Fernando Dourado.

Homem varrendo a rua - autor desconhecido

Homem varrendo a rua – autor desconhecido

Na semana seguinte à publicação de “Mitologia íntima da margem esquerda do Capibaribe” – aqui na Será? -, minha vizinha de apartamento em São Paulo faleceu. O convívio com D. Esther durou apenas dois anos, mas eles foram suficientes para que eu me convertesse num admirador daquela senhora elegante, cheia de amor à vida. Castigada por uma doença degenerativa que só ganhou terreno dia após dia, nunca a vi descuidar da aparência. O cabelo e a maquiagem eram impecáveis. Tinha habilitação válida e declarou Imposto de Renda na UTI. Nesse aspecto, lembrava muito minha própria mãe e fiquei sentido com o desfecho. Apesar de convalescente, compareci a uma das rezas do luto judaico que aconteceu nos dias subsequentes, sempre à noitinha. O chazan tinha uma voz encorpada e, mesmo em se tratando do kadish – a oração pelos mortos -, os cânticos maviosos me levaram a décadas de convívio com os judeus. Dessa ligação, trago como herança maior saber lidar com a impermanência e cultivar o olhar estrangeiro que levo onde vou, até à rua onde moro. Na elaboração do luto, aliás, eles são imbatíveis. Os primeiros dias do shiva chegam a ser quase festivos. Do momento que a morte leva sua paga, a vida vai voltando ao lar. Antes escuro, apenas iluminado pela televisão que fazia companhia à enfermeira, eis que tudo muda. Com o fechamento daquele capítulo, se opera um milagre que não prescinde de ritos. Cobrem-se os espelhos. Acendem-se velas. Mas, noite após noite, a casa fica cheia de visitas. Estas cantam, se abraçam e, no final, vão embora com um até amanhã. Quando o período se encerra, a dor aguda está cauterizada. E a vida segue.

 

Pois bem, tudo teria ficado por aqui se, na hora da despedida, alguém com voz familiar não tivesse me chamado. Foi só me virar para ver um baixinho que me remeteu ao passado. Olhos verdes-esmeralda e o ar desengonçado de então, ali estava Chaim Fuchs, paulista que ia ao Recife quando menino para visitar os primos paternos. Lembro que cheguei a revê-lo em São Paulo no início dos anos 90, quando ele sofreu um acidente grave em plena lua de mel. Depois da tragédia, soube que se mudara e perdemos o rastro um do outro. O que fazes aqui? Disparamos o chavão simultaneamente, até para disfarçar a emoção do reencontro. Pois bem, Chaim era sobrinho de D. Esther, por parte de mãe. Verdade que aparecia pouco pois morava em Santos e só subia à capital para ir ao fórum. Mas nem por isso estava por fora do que ocorria no mundo. Rato de redes sociais, segredou que Gisela Sterenberg tinha lhe passado um link com meu artigo sobre o universo afetivo da rua da Aurora. Ora, ele também se vira retratado ali. De pronto, rememorei seus tios – Fanny e Benjamim -, já falecidos, e os primos que, me disse, hoje viviam em Israel. A família morava no edifício Iemanjá, nosso vizinho. Daí ter ele passado duas ou três férias entre nós, na imundície do areial, enchendo latas com caranguejos que arrancávamos da lama do mangue. Lembrei que uma vez os tios o levaram para o Gouveia de Barros para tomar vacina antitetânica, depois que se cortou. A verdade é que havia uma diferença de dois anos entre nós. Esse detalhe, quando se é adolescente, conta muito. Ademais, como ele disse, eu saí cedo para o mundo e perdi uma parte da festa. Pois ali estava ele – advogado, calvo e dentuço. Alguma coisa me comoveu.

