Cristovam Buarque >

Repressão militar contra manisfetantes em defesa da democracia - 1964

Repressão militar contra manisfetantes em defesa da democracia – 1964

Como toda quarta feira, naquele primeiro de abril de 1964 cheguei cedo à casa dos alunos para dar minha aula como professor particular de física e matemática. Meus alunos eram adolescentes de tradicionais e interligadas famílias pernambucanas: Brennand, Pontes, Monteiro. Naquela manhã, a mãe dos alunos me esperava na calçada, um tanto assustada, e foi logo me dizendo que estava acontecendo uma revolução.

Foi à primeira notícia que tive daquele fato histórico que mudaria radical e inesperadamente a vida de todos os brasileiros, sobretudo de um grupo de militantes por um País mais democrático, soberano, justo, socialista: muitos mortos, torturados, exilados, com suas carreiras e projetos pessoais interrompidos de maneira muitas vezes definitiva. Foi pela fala de uma pessoa das altas classes pernambucanas, industriais e usineiros, que fui informado do golpe de 1964.

Ela me disse que precisava sair às compras para prevenir-se estocando a dispensa da casa. E preocupada com os riscos que corria a família, em um Estado radicalizado por intenso movimento social, especialmente de camponeses a poucos quilômetros dali. Pediu que eu suspendesse a aula e ficasse atendendo aos meninos, por se acaso alguma manifestação chegasse. Não esqueço o tempo de cerca de uma hora que passei sentado em uma cadeira no terraço, olhando a rua e me perguntando o que faria se ali chegassem camponeses para atacar a casa de um usineiro, cujas crianças eu, um estudante revolucionário de esquerda, estava cuidando. Cumpriria meu papel de revolucionário ou minha responsabilidade de professor?

Obviamente nenhuma manifestação veio até a Madalena, bairro onde estava a mansão, e ainda de manhã fui para a Escola de Engenharia, onde eu cursava o terceiro ano, para tomar conhecimento dos detalhes e ser informado de que meus amigos estavam sendo obrigados a fugir, outros já estavam presos. Mas ainda eram notícias.

Meu primeiro contato com a gravidade da realidade veio por algo bem mais simples e impactante. Eu era Secretário do Diretório Acadêmico de Estudantes e ao encontrar o presidente Drumond, perguntei, ainda ingenuamente, sobre o que fazer com a correspondência que eu era encarregado de cuidar e responder para a assinatura dele. Ele foi enfático, quase duro, dizendo que este era um problema absolutamente sem importância, que precisávamos era salvar a vida. E logo depois ele foi dos primeiros a ser preso e obrigado seguir para o exílio.  Foi Drumond quem me deu o primeiro sinal da gravidade da tragédia que se abateria sobre o Brasil por 21 anos.

O período de horas, entre cuidar de filhos dos ricos, me despedir de amigos sendo presos e entrar para um partido revolucionário já na clandestinidade, mostra a ambiguidade das classes sociais brasileiras. Inclusive o fato de que de ser eleito para substituir Drumond, poucos meses depois, na presidência do Diretório e ser destituído em mais alguns meses. Continuei sendo aceito como professor daqueles meninos, contudo, até que eu próprio mudei de atividade. Em alguns momentos desses anos, eu dava aula de manhã, de tarde assistia às aulas na Escola de Engenharia e de noite pichava “abaixo a ditadura” em paredes da cidade, ou de madrugada panfletando na frente de fábricas querendo atrair operários para a luta democrática e socialista.

Como se não bastasse esta ambiguidade, naquele tempo eu estava fazendo o serviço militar, no CPOR de Recife, onde até o 31 de Março tínhamos fortes e abertas discussões, em que certos oficiais se divertiam com os argumentos revolucionários, meus e de outros colegas. Às vezes acho que eles estavam tão confiantes de dar opiniões ridicularizando o presidente da República João Goulart e o governador Miguel Arraes, que já deviam saber do golpe em andamento. Mas outros simpatizavam com nossas posições progressistas. Nos primeiros dias depois do golpe, lembro que um dos oficiais, um major, muito simpático e reacionário, passou em frente à Escola de Engenharia e nos deu um adeus debochado do veiculo em que passava. Era um riso de vencedor. Sentia-se como César, já entrando em Roma, depois de atravessar o Rubicão, acenando para romanos ingênuos.

Ainda naquela manhã tomamos conhecimento de que o governador Miguel Arraes estava cercado pelo exército em sua residência oficial, o Palácio do Campo das Princesas. As informações eram de que seria destituído, preso ou mesmo assassinado, porque se recusava a renunciar. Em uma rápida assembleia dentro do prédio da Escola de Engenharia, decidimos sair em uma manifestação em direção ao Palácio do governador. Nossa ideia era, certamente, de que passaríamos por cima da tropa do exército e liberaríamos Arraes para que ele conduzisse a resistência em todo o País a partir do Nordeste, enquanto Brizola, desde o Rio Grande do Sul, repetiria a vitoriosa campanha da legalidade de três anos antes. Demorou pouco para que os tiros nos despertassem para o tamanho de nossa fragilidade.

Entre nós estudantes se destacava um professor de Cálculo II, o português Antonio Brotas. Ele era pouco mais velho do que nós, certamente  com menos de trinta anos; embora exilado por Salazar e tendo sobre si a ameaça de morte caso voltasse a Portugal, não titubeou um momento.

Saímos da Escola de Engenharia pela Rua do Hospício, em direção à Av. Conde da Boa Vista, dobramos à esquerda caminhamos as poucas quadras até a Ponte Duarte Coelho, que atravessamos para entrarmos na Avenida Guararapes. A larga e curta Guararapes foi caminhada em poucos minutos, porque seguíamos rápido, quase correndo. Era como se ao mesmo tempo a salvação de Arraes exigisse rapidez e como se nós tivéssemos pressa para o encontro com o destino histórico. Apesar da adesão, estávamos dispersos pelo calçamento e por debaixo dos arcos e marquises que a caracterizam aquela avenida. Naquela época, antes da apartação que isolou os pobres separados dos ricos nos shoppings e condomínios distantes das favelas e mercados, a Avenida Guararapes era o verdadeiro centro da cidade. Ali estavam os consultórios médicos, escritórios de advogados e dos mais importantes profissionais liberais. Das janelas partiam aplausos, confetes, palavras de incentivo. Talvez alguns daqueles escritórios tenham sido visitados semanas depois pela polícia e alguns dos manifestantes tenham sofrido repressão. Mas naquele momento a repressão estava ocupada em prender os líderes da esquerda, como Gregório Bezerra e Miguel Arraes a quem íamos libertar.

Foi com este propósito que, ao terminar a Av. Guararapes, já na Praça de Santo Antônio, dobramos a esquerda na Av. Dantas Barreto indo para a Praça da República, onde fica o Palácio do Governo com Arraes dentro, preso, pressionado para renunciar e resistindo. Poucos meses atrás, durante uma viagem com a Ministra Ana Arraes, filha de Miguel Arraes, graças à duração do voo desde Brasília e ao terrível engarrafamento daquela tarde entre o aeroporto e a casa do atual governador Eduardo Campos, ouvi a história do que tinha acontecido durante a noite do dia 31, até a madrugada do dia 1º de Abril, quando o governador decidiu que sua família saísse para um lugar seguro, ele preferindo ficar e resistir.

Na Avenida Dantas Barreto, já bastante próximos da Praça da República e seu Palácio, fomos parados por uma barreira de soldados do exército. Ainda nos parecia que o Brasil era um país tranquilo e que o exército, que até a véspera era comandado pelo presidente João Goulart e seu ministro da guerra, iria dialogar e respeitar estudantes. Descobrimos que estávamos errados quando nos surpreenderam os estrondos dos tiros e todos saíram correndo desordenadamente.

Todos sim, menos Jonas e Ivan, que foram atingidos pelas balas. Lembro-me de ver o professor Brotas carregando o corpo do jovem, com sua camisa já vermelha de sangue.
Eles caíram, e Brotas carregou Jonas, à procura de um carro para leva-lo ao Hospital Pronto Socorro, para onde fomos muitos de nós, e lá ficamos até a notícia de que as mortes tinham acontecido. Creio que Jose Artur Padilha, meu colega de turma na Escola de Engenharia, também esteve próximo e atendeu feridos.

Aquele foi nosso batismo de fogo. Mesmo os que não estavam próximos da linha de frente, mesmo os que correram em debanda ou se escondendo atrás de colunas, todos viram ali que o golpe era uma realidade. Talvez não para durar 21 anos, mas certamente para impedir a revolução que o Brasil precisava e continua precisando, mesmo que mudando de forma e propósito. Aqueles jovens soldados, de nossa mesma idade, pertenciam às classes que necessitavam da revolução. A revolução e suas reformas seriam para eles e seus filhos, mas ali estavam cercando o Palácio para prender o governador que lutava por eles. E até hoje esta realidade política continua: as camadas populares votam nas forças conservadoras, como aqueles jovens soldados atiravam nos que lutavam por eles. Lamentavelmente não foi apenas um batismo de fogo. Foi também de sangue e de realismo político.

Se eu fosse escolher os heróis daquela tarde, além dos jovens mortos escolheria o professor Brotas. Ele foi até o hospital e daí para seu apartamento de solteiro, creio que em um prédio em Boa Viagem, talvez o então ainda digno Califórnia. Não demorou e a policia prendeu o Brotas em sua residência, talvez ainda com a camisa manchada de sangue. Colocaram-no em um avião para Lisboa, onde ele certamente seria assassinado. Para sua sorte, naquela época não havia voo da TAP direto para Lisboa. O voo, que provavelmente saiu do Rio, fez escala antes do destino final e, não lembro se em Roma ou Argel, durante o curto tempo da parada, ele pediu e recebeu asilo.

Quase vinte anos depois, em 1982, no meio de um curso de algumas semanas que dei em Lisboa, procurei no catálogo telefônico e encontrei três Antônios Brotas. Liguei para o primeiro e a quem me atendeu perguntei se aquele Brotas tinha sido professor em Pernambuco. Disseram que não. No segundo, fui informado por uma senhora que o professor tinha vivido em Recife. No sábado seguinte passei um dia inteiro andando pelas ruas de Lisboa com o meu professor Brotas que tinha voltado a Portugal depois do Movimento Democrático de Abril que derrubou o que restava do salazarismo. Até hoje tenho uma pequena escultura africana que comprei em uma calçada por onde passamos durante aquele passeio. Estive com ele outras vezes que passei por Portugal e uma vez que veio a Brasília ficou no meu apartamento. Por coincidência, em janeiro de 2003 ele estava comigo quando recebi o telefonema do Presidente Lula me demitindo do cargo de Ministro da Educação. Meu primeiro almoço como ex-ministro foi em um pequeno e simples restaurante português, na companhia deste herói de 64. Parece que seu destino é carregar vítimas da política brasileira: uma fatal, outra irrelevante.

Antônio Brotas não faz parte das lembranças locais daquele instante, mas a história precisa recuperar seus heróis e ele é um deles. O professor correu mais riscos de ser morto do que qualquer um de nós, salvo os que foram sacrificados e saíram carregados da calçada da Av. Dantas Barreto, para o céu da história do Brasil e das lutas revolucionárias, naquele Primeiro de Abril transformado em Dia da Verdade da opressão, da reação, do obscurantismo, da repressão e do autoritarismo.

Este texto é parte da Série 1964 – Memórias de Abril, um resgate coletivo e fragmentado da história.

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