Clemente Rosas

Turma escola pública de 1925.

Esta era famosa pela severidade.  Maria José Gouveia era o seu nome, mas o apelido familiar chegou às salas de aula, muito embora nós, alunos, não fôssemos autorizados a tratá-la assim.  Uma de suas auxiliares, excepcionalmente mansa, a chamava de Madrinha Zica.

Digo excepcionalmente porque a outra, Dona Natália, fazia par à mestra–chefe.  De lábios finos e nariz adunco como uma feiticeira, não tinha qualquer ternura com as crianças.  Eu a vi, numa ocasião, quebrar um lápis, com borracha acoplada, na cabeça de um aluno.  E no meu primeiro dia de aula com ela, em que fui forçado a usar caneta pela primeira vez –  daquelas de pena áspera, de molhar no tinteiro – tive uma boa amostra da insensibilidade daquela criatura.  Ao receber o caderno com a cópia encomendada, escrita com a letrinha tremida de um garoto de seis anos, que até então só conhecia lápis, riscou a página com tinta vermelha, de cima abaixo, vociferando:

– Isso eu não corrijo!

Nesse tempo, a palmatória já tinha sido abolida.  Mas havia os nós dos dedos para os “cascudos”, as réguas para reguadas, o quartinho escuro, o cimento áspero do piso para se ficar de joelhos, em castigo.  A regra era a da punição física para os desatentos e pouco estudiosos.  Eu e meu irmão escapamos apenas por não serem esses os nossos casos.

A escola funcionava numa salinha ao lado de uma capela, e também em espaços separados dentro da igreja.  Lembro bem do terror que me assaltou quando, aluno de Dona Lourdes, a afilhada que comandava o 3º ano, cheguei, num dia em que ela havia faltado, e adentrei o recinto, então sob o controle único da velha Zuzica: dos dois lados da nave, divisei fileiras de meninos de joelhos, em castigo por motivos diversos.  Noutra ocasião, quando um garoto cumpria uma das penas mais brandas – ficar de pé atrás do quadro negro, uma estrutura de madeira descolada da parede – via-a,  descontraidamente, enquanto escrevia a lição no quadro, vibrar, com a outra mão,  reguadas cegas no castigado inquieto, sem preocupação quanto à forma como ele estaria sendo atingido.

Pior destino teve um dos seus sobrinhos, obrigado pelos pais a morar com a educadora da família.  Apanhava em casa e na escola.  Era um garoto extremamente retraído, que reencontrei, muitos anos depois, como profissional da arquitetura em Recife.  E dele ouvi o relato dos sofrimentos passados, cujas marcas psicológicas conservava, mesmo na vida adulta.

Um belo dia, fomos informados pela mestra, sem a menor gentileza, de uma novidade:

– Amanhã vou receber aqui um aluno novo.  Um menino muito fino, educado, não é para se misturar com vocês. Tenham respeito com ele.

Era um carioca, de sotaque carregado, cheio de sofisticações e mesuras, com quem logo antipatizamos.  Trazia uma caneta “automática”, novidade que a velha abominava, pela possibilidade de acabar a carga de tinta em plena aula.  E não dava outra coisa:

– Dona Maria, faltou “tchinta”!

E vinha a resposta, com irritação mal disfarçada:

– Está bem, meu filho, mas não deixe faltar mais não…

Na saída, o calouro estendeu a mão para a Dona Maria, que, desacostumada com aqueles rapapés, na pressa de corresponder ao gesto, derrubou o monte de cadernos que segurava, para nosso discreto deleite.

Mas a fase cerimoniosa do relacionamento com o novato durou pouco, tanto para ela como para nós.  E a linha dura acabou prevalecendo.

Só uma vez recebemos, eu e meu irmão, manifestações de afeto de Dona Maria José: quando nos saímos bem, no final do curso, em uma espécie de exame geral de todas as escolas.  Sobretudo meu irmão, a quem uma jovem professora tentou, sem sucesso, fazer confundir os conceitos de “área” e “perímetro”.  Fizemos bonito, e Dona Zuzica, orgulhosa e feliz, nos abraçou.

Anos depois, já universitário e com presença em jornais e suplementos literários, na forma de poemas e crônicas, reencontrei casualmente Dona Maria José na rua.  Velhinha, solitária, pareceu-me frágil e carente.  Foi às lágrimas, ao rever o aluno que, para ela, já era um intelectual de fama e conceito.  Surpresa!  Sob toda aquela antiga truculência, havia sentimento!