 

Convidei-o, então, a subir até minha casa para um dedo de prosa. Relaxado, uma kipá minúscula na cabeça oblonga, Chaim aceitou um vinho do Porto, um Jockey Club reserva que ganhara. Não vou te acompanhar, disse. Fiz uma pequena cirurgia e estou tomando antibiótico. “Le Chaim“, brindou e tomou um gole, deliciado. Sim, continuava solteiro e era da tese de que só se ama uma vez. No caso dele, perdera a sua, admitiu. Eu sempre ouvira de Liora que a viuvez sobrevinda na viagem de núpcias o deixara sem chão. E eu, como ia? Contei-lhe sobre os roteiros para cinema que vinha escrevendo, mas que estava encarando a missão como diletantismo. Pagava-se pouco e as pessoas do ramo eram escravas de editais do governo. Ora, não seria no outono da vida que eu iria me atrelar a um mundo de que sempre quisera distância. Se fosse mais jovem, iria morar em Los Angeles. Menos mal que eu aprendera a viver com pouco e as coisas que me divertiam não custavam dinheiro, só pediam saúde. A certa altura, Chaim perguntou sobre outros personagens da rua da Aurora e adjacências. Será que eu os tinha esquecido ou os poupara para um filme? A conversa ganhou novo diapasão. No meio do túnel do tempo, me animei a acompanhá-lo num cálice, apesar dos remédios. Quem mais teríamos, além das figuras a que já me referira no artigo anterior? Peguei papel e caneta e comecei a anotar. Chaim lembrava de algumas pessoas e estas puxavam outras tantas. Ao término da garrafa, cheguei a trinta indivíduos, metade dos quais ele conhecera. Então prometi que selecionaria dez e faria um capítulo novo sobre a comédia de costumes que tanto o divertira. Em homenagem à sua solidão e viuvez dolorosa. E em memória de D. Esther que, indiretamente, propiciou esse reencontro de vizinho e sobrinho.

 

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a) “Biu” de Dr. Audálio – O nome de pia era Severino e nasceu preto retinto, sem qualquer traço de miscigenação. Dizem que foi o primeiro negro a frequentar o Marista e fora adotado por D. Maria do Carmo, esposa do deputado Audálio Tenório, de Águas Belas. Cavalheiro, andava de bengala Bat Masterson e, universitário, ganhou um Karman Ghia amarelo – quintessência do charme. Tocava violão, o perfume era Brut, o português era branco e escorreito, e beijava a mão das senhoras. Certa feita, eu e Chaim chegamos ao elevador social esbaforidos depois de jogar bola sob o sol do meio-dia. Biu nos barrou peremptoriamente em termos altivos: “Alto lá. Tomem o elevador de serviço. Não venham castigar as distintas senhoras com sua transpiração”. A música preferida dele dizia: “O neguinho gostou da filha da madame, Que nós tratamos de sinhá”. Um dia conheceu a cachaça e resolveu que não havia melhor companhia para sua erudição: ela nada perguntava e, por um tempo, ajudou a encontrar respostas para os mistérios da vida. A isso, somou o vício supremo: a adrenalina do carteado – a ruína dos espertos e a desgraça dos boçais. A mãe rezou e fez promessas diante do olhar cético do padre Guedes, mas Biu trilhara um caminho sem volta. Dr. Audálio condenou-o ao degredo em Águas Belas, de onde jamais voltaria. Antes do veredicto, vagou meses com um cão sarnento que achou na rua, e acampou na calçada do Capibaribe – onde recebia marmitas escondidas da mãe pesarosa, pelas mãos de seu Nogueira, o porteiro. Consternou a margem esquerda com o fiasco da experiência: adoção era loteria e nenhum amor do mundo abafava o patrimônio genético herdado – comentavam;

 

