Clemente Rosas

Por certo, a opinião mais corrente é a de que a religião é benéfica aos homens, na medida em que prega a caridade, a temperança e a compaixão. E também, como tantas vezes ouvi de meus familiares, por constituir um freio aos nossos impulsos de violência e de sexo, condenáveis aos olhos de Deus. Mas reconheçamos que este segundo entendimento tinha curso mais fácil há meio século, quando só se admitia o amor físico após legitimado pelo padre e pelo juiz.
Hoje, quando o tabu da virgindade das moças já não existe, e estamos livres da pena perpétua do casamento indissolúvel, é chegado o tempo de desmistificar supostas virtudes como a castidade, além de demonstrar que, apesar de sua pregação de paz, as religiões têm servido também à guerra, à escravidão, à tortura e ao massacre de inocentes. Qual, enfim, o seu contributo para a humanidade? Um bem ou um mal?
É preciso ressalvar, de pronto, os casos exemplares das vidas inteiramente dedicadas ao serviço dos “próximos”, e até das imolações, ao serviço de Deus. Entre tantos santos e beatos que reverenciamos, destaco, apenas como exemplo, o caso do padre polonês, canonizado por João Paulo II, que, na 2ª Guerra Mundial, ofereceu-se para morrer em lugar de outro prisioneiro, pai de família, que lamentava o destino a ele imposto pelos nazistas. Mas cumpre-nos levantar “o manto diáfano da fantasia”, para expor “a nudez forte da verdade”: os extermínios das Cruzadas, as fogueiras da Inquisição, o beneplácito à escravatura dos nativos do Novo Mundo, como também as “jihads”, as “fatwas” e os massacres indiscriminados de “infiéis” pelos fundamentalistas islâmicos. A religião tem sido, e continua sendo, o substrato de tudo isso. Retire-se, por exemplo, o componente religioso do interminável conflito árabe-israelense, e o seu principal combustível desaparecerá, abrindo-se a porta para a tão sonhada coexistência pacífica.
Valendo-me da observação cínica, mas infelizmente verdadeira, de Stálin, de que a morte de milhões é apenas uma estatística, enquanto a de um indivíduo isolado pode ser vista como uma tragédia, reporto dois casos emblemáticos de fanatismo religioso. Quando os espanhóis invadiram o Peru, com os canhões e os cavalos que tanto aterrorizaram os incas, o chefe destes, Atahualpa, foi ao seu encontro, pacificamente, cercado de nobres e de numerosa guarda de honra. Um padre maluco ofereceu-lhe uma bíblia, para que a beijasse. Sem entender nada, o imperador jogou ao chão aquele “presente” indigno. Foi o bastante para que toda a comitiva fosse trucidada, sem resistência, como um rebanho de carneiros, e Atahualpa arrancado da sua liteira, preso, e depois condenado à morte. Batizado com o nome de “Juan”, para não ter o destino da morte na fogueira, foi executado, como bom cristão, pelo “garrote vil”, método hispânico ainda mais cruel do que a forca.
O outro caso é o do menino italiano Edgardo Mortara. Em 1858, esse garoto de seis anos, que havia sido batizado, sem o conhecimento dos pais judeus, por uma babá de 14 anos, católica e analfabeta, foi sequestrado pela guarda do Vaticano, e nunca mais devolvido, apesar dos apelos da família e da indignação da comunidade internacional. Para que, uma vez batizado, não fosse criado por judeus, pecadores irremissíveis, o Papa o educou no Catolicismo e o fez frade, pela glória de um Deus exclusivo dos cristãos.
Pode-se argumentar que, nestes casos, trata-se de fanatismo religioso, condenável também pelos verdadeiros crentes. Mas a lógica nos ensina que temos aí uma relação entre gênero e espécie. Se não houvesse religião, poderia haver fanatismo religioso? Sublata causa, tollitur effectus.
Na verdade, e voltando ao tema por onde começamos, o grande mal causado à humanidade pela religião cristã foi o de gerar, para a criatura humana, o conflito entre corpo e alma, entre o natural (onde se situam o prazer e o sexo) e o espiritual (feito de privações e mortificação). Pois, na fórmula do apóstolo Paulo, “o que a nossa natureza humana deseja é contra o que o Espírito quer… os dois são inimigos”. Esse absurdo conflito de um ser dividido é que está na base das neuroses, da histeria, do masoquismo, do mal estar na civilização referido por Freud. E acrescento: também da intolerância e dos fundamentalismos.
Para concluir, reflitamos que a religião, como qualquer produto do cérebro humano, tem os seus lados de sombra e de luz. Já que, por múltiplas razões – históricas, sociais e psicológicas – teremos de conviver, sem prazo previsível, com ela, minha esperança é de que a claridade prevaleça.

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