Clemente Rosas

O coronel e o amor à vida

O coronel da Guarda Nacional Assunção Santiago foi um antepassado remoto do meu pai, de quem tenho memória apenas do nome e do episódio inusitado que aqui reporto.

Por alguma querela com autoridades públicas, um destacamento da Polícia Militar foi à sua propriedade e o deteve, levando-o preso.  Seu afilhado e homem de confiança, Neco, tendo conhecimento da afronta, reuniu uma dúzia de capangas bem armados, e saiu em perseguição à tropa, para resgatá-lo.

Alcançou o pequeno grupo de soldados à noite, cercou o acampamento, e exigiu a imediata libertação do padrinho.  Mas o sargento comandante não era frouxo.  Apontou a arma curta para a cabeça do coronel, já subjugado, e ameaçou:

– Não entrego não.  E se atirarem, o primeiro a morrer é ele!

Seguiu-se, naturalmente, a usual troca de desaforos, os doestos contestando, como de regra, a heterossexualidade ou a origem familiar dos contendores.  Mas o bravo e fiel Neco estava de mãos atadas.  Sem saber o que fazer, apelou para o prisioneiro:

– Meu padrinho, diga que não tem amor à vida.  Diga, que a gente acaba logo com esses cornos!

O coronel Assunção Santiago, sem deslustre para a sua macheza, mas como era de se esperar, não atendeu ao apelo do afilhado.  Seguiu preso, e a pendenga foi resolvida posteriormente, sem maior conflito, como ocorria, na época, entre patrícios.

O matador gentil

Apareceu no engenho Marés, não sei em que circunstâncias, um caboclinho tímido, que usava um bonezinho sem abas, parecido com uma cuia, e por isso era conhecido como Zé Cuinha.  Minha avó paterna, a primeira esposa do meu avô Mateus, que morreu antes dos quarenta anos, do coração, deixando órfãos meu pai, seu irmão e três irmãs, tomou-o como afilhado.  Gentil, calmo, cordato, Zé Cuinha era o auxiliar de serviços gerais da casa.  E minha avó tinha estima por ele.

Ora, aconteceu que, um dia, chegou ao engenho a notícia do assassinato, por arma branca, de um homem, em pagode das redondezas.  E o acusado era Zé Cuinha.  Surpreso, meu avô chamou-o às falas.

– Pois é, meu padrinho.  A gente brigou, e ele falou mal de minha madrinha.  Aí eu empurrei ele com a minha quicezinha…

– Foi assim, não é?  Mas você vai ter que responder por isso na Justiça.

Alguns dias depois, chegou o delegado.  Zé Cuinha, sempre gentil e prestimoso, ajudou-o a apear-se e recolheu o seu cavalo.  O delegado sentou-se no alpendre.

– Mateus, eu recebi a denúncia de que um empregado seu matou um homem numa festa, perto daqui…

– É verdade.  Ele até já me confessou isso.  Pode levá-lo.

– E onde está o homem?

– É esse aí mesmo, que levou o seu cavalo.

– Esse?!

O delegado assustou-se.  Um assassino esfaqueador, com a frieza de ajudar o doutor delegado a desmontar, não era usual, nem coisa a ser desconsiderada.  Refletiu e ponderou:

– Sabe de uma coisa, Mateus?  Eu não vou levar esse homem agora não.  Vou embora e volto com um destacamento.

– Como queira.  Sempre às ordens.

Com a partida da autoridade, meu avô chamou o indiciado e avisou que se preparasse, pois a polícia viria buscá-lo.  E Zé Cuinha, com a sua quicé e o bonezinho, sumiu no oco do mundo.  Ninguém mais teve notícia dele, nem mesmo a sua querida madrinha, tão extravagantemente defendida.