo após o falecimento dos fiéis, pelo simples motivo prático de que um julgamento tão remoto teria pouca influência nas opções humanas entre a virtude e o pecado, o problema aflora: então o “juízo final” seria apenas homologatório?  E enfim, cumpridas as sinas de todos os espíritos, por que haveriam de ressurgir os corpos?

Nos casos da reencarnação e da mediunidade, criações do espiritismo, a situação é ainda mais embaraçosa.  Se os espíritos reencarnados não têm consciência de sua vida corporal passada – e, neste caso, é provado que não têm – o sentido de compensação de sofrimentos vividos, ou de expiação de antigas culpas, desaparece.  E aqueles que invadem os corpos dos médiuns, ou ficam rondando os seres de carne e osso, tentando interferir em seus problemas, cumprem uma tarefa que nem sempre pode ser entendida como nobre.  Por que motivo?  Em relação a quem?  Com que finalidade?  Por quanto tempo?  Tudo ficaria ao arbítrio individual do próprio espírito vagante?

A crença na imortalidade das almas só traz problemas a quem exercita a razão.  E, como dizia Sócrates, “para onde a razão nos levar, como uma brisa, para aí é que devemos seguir”.  Se se deseja algum consolo final para as agruras da vida terrena, melhor contar com um grande repouso, um sono profundo, sem sonhos e sem prazo para o despertar.  A ideia de uma alma imortal pode ser tão inquietadora quanto a de um corpo imortal.  E neste último caso, a dimensão da tragédia já foi bem demonstrada por Simone de Beauvoir, ao explorar a lenda medieval do Conde Fosca, o homem que não conseguia morrer, sendo condenado ao sofrimento interminável de ver a decadência e a morte de todos os seus entes queridos.

Só o extraordinário desenvolvimento e a sofisticação do cérebro humano podem explicar essa orgulhosa obstinação do homem em negar a sua própria contingência e a sua própria efemeridade.  Pois a verdade é que haveremos de passar, enquanto indivíduos, como tudo o que é vivo no universo.  Resta-nos a alegria da descendência, que propagará a nossa espécie, e até mesmo o consolo da dissolução corporal, que nos devolverá ao seio da mãe-natura.  Estaremos voltando à “pátria da homogeneidade”, na feliz expressão poética de Augusto dos Anjos.