Clemente Rosas

Administrador das fazendas Manjereba e Mumbaba, da Companhia de Tecidos Paraibana, na Zona da Mata, além da sua própria, no Agreste, meu pai tinha contato frequente com animais, domésticos ou silvestres.  E tinha por hábito trazer filhotes, encontrados ao acaso, para brincarmos com eles, como bichos de estimação, por algum tempo.

Como sempre achei que a familiaridade com animais é saudável para as crianças, tentei fazer o mesmo com meus filhos.  Não consegui grande coisa: apenas uma cobra muçurana, que passou poucos dias conosco, um tatu peba e porquinhos da Índia, que não são nativos do Brasil.  Soube, bem mais tarde, que, chamados de “cuyes”, foram domesticados no Peru, fazendo parte das pequenas criações dos camponeses andinos.  Até a arte dos espanhóis conquistadores os incorporou, pois vi, em viagem àqueles pagos, um quadro da Santa Ceia, em que o prato era, surpreendentemente, um “cuy”.

O tatu peba, criado solto no quintal de casa, cavava buracos e desaparecia por dias, reaparecendo inesperadamente à noite, vermelho de barro, quando a fome apertava.  A criação de porquinhos da Índia, que comem qualquer coisa e não dão nenhum trabalho, foi atacada por um gato vadio, que se postava à espreita e saltava sobre o primeiro que aparecesse na porta da casinha deles, a cada manhã.  Por isso, o predador recebeu o epíteto de “miserável e covarde”, do meu filho de sete anos, em exercício escolar que causou estranheza à sua professora.

Mas os causos que merecem mesmo registro são aqueles com bichos da minha infância, pelo exótico dos protagonistas e pelo inesperado dos desfechos.  Os personagens foram um bicho preguiça, um filhote de tamanduá e um jacarezinho de dois palmos, não muito maior que uma lagartixa.

A preguiça fujona

Não lembro seu tamanho, mas certamente não era das veteranas.  Com aquela cara achatada, de quem está sempre sorrindo sem mostrar os dentes, e sua proverbial moleza, não nos despertou preocupação.  Foi colocada num abacateiro, mais ou menos isolado no terreno de trás da nossa casa.  Imaginamos que, alimentando-se de folhas, e com aquela lentidão, não teria como e por que fugir.

Doce ilusão.  No dia seguinte, o abacateiro era o canto mais limpo.  E a busca por cada metro quadrado da área em volta foi inútil.  Até hoje não sabemos para onde foi.  Mas a maior possibilidade é ter-se arrastado pelo chão, galgado, de alguma forma, o muro de trás da casa, e procurado refúgio no quintal vizinho, verdadeiro sítio, cheio de mangueiras, sapotizeiros, jambeiros e pés de fruta-pão, como eram vários quintais das casas da João Pessoa de minha infância.  Ali, pode até ter vivido sua longa existência, sem sequer ser percebida.

Insetívoro sem diploma

Quando o tamanduazinho chegou às nossas mãos, não sabíamos como alimentá-lo.  Era um filhote, não daquela espécie de vistosa cauda, mas do tipo mirim.  Não tardaram opiniões de parentes e aderentes: leite, ovo cru (furando-se um buraquinho, por onde o bicho metia a língua), que mais?  Formigas não foram mencionadas, tanto pelo óbvio, como pela dificuldade de ministrar tal refeição.  Isso seria com ele mesmo.

Não deu muito certo.  O bichinho vivia em constante diarreia, enfraquecendo-se.  E nada de interessar-se pelas formigas, sua dieta por definição da zoologia.

Um dia, perdemos a paciência.  Um velho tronco de árvore foi removido no quintal da casa de minha avó, ao lado, expondo um enorme formigueiro, daquelas espécies agressivas, boas de ferroada.  Pusemos o tamanduazinho no meio, e qual não foi a nossa surpresa: o pobre animal saiu em disparada, fugindo ao ataque das criaturas que deveriam ser a sua refeição.

Até hoje não encontrei explicação para esse fato.  Talvez, pela pouca idade, o título de insetívoro ainda não lhe tivesse sido concedido.

O crocodiliano feroz

Quando se sentia ameaçado, o jacarezinho abria o bocão em sinal de agressividade, mas não passava disso, e pouco se movia.  Lá no fundo da garganta, víamos o véu esbranquiçado que permite aos da sua espécie abocanhar qualquer presa dentro d’água, sem engasgar-se.  Era uma mascote de pouco brilho, como se vê, mas teve seu dia de protagonismo.

Viajávamos de Santa Rita, onde moramos na primeira infância, para João Pessoa.  Pai e mãe na frente do carro, os três irmãos no banco de trás.  Aos nossos pés, no piso do veículo, o jacarezinho.  Tínhamos, os dois mais velhos, entre seis e sete anos, o caçula entre três e quatro.

De repente, com um grito, meu irmão mais velho se atira para adiante, por cima do encosto do banco dianteiro, indo cair sobre a minha mãe.  Instintivamente, sem saber a causa do susto, pulei também sobre o pescoço do meu pai, que teve de parar o carro.  E só então olhamos todos para trás, para entender o que se passava.

O quadro que se apresentou era de fato cenográfico: no canto do banco, de perninhas encolhidas, meu irmão caçula chorava, assustado.  Diante dele, sobre o banco, postava-se o jacarezinho com ar ameaçador, de boca escancarada.

Contornada a situação, sem traumas, avaliamos como o incidente poderia ter ocorrido.  Meu irmão explicou que tinha levado uma mordida no calcanhar, e por isso pulou para a frente.  Nesse movimento, pode ter sacudido o bichinho para cima do banco.  Todos rimos à vontade, com o pitoresco episódio.

Ao final deste relato, proponho uma reflexão.  Abstraindo os aspectos ecológicos, pode-se dizer que há vantagem na parafernália eletrônica de que se compõem hoje os brinquedos infantis sobre a convivência das crianças do meu tempo com seres de carne e osso, como animais domésticos ou silvestres?  Tenho cá minhas dúvidas.