Fernando da Mota Lima

A morte de Gabriel García Márquez simboliza o silêncio definitivo da voz ficcional que elevou ao mais alto nível uma inusitada explosão literária cuja repercussão internacional ficou conhecida como o boom da América Latina, também como o realismo mágico, conhecido ainda como o realismo fantástico, que integrou a literatura latino-americana, notadamente a hispano-americana, aos circuitos hegemônicos da cultura ocidental. De repente, um grupo de jovens escritores de variada procedência, todos residindo fora dos seus países de origem, irrompeu na cena literária internacional saudado com entusiasmo pela crítica e por um público amplo e deslumbrado pela descoberta de uma realidade remota, não raro exótica, mas transfigurada pela força imaginativa de tantos talentos novos. Na primeira linha deste grupo distinguem-se Julio Cortázar (argentino), Carlos Fuentes (mexicano), Mario Vargas Llosa (peruano) e Gabriel García Márquez (colombiano). Todos lançaram no decorrer dos anos 1960 obras marcantes que inscreveram a América de língua espanhola no mapa da literatura internacional. Mas foi o último, ao lançar na Argentina em 1967 Cem anos de solidão, quem alcançou a mais rumorosa consagração consolidando em definitivo o prestígio da literatura hispano-americana.

A primeira geração de leitores de García Márquez configurou-se nos anos 1960 e 1970 associando intimamente política e literatura. Diria que a primeira foi determinante para a adesão apaixonada do leitor brasileiro à literatura hispano-americana. De repente, duas metades cindidas – a América de língua espanhola e a de língua portuguesa – começaram a se corresponder movidas por ideais políticos comuns e inspiradas por um mito revolucionário passível de sacudir as estruturas arcaicas e autoritárias do continente. O mito que virou pelo avesso a trajetória de tantos militantes, sobretudo os jovens incendiados pela febre da utopia política, identificou na Revolução Cubana sua fonte inspiradora e marco irradiador. Os escritores acima mencionados também traduziram na obra e na prática política, em graus variáveis, sua adesão a esses ideais. Embora integrado a essa atmosfera ideológica e literária, o Brasil fica um tanto à margem da repercussão internacional do romance latino-americano. Há quem atribua isso a artimanhas do mercado literário internacional, também à inegável difusão da língua espanhola, incomparavelmente maior do que a portuguesa. O fato é que, apesar de ostentar valores literários comparáveis aos melhores hispano-americanos beneficiados pelo boom, quase nenhum brasileiro ingressou nesse grupo de eleitos. Ocasionalmente incluía-se Guimarães Rosa, mas sua posição foi sempre marginal. É claro que Jorge Amado e Érico Veríssimo, líderes indisputáveis no mercado literário brasileiro, tinham já um público amplo no estrangeiro. Mas esse é um fenômeno independente do que considero neste artigo.

Vivendo fora da Colômbia desde o início dos anos 1950, García Márquez tinha já publicado vários romances antes da consagração imediata e definitiva decorrente da publicação de Cem anos de solidão. As obras que precedem esta são já ambientadas em Macondo, que se tornou um lugar mítico tão extraordinário como o condado imaginário de Wessex, de Thomas Hardy e o de Yoknapatawpha de William Faulkner, cuja influência sobre a obra de García Márquez e Vargas Llosa é reconhecida por ambos. No entanto, cotejada com tudo que a precedeu, Cem anos de solidão constitui um salto de delirante invenção imaginativa. Por isso sua consagração como obra-prima indisputável foi imediata.

Um fato merecedor de relevo em Cem anos de solidão, assim como no conjunto das grandes obras integradas à irrupção do romance hispano-americano na cena internacional, consiste no reconhecimento não apenas da crítica, mas também do grande público. Embora García Márquez seja um engenhoso artesão das formas literