Teresa Sales

Carnaval no interior de Pernambuco, 1955.

Eu ficava fascinada com as fantasias de Lília. Cada ano uma diferente. Mais nova e com ares superiores, ela me ensinava a fazer o passo. Para meu pai, carnaval era festa do diabo. E eu achava difícil acreditar que o inferno, lugar de castigo, tivesse fantasias tão bonitas como aquelas.

Mal a família chegava da viagem para a fazenda dos avós ou alguma praia, era sempre o mesmo ritual. Lilia vinha com a mãe para as fotos no jardim florido de nossa casa. Seu jardim era feio e sua mãe não tinha câmara. Na minha fantasia infantil, as camélias teriam valido mais do que as rosas.

Finalmente, com dezesseis anos, o primeiro carnaval na AGA (Associação Garanhuense de Atletismo). Com a lança perfume numa mão, a outra me abraçando, lá ia meu namorado comigo fazendo a volta no salão.

De repente, ele olha assustado para a porta de entrada do clube, larga meu ombro e diz: “teu pai”. Lá estava ele, de chinelo, roupão por cima do pijama, acabado de sair da cama onde possivelmente não conseguira conciliar o sono. O doutor Sales não precisava de licença para entrar onde quisesse em Garanhuns. Eu fui até ele, que queria apenas saber se estava tudo bem. Fiquei até o final do baile, mas a animação fora embora. Restou a fotografia de nossa alegria antes da surpresa.

Na AGA predominavam as marchinhas. Poderia ser escrita uma história dos fatos importantes de cada ano com as músicas de carnaval:

“Gagarim subiu, subiu, subiu,

foi até o espaço sideral,

depois chegou na lua e sumiu,

vou voltar para o Brasil,

que o negócio é carnaval!”

A alegria do carnaval fui conhecer mesmo muito tempo depois, no auge dos blocos de Olinda. Uma euforia tomou conta de mim. Na Praça da Preguiça, aonde desaguavam os blocos, os bares eram “quase” partidários: “O bêbado e o equilibrista”, “Querubim bar”. Nesse me enturmei.

Ao chegar à praça no primeiro dia de carnaval, vi uma combi, dessas que têm a parte de trás aberta, com uns rapazes e moças acompanhando as músicas com tambores e pandeiros. Míope, sem óculos, achei que um deles era antigo colega de turma. “Eduardo?” Sorriu e ajudou-me a subir. Só então, olhando de perto, constatei: “Mas você não é Eduardo”. “Não, mas tudo bem”.

Nas quatro noites de carnaval tive lugar cativo com aqueles de quem sequer soube o nome. Carnaval em Pernambuco é assim: não é só dançar, cantar. Muito menos apreciar. É brincar. Antônio Nóbrega, homenageado desse carnaval de 2014 no Recife, simboliza como ninguém a alegria de brincar fazendo o passo do frevo.

A fantasia de Lília, porém, fui recuperar em outros dos muitos carnavais brasileiros, antes de chegar à euforia de Olinda. Primeiro, a Vai Vai em São Paulo, onde desfilei na ala dos índios. Já sabia, pelos estudos antropológicos de Roberto da Mata, da inversão de hierarquia de classes e racial brasileira, própria aos dias de carnaval. Senti na pele. A ala dos índios foi reservada aos brancos, comandados por um negão alto, autoritário, que, já nos ensaios, obrigava-nos a cantar e dançar o samba enredo quase à chibatada.

No Rio de Janeiro não houve ensaio. Pagamos caro pela fantasia e recebemos, “os paulistas”, um CD com o compromisso de decorar o samba enredo. Foi o ano em que o homenageado foi Chico Buarque de Holanda. Se em São Paulo o carnaval se resume estritamente ao local do desfile, o clima é outro no Rio de Janeiro. A cidade inteira acompanha a sua escola. Tomamos o metrô no Botafogo em direção à concentração. A caminho do metrô, já fantasiados, recebíamos sinais de simpatia de moradores dos prédios. Dentro do metrô, Zé Carlos puxou um samba antigo da Mangueira e todos no vagão nos acompanharam.

Na concentração, uma multidão em verde-rosa. Olhando as fantasias,  perdi-me de meu grupo, que só fui reencontrar ao final do desfile. Quando o alto-falante chamou, procurei os de fantasia igual. Uma confusão enorme, tudo desorganizado. Eu pensava que dali não sairia desfile. “Logo no ano em que eu vim?” E fui sendo empurrada, até chegar à área próxima à entrada da passarela. Daí em diante, passamos a receber ordens dos negões que, postados de um lado e do outro: “formem alas de sete (ou seriam nove?) de mãos dadas e vão seguindo; (ao entrar na passarela) agora soltem toda a alegria, cantem, dancem; (até o final) olha a animação, pessoal, olha o buraco, não deixem buraco entre vocês”. Na televisão esses protagonistas do desfile não aparecem. E não sei se estariam tão presentes nas demais alas, que teriam participado dos ensaios no morro da Mangueira.

Como já sabia da experiência prévia que o tempo de cada ala não passa de 15 a 20 minutos, não economizei energia. Entreguei-me à emoção e até esqueci os animadores que nos seguiam. Não tem parâmetro de comparação com o brincar carnaval de Olinda e do Recife. Não diria que um ou outro são melhores. São diferentes. Por identidade cultural, eu gosto mais de brincar carnaval. Porém reconheço que a passarela é como se fosse um orgasmo coletivo que dura o tempo de desfile de cada ala, ladeados por uma imensa plateia que nos acompanha das arquibancadas torcendo, cantando, transmitindo uma energia que vem e volta. É preciso desfilar para saber. Brincar carnaval é outra coisa: leva-nos ao tempo mágico e feliz da infância.