Teresa Sales
16 de janeiro de 2016

Estamos à caminho de Alagoa, a cidade mais próxima de Nogueira (o bairro rural onde moramos), para comprar queijo, mel e vinho. A velha Toyota desce a serra firme e decidida, traçada nas quatro rodas, com seu passo lento e seguro para enfrentar a lama escorregadia das chuvas de verão. De repente, não mais estrada vermelha nem pastos verdes e viçosos.  Era mais uma enchente do rio Airuoca.

Na véspera, presenciáramos uma cena rara: as encostas das estradas de terra jorravam água barrenta, tal pequenas cachoeiras. A água atravessava sem cerimônia a estrada na direção de riachos e rios. Já em casa, no silêncio da noite, maior que a chuva era o barulho das águas descendo a Serra da Mantiqueira.

Os índios habitantes dessas terras altas diziam que as águas nascidas nessa cordilheira eram lágrimas de uma indiazinha que se apaixonou pelo sol. Este desceu à terra para desposá-la e não mais se fez noite. O cacique mandou matar a indiazinha, o sol voltou ao seu curso normal e ela se transformou nas pedras da Mantiqueira, que até hoje choram. De quebra, são nascentes de águas que abastecem cidades de Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo.

Nem vinho nem queijo nem mel e nem uma comidinha mineira à base de carne de porco e couve refogada com alho como só aqui sabem fazer. Improvisamos um almoço em casa e brindamos à nossa primeira enchente juntos. O agrião da horta estava tenro e me levou ao Dinho’s Place da Alameda Santos em São Paulo. Fiz quase igual, temperada a salada com cebola amolecida em água quente, para tirar a acidez, e servida no molho à base de mostarda francesa. Sebastião preparou uma farofa enriquecida com muitas misturas e com o sabor da farinha de mandioca trazida do Mercado de Boa Viagem. Nas terras mineiras não se faz farinha igual à nossa.

Depois de um almoço sem pressa, voltamos para ver o nível das águas da enchente. A chuva cessara e fora substituída por um vento forte de encher os ouvidos e a vista com o balançar das árvores. Apenas as Araucárias, com a imponência de palmeiras imperiais, permaneciam impassíveis e arrogantes no meio dos pastos de braquiária. Bom augúrio. O vento estaria levando a chuva embora.

Na volta pra casa, passamos na venda. É lá que se sabe de tudo. E por lá ficamos num final de tarde ainda sombrio mas já estiado, a apreciar a imensidão das águas, num belo espetáculo regido pela deusa Oxum. Tão longe de meu Agreste, vivi junto com os mineiros dessa terra abençoada pelas águas, a alegria da chuva no tempo certo. Onde ficar ilhado é um tributo pequeno demais em face da fartura de pastos e roçados.

Compartilhamos uma meiota com os que lá bebiam. (A branquinha cai no meu gosto melhor que o escocês cor de xixi.) A boa cachaça local, pura. O queijo parmesão de tira-gosto, um tipo faixa azul menos curtido, mais molhadinho, também produção local. E um paieiro (fumo de rolo enrolado em palha de milho) para acompanhar. Sentados no batente da venda do Zé, ou “Bar e Mercearia Nogueira” (não escrito na entrada, por desnecessário), ficamos a apreciar o rio cheio de água barrenta a se espraiar por fora de seu leito.