b) Dona Otília e seu Luiz – Trezentos metros antes de o rio se despedir do Recife, pontificava o famoso Buraco de Otília, uma instituição sem rival para quem apreciava a galinha de cabidela e que sobreviveria precariamente à morte da grande cozinheira. Simpática sem ser sorridente, D. Otília percorria as mesas e orientava as garçonetes – algumas delas se tornariam célebres. Pela proximidade com o Canal 2, vez por outra recebia a visita de grandes nomes do sul. Alguns estrangeiros nos abordavam quando crianças para saber onde era o famoso endereço. O restaurante esteve nos dois lados da rua da Aurora, sempre na mesma margem. Disso Chaim já não lembrava, mas eu sim. Quando um lado foi aterrado, ela se mudou para o meio das garagens de remo, para uma casa de fachada quase neutra e de feição familiar. Longe de ter a verve de D. Verônica, do Beco do Costa, D. Otília era uma senhora sóbria e fidalga que sabia reconhecer o valor do bom freguês. O mesmo valia para seu Luiz, vizinho do Canal 2, na hoje gastronômica rua Capitão Lima, em cujo boteco se comia bom sarapatel, dobradinha e costeleta de porco – o trio de acepipes que encanta o recifense autêntico. De lá, se podia espreitar as chegadas de Cláudia Barroso, Wanderléa e Martinha. Homem de boa índole, seu Luiz – os olhos rasgados, o bigodinho sobre a boca murcha – também era bom de copo e perdeu uma filha criança chamada Albanita que meu pai ajudou a enterrar. Morreu cedo e foi sucedido por Almir, filho mais velho. Já Amaro, o segundo, estava fadado a voar alto. Virou instrutor de auto-escola, ali mesmo na rua – um tremendo progresso para um palco de muitos espectadores e poucos protagonistas;

 

c) Sansão, Manuel Severo e Zé Gago – O primeiro morava ao pé da mureta que ficava logo atrás do posto de gasolina, na altura do 999 da rua da Aurora, onde hoje está o edifício Montreal. Só tinha uma roupa que era um calção azul-marinho de algodão cru. Queimado de sol, beirava os cinquenta nos, tinha traços indígenas e lembrava Charles Bronson. Sem dinheiro para bebidas alcoólicas, tomava tiner que conseguia na dispensa de lubrificantes e comia um ou outro caranguejo que catava no lodaçal, onde eles se escondiam à nossa aproximação. Morreu tão calado quanto viveu e a autópsia foi antológica: os órgãos estavam queimados, mas o fígado mantivera o tamanho normal. Severo, de Bezerros, era mais antigo. Chegou ao Capibaribe depois de ter perdido tudo – o que era tudo para um homem pobre, senão a dignidade? – numa enchente nos arrabaldes. Virou vice-zelador e, por sorte, foi morar na cobertura do bloco B, junto à barulhenta casa dos elevadores e onde funcionava a estação de transmissão da Telpe. Imitava o canto de mais de cem passarinhos e sonhava em mandar o filho para a Marinha. Zé Gago, chegou ao edifício valente e irritadiço. Logo foi demitido, mas então virou autônomo. Então, mudou para melhor. A carteira assinada deveria transtorná-lo. Homem de bom coração, aprendeu o ofício de eletricista na marra – levando choque. Alguns tão fortes que o cheiro de pele chamuscada subia. Os estímulos elétricos não ajudaram, contudo, a curar a gagueira paralisante. Odiava que terminássemos as frases por ele para ajudar. Com doença renal crônica grave, apareceu verde-abacate e morreu acoplado à máquina de hemodiálise com um sorriso triste e sem queixas do destino;

 

d) Alvaiade – Trabalhou na Figueira & Jucá na construção do edifício icônico. Depois continuou como empregado do condomínio para fazer os trabalhos insalubres. Negro de meia-idade, era ele quem varria as áreas comuns, limpava a placa de cimento onde se jogava lixo das cozinhas – pasmem – e levava as enormes tinas para a calçada onde seriam esvaziadas no caminhão do lixo. Dormia no chão, perto do painel dos disjuntores, indiferente aos alagamentos periódicos e às ratazanas que vinham lhe pinicar a orelha. Tinha um testículo que batia no joelho e diziam que o amarava à perna com gaze. Resmungão, varria a calha da rua toda e daria a volta no quarteirão muitas vezes se não fosse alertado de que bastava. A vassoura era a grande confidente e a piaçava não durava três dias na sua mão. Como boa parte dos desorbitados daquele mundo, encontrava acolhida no coração imenso de D. Dulce Cardoso, precocemente falecida, como ocorre aos muito bons. Não encarava as pessoas quando falava, mas tinha um riso irônico que permeava palavras bem escolhidas que trouxera de alguma fonte pura, do mais belo português castiço. Quando recebia o salário, ia à zona do porto e torrava tudo. Até que um dia, engravidou uma delinquente de Afogados. Nasceu Flávio, vulgo Neném. Acabou-se a felicidade do homem incansável e resistente a tudo. A mãe vinha lhe extorquir e negava o direito de ver o filho. Teve surtos psicóticos tão agudos que chegou a morder as barras de ferro do portão da garagem. Urrava: quero meu nenén – os gritos ecoavam no Brum e espantaram mais de um marinheiro. Morreu dopado, dentro de uma camisa de força, balbuciando “Frávio, Frávio”;

 

e) Robertinho – Personagem síntese da margem esquerda, é o verdadeiro Fellini dessa narrativa. Podia pegar qualquer um dos perfis acima e destrinchar em detalhes que espantariam os próprios protagonistas. Neto de D.Verônica, por ela criado como filho, nasceu no tanque de lavar roupa apesar de a mãe ter tomado soda cáustica para abortar. Com aspirações mais elevadas do que a escola – sobreviver -, cedo foi à luta e viveu a vida ao modo dele. “Causeur”, dotado de enorme verve, colossal memória, engenho narrativo e senso de observação, foi o tradutor de uma Babel de costumes que extrapola em muito o apanhado desses personagens. Do olhar estrábico, nada escapava. Tampouco da irreverência, pois ninguém era poupado. Um senhor foi hospitalizado de tanto rir numa roda de cerveja em São Paulo. Foi quando ele contou a história dos ingressos de primeira fila que ganhara para ver a apresentação do balé nacional do Senegal, no teatro do Parque. À medida que o elenco transpirava, ele foi se desesperando e recuava uma fila. A conclusão era que pobre tem que desconfiar de esmola grande. Trabalhou em sapatarias e morreu há cinco anos vendendo bolsa de couro. Namorou, fez arruaça, bateu e apanhou, mas acabou a vida nos braços do amor da maturidade e na companhia de Bóris – o cachorrinho com quem desabafava sobre os maus resultados do Sport. Foi de tudo: malandro, folião e confidente em todos os papeis que lhe couberam – neto, pai, avô e amigo. Trabalhou no Sebrae e na Livro 7. Não nasceu para viver sob limitações físicas. Sobrinho distante de Lampião, não temia a morte – para ele a mais democrática das instituições. Hoje dorme em Santo Amaro, morada dos bons e Chaim ficou em lágrimas ao evocar seu nome e lamentou não tê-lo revisto no endereço da Consolação;

 

 

f) Sapateiro e seu Clóvis – Nunca soubemos como se chamava de verdade o sapateiro do prédio, que morava num socavão do edifício Capibaribe e andava de muleta porque teve uma perna amputada na sequência de um desastre de ônibus. A decadência de seu Luís, da travessa do Costa, e a demanda somada dos prédios que eclodiriam naquela época – Iemanjá, Montreal e Alfredo Bandeira – lhe proveu de uma carteira de clientes bojuda. Acolhido por mais de uma família, tinha um sorriso banguelo, hálito de cachaça, cabelo assanhado e alimentava maus instintos que tentou conter em grande medida, mas não sempre. Chaim disse que a tia o detestava. Chamado por Alvaiade de “aquele cotó”, temia ser surrado pelo colosso de força. Vez por outra, ia beber no bar de Clóvis e, no auge do porre, atirava a muleta para longe, na ilusão de que, bêbado, sairia dali andando como antes do acidente. Levava vários tombos antes de recuperá-la porque ali ninguém se apiedava de valentia. Ruim de entrega, não se adaptou à prótese que ganhou da protetora e voltou à muleta. Já Clóvis era um homem de bigode retinto e cabelo penteado de brilhantina Glostora, à moda samurai. Morava de frente para o bar, na esquina da rua da Fundição com a Capitão Lima e não deixava que os ânimos se exaltassem em torno da mesa de bilhar. Tinha uma conversa igualitária com meu pai e os temperamentos se identificavam. Enérgico, destemido, ganhava bem a vida e comprou um Aero-Willys novo que mandava lavar e polir todo dia. Num assalto, morreu assassinado por bandidos que lhe ignoraram a voz de barítono. Eu adorava comprar paio na venda e vê-los ser pescados da tina de banha. Sonhava em comprar uma lata inteira só para mim com o primeiro salário. O sonho continua em aberto. Como tantos outros que me embalavam quando morei numa rua chamada Aurora.

 

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