Teresa Sales

O Faia Casa de Fado, Lisboa.

O Faia Casa de Fado, Lisboa.

20 de setembro de 2013

Numa segunda feira do final de agosto de 2013, cheguei a Lisboa pelo meio da manhã, depois de uma noite mal dormida em voo da TAP. A conexão para Paris, destino de minha viagem, seria apenas no comecinho da noite. Estava munida de jornal local, livro, tablet, tudo o que se precisa para passar o tempo no mais característico e pioneiro dos não-lugares – um aeroporto. A princípio não quis me sentar, mas esticar as pernas perambulando pela nova área do aeroporto que não conhecia de outras viagens.

Tudo muito bonito, piso dos mais modernos porcelanatos, espaço bem iluminado. Porém sem perder a sensação que marca esses espaços do não lugar, tal como caracterizado na literatura da pós-modernidade: da impessoalidade, pelas mesmas cadeias de lojas, os mesmos símbolos, a multidão de pessoas ou grupos tão próximos e ao mesmo tempo tão isolados.

Fui caminhando sem pressa. Entrei numa loja tax free para comprar chocolate e depois numa loja de produtos portugueses variados, onde parei numa pequena estante de livros. Livros, quase todos, de autores locais, em português ou traduzidos para outros idiomas. Faltava uma poltrona confortável para que eu pudesse folhear uma nova safra de ficcionistas que eu não conhecia. Apostei em Inês Pedrosa, que, até metade do livro Nas tuas mãos, fez-me boa companhia ali e depois, nos momentos de descanso dos exaustivos passeios por Paris e Marseille. A aposta na portuguesa perdeu feio, contudo, para meu outro companheiro de viagem que foi comigo no avião, Dostoiévski em Memórias do Sub-Solo.

A hora do almoço, lá, se aproximava. Cedo para meu estômago, com quatro horas a menos. Fiz a primeira concessão ao fuso horário e retardei o quanto pude, percorrendo os lugares onde comer. Havia as alternativas multinacionalizadas de costume, bem ao estilo dos não lugares.

Até que o final do corredor reservou-me uma surpresa. Fui percorrendo o cardápio em fila de self-service. Seria uma ofensa chamar aquilo com esse apelido gringo. Eram bandejas grandes de aço inoxidável, cada uma contendo um prato da culinária portuguesa. Sem concessão.

De repente, como naqueles filmes em que o ator sai de um tempo e espaço para outro, apenas entrando numa máquina ou ultrapassando um muro, de repente eu saí do não lugar e entrei numa daquelas ruas estreitas da velha Lisboa, numa taberna com mesas de madeira, toalha branca e um fado tocando ao fundo. Era na verdade um simulacro disso na aparência estética e na falta do garçom. Mas o fado e a comida, de primeira.

O restaurante era amplo, com postes para a iluminação imitando um espaço externo ao aeroporto. Percorri a exposição das comidas duas vezes. A primeira, para apreciar tudo. Depois, fiquei por ali como se estivesse procurando um número no celular, mas estava era observando o movimento, o que os portugueses escolhiam para comer. Sim, porque durante o tempo em que fiquei observando, depois pedindo os pratos e finalmente sentada na mesa comendo, vi que todos os comensais ao meu redor eram portugueses. Os outros certamente estavam nas cadeias de restaurantes do não lugar.

Eu disse pedindo os pratos e não me servindo. Era isso mesmo. Havia duas portuguesas com jeito de acabadas de chegar de Trás os Montes (com seus aventais e seu linguajar carregado) por trás de um balcão alto, envidraçado, dentro do qual estavam as bandejas aquecidas. As portuguesas, qual num bufê de festa, nos serviam o prato escolhido. Fui num bacalhau à Lagageiro: uma boa fatia de bacalhau alto ao forno, acompanhado de azeitonas pretas, cebolas, muito azeite de olívar e batatas ao murro, (14,95 euros). Meia garrafa de Monte Velho (7,95 euros), uma garrafinha de água mineral (1,95 euros) e um pastel de nata de sobremesa (1,75 euros). Não comeria melhor num restaurante do Bairro Alto.

Devido à hora, os comensais rareavam e deu para um dedo de prosa com as portuguesas que serviam e o português do caixa. Das comidas ao pastel de nata, tudo é preparado lá mesmo. Deram-me essa informação com um quê de orgulho, cônscios da boa comida que estavam servindo. E eu, cá com meus botões, pensei: a solidez de uma cultura por séculos (nesse caso, nos seus costumes alimentares e na sua música), foi capaz de fazer esse enclave acolhedor no espaço frio e homogêneos do não lugar.

Mas os portugueses são os portugueses e, para não fugir à regra de trazer algum exemplo da sua lógica de raciocínio com exatidões e detalhes que tanto nos surpreendem que parecem piadas, encerro essa crônica no mesmo aeroporto, embarcando de volta ao Brasil. O tempo de espera, quando se aproxima a hora do embarque, deixa-nos atentos aos avisos. Foi aí que percebi a piada: “atenção senhores passageiros do vôo tal de Portugal com destino a tal lugar. Dirijam-se ao portão tal, etc”. A primeira vez que ouvi achei estranho e pensei que tinha sido um ato falho do aviso. Mas se repetiu tantas vezes que concluí ser aquilo mesmo. Em qualquer dos aeroportos por onde passei, diz-se apenas o lugar de destino, por suposto sabermos todos onde estamos. Lá não. Anuncia-se a origem e o destino de cada vôo, para não restar dúvida, não somente para onde estamos indo, mas também de onde estamos partindo.

Ah, meu querido Portugal! Pioneiro nas grandes navegações que outrora descobriram e exploraram tantas terras! És hoje a porta de entrada de muitos para a Europa. Mas ainda precisas, com teu complexo de metrópole, reafirmar que mais uma vez Portugal parte para o mundo!