José Arlindo Soares*

Repressão militar contra manisfetantes em defesa da democracia - 1964

Repressão militar contra manisfetantes em defesa da democracia – 1964

O presente artigo procura explicar por que, ao optar pela luta armada ou por uma alternativa insurreicionista para combater a ditadura, parte expressiva da oposição se isolou da sociedade e transformou a política em uma visão altruísta ou de imolação, na contramão do que pensava a grande maioria da sociedade.  Nessa mesma direção, a manutenção do conceito de um Estado Socialista de natureza soviética fazia aprofundar tal disfunção entre a militância de esquerda e o que estava acontecendo de fato na sociedade.  O sociólogo Daniel Aarão Reis, com o título muito sugestivo “A Revolução faltou ao encontro”, retrata esse desencontro de forma instigante. O processo de modernização capitalista caminhava na direção de uma sociedade democrática, com anseios de liberdade, direitos sociais e padrão de vida que não podiam ser encontrados nas revoluções coloniais da África, mesmo que o ideário anti-imperialista tivesse forte apelo entre a juventude e em parte da população.

Uma máxima popular que pode ser aplicada ao caso brasileiro desse tipo de combate à ditadura é que atirou no que viu e, felizmente, acertou no que não viu. Buscou-se um objetivo socialista e se chegou a outro que não estava nos manuais de boa parte da esquerda marxista.  Questões que iam embalar o sentimento da classe média e mesmo da classe operária, como democracia, direitos humanos, qualidade de vida, liberdade de expressão, ou seja, os ideários da chamada democracia social/parlamentar, mantinham  profundas contradições com a Ditadura Militar modernizante. No entanto, não se enquadravam no ideário socialista ou nacional popular de uma ditadura do proletariado, que historicamente negava a maioria desses conceitos.

É importante destacar que a forma de resistência assumida por parte da esquerda não tem relação direta com a montagem da repressão com base na tortura – assassinatos e prisões ilegais contra diversos setores da sociedade – que ocorreram durante a ditadura. Essas ações não tiveram relação direta com a participação ou apoio às chamadas ações armadas, tais como os casos exemplares de Rubens Paiva, Herzog, Padre Henrique e o atentado ao Rio Center. Estas foram ações engendradas pelo chamado “sistema“ e não podem ser atribuídas a qualquer relação com o combate aos grupos armados. Aqui no Recife, tem-se o caso emblemático do Padre Henrique e o atentado ao estudante Cândido Pinto. O grau de repressão estava mais ligado às relações de forças no campo das Forças Armadas e grupos civis de direta, do que com a tática política da oposição, embora algumas ações armadas possam ter fortalecido determinados setores no aparelho de Estado na luta interna entre facões do sistema.

Para uma compreensão mais abrangente do que considero ser a natureza da resistência à ditadura no Brasil, creio que é importante entender o fenômeno em suas diferentes fases .

A Primeira, o desencadeamento do Golpe, quando não correu qualquer reação ostensiva à ação dos militares. As greves prometidas não ocorreram e nem qualquer dispositivo de defesa do Governo funcionou.  Nessa fase ocorreram cassações de líderes históricos da esquerda, como  Miguel Arraes, Leonel Brizola, Seixas Doria, Carlos Prestes, Francisco Julião, Josué de Castro e dezenas de outros. As primeiras cassações tiveram como pretexto “limpar o campo político “  para  dá  prosseguimento ao “jogo democrático”.

Na verdade, o bloco militar não tinha ainda uma unidade de como proceder no governo com todas as suas consequências.  Tanto é que, inicialmente , os partidos  foram mantidos  e um ano depois forma realizadas  eleições para governadores em alguns estados. Da mesma forma, foi mantido o arcabouço jurídico da Constituição de 1946. Com a permanência do Habeas Corpus, por exemplo, Miguel Arraes foi solto por efeito desse instrumento jurídico.   Logo depois, sentido o peso da derrota no Rio de Janeiro e em Minas Gerais nas eleições estaduais, foi decretado o Ato Institucional n.2, que dava ao Presidente da República o poder de governar por decreto, estabelecendo eleições indiretas para presidente e governadores, o  que provocou a decepção de algumas  lideranças civis ligadas à direita.

Nessa primeira fase, a resistência foi muito limitada, muito mais moral e política, em razão da prisão dos líderes sindicais e também porque as organizações populares ficaram sem ação, uma vez que estavam acostumados a dependerem do Estado para organizar seus planos de lutas. Tanto que a greve geral decretada contra o golpe não teve nenhuma eficácia. Conta-se ainda nessa primeira fase algumas escaramuças voluntaristas, como a organizada pro Leonel Brizola na Serra do Caparaó.

A forma que assumiu a pálida resistência da primeira fase, marcou definitivamente a nova geração que se seguiu na resistência a ditadura . Na segunda fase, a legitimidade do Governo Militar começou a ser abalada na classe média , no segmento estudantil  e até  entre setores do  empresariado, em função da  grande recessão de 1964/68. Por outro lado, o discurso do resgate democrático do Regime  mostrava  sua verdadeira  face, com as cassações e a censura à imprensa.   Esses fatores ativam o movimento estudantil, com bandeiras de luta específicas, mas, também, com palavras de ordem anti-imperialistas.  Os Partidos de esquerda e os estudantes procuraram o MDB, a Igreja, e até mesmo setores despolitizados da  população,  para fortalecer o enfrentamento ao  governo nas ruas.

Pode-se dizer que foi a fase de ouro da resistência, colocando milhares de pessoas nas ruas e deixando a ditadura  em dificuldades momentâneas de agir. Esta passou a fazer o jogo de reprimir e recuar. Em razão das insistentes denúncias de violação dos direitos humanos, uma parte da cúpula da Igreja passou a advertir e criticar o governo. Da mesma forma, alguns setores empresariais passaram  a questionar os métodos da ditadura, como foi o caso  do Jornal  Correio  da Manhã, ainda em 1964 e depois ; e o jornal O Estado de São Paulo,  que passou   a sofrer censura sistemática.

Na fase seguinte, no período da chamada Luta Armada (1969/1973), o crescimento econômico de País atingiu uma média de 9.3% a.a., com o pico de 12,5 e chegando quase ao pleno emprego. Mesmo com o arrocho salarial, o governo aumenta nesse período a sua base de apoio popular, o que lhe dá a segurança necessária para implantar o sistema repressivo que passa a funcionar quase completamente autônomo  em relação ao próprio governo militar.

Somente em 1974 a legitimidade do regime volta a ser fortemente abalada, com as eleições parlamentares que dão ao MDB uma vitória retumbante, fenômeno para o qual, como diz Elio Gáspari, nem o próprio partido oposicionista estava preparado. Tanto que, com quatro ou cinco exceções, colocou quadros inexpressivos para concorrer, fato que deu à vitória uma projeção de menor qualidade  para o futuro do partido. Mesmo assim, o que ficou das eleições de 1974 foi o início da desconstrução do regime militar, conforme retratou na época a imprensa em todo o mundo.

Desde então, com o desbaratamento e o aniquilamento da resistência armada e mesmo do conjunto da esquerda, os liberais, autênticos e moderados, vão pressionar mais pela volta à democracia.  Uma particularidade nesse processo de abertura é entender como a geração da luta armada ou da esquerda insurreicionista  capitalizou a sua experiência na nova fase da democratização do país, ou seja, como as velhas concepções entram na nova vida política do país.

O ponto de inflexão dessa última fase, que parecia correr por fora do sistema, foi o surgimento do novo sindicalismo e a volta das mobilizações populares, com a campanha das Diretas Já.  Na segunda metade de 1970 emergem inúmeras organizações de base da sociedade civil, que se apoderam de conceitos como: democracia ampliada ou semidireta, participação social, combate à corrupção, controle social, descentralização política e liberdade de expressão. Uma agenda muito diferente da anterior ao movimento militar de 1964 e também nada semelhante ao velho socialismo real.

Do ponto de vista sindical, a social-democracia europeia influenciou fortemente as mudanças no padrão de organização do chamado novo sindicalismo brasileiro, incentivando um novo modelo nas negociações de trabalho e a pressão direta sobre a matriz das empresas que mantinham filiais no Brasil.

Parecia que estava prestes a se quebrar a velha estrutura sindical brasileira. Daniel Aaraão levanta a questão de como compreender o aparecimento do novo sindicalismo em tão antiquadas organizações.  A história mostra que tal estrutura surgiu em outra ditadura – O  Estado Novo –, mantém-se no período democrático (1946/1964), permanecendo  em uma outra ditadura (1964/1985).  De forma paradoxal, o modelo de sindicalismo estatal se amplia numa fase de democracia ampliada, com um governo que se diz de esquerda, quando Lula ampliou a destinação do imposto sindical para dá sustentação burocrática às diferentes Centrais Sindicais.

Quando saí da prisão em meados dos anos de 1970, deparei-me com novas forças se movimentando em nosso país: o retorno da frente de massas com o novo sindicalismo; a campanha das Diretas Já; o pluripartidarismo; o engajamento da antiga esquerda socialista nessa frente de massas; um maior desembaraço das bases da Igreja na divulgação de reformas sociais por dentro da democracia. Comecei então a compreender que havia vida inteligente fora do dos partidos clandestinos. Um Brasil plural com instituições avançadas, ainda que cheias de defeitos.

Finalmente, um país que parece ter entendido que as velhas dicotomias não mais pertencem às gerações atuais. Em outras palavras, o resultado alcançado, mesmo com suas falhas, foi melhor do que sonho puro de futuro que embalou o nosso ideário juvenil.  Rezemos para que seja assim e que as gerações futuras nos livrem dos males ainda existentes.

*Sociólogo.