Clemente Rosas

Sunset.

Sunset.

O escritor Aníbal Machado, pai da teatróloga e mestra em ficção infantil Maria Clara Machado, e irmão de Cristiano Machado, candidato dos comunistas à presidência da república em 1950, constitui um caso raro na literatura: ganhou notoriedade com apenas um de seus contos.  “Viagem aos Seios de Duília” é o seu título, e marca presença em todas as antologias até hoje editadas no país.

Nele, conta-se a história do seu Zé Maria, funcionário público solitário que, ao aposentar-se, sente a vida vazia, e não se satisfaz com os lazeres dos círculos de aposentados como ele.  Em casa, no então bucólico bairro de Santa Tereza, no Rio, imerso em reflexões, evoca, de repente, episódio de sua adolescência, em remota cidade do interior de Minas Gerais.  A jovem Duília, que seguia uma procissão, sentindo-se observada por ele, tem um impulso de irreverência, e, fugindo às vistas dos demais acompanhantes, exibe-lhe, num relance, os seios nus: “Quer ver?  Quer ver mais?”.  E nada acontece na sequência, além daquele deslumbramento passageiro.

Seu Zé Maria, então, concebe o plano de retornar à sua terra de origem e rever a criatura que lhe havia proporcionado aquele êxtase momentâneo, na esperança de que isso lhe pudesse trazer de volta as emoções da juventude e o gosto pela vida.  Parte sem plano de regresso, e, ao cabo de uma viagem que começa de trem e termina penosamente em lombo de burro, chega à cidadezinha e encontra a sua antiga musa.  Não mais a Duília, é claro, mas a Dona Dudu, professora aposentada, viúva e cheia de filhos, que não o reconhece.  Ao apresentar-se e tentar rememorar a cena, da qual a Dona Dudu possivelmente não se lembraria, dá-se conta da ilusão em que mergulhara.  Sente que o encanto do passado estava perdido, e nada teria a esperar do futuro.  Chora, e é consolado pela  velha professora, que, vislumbrando enfim a razão do seu desencanto, esconde as próprias lágrimas.  E ele se retira, desaparecendo nas sombras da noite que cai sobre a pequena cidade, em cenário adequado ao epílogo.

Refletindo sobre a história do velho funcionário, ocorreu-me pensar se haveria registro, no meu passado, de episódio comparável de arrebatamento.  É certo que não configuro bem o caso do nosso personagem: tenho mulher, filhos e netos, além de irmãos e sobrinhos.  Não sou, nesse sentido, um solitário, embora traga comigo aquela solidão radical, inerente à condição humana, de que fala Miguel Torga, o escritor português, e que carregamos desde que deixamos o “materno lago amniótico, onde boiavam nossos corpos, sem alegria e sem dores”.  Mas a veleidade de reviver emoções da juventude lateja no peito de qualquer idoso.

Para minha surpresa, o momento de enlevo que me ressurge é bem mais sutil.  A minha Duília era uma namoradinha de olhos amendoados, de quem a vida me separou, por outras seduções que já não vale a pena lembrar.  Estávamos sentados, de mãos dadas, em um banco da lagoa do Parque Solon de Lucena, aprazível recanto no centro da cidade de João Pessoa, que pode causar inveja a qualquer capital nordestina.  Era aquela hora fagueira da tarde, em que as sombras se alongam e o brilho do sol se faz mais dourado.  Completando o cenário, uma lua prematura mostrava o rosto ainda na luz declinante do dia, lançando reflexos prateados nas águas da lagoa.  Assim embevecidos, fomos encontrados pelo poeta Vanildo Brito, companheiro de geração e de roda literária, que nos chamou a atenção para a magia do quadro.

Mas por que recordo isso agora?  Talvez apenas porque a poesia, que nos chegou nas palavras daquele amigo, tem o dom de transfigurar a realidade, perenizar emoções, fixar memórias.  Minha Duília, que, hoje casada e mãe, imagino feliz, talvez também não guarde lembrança daquele momento. Mas se o acaso a fizer ler estas linhas, espero que lhe sejam amenas, como o são para mim agora, ao escrevê-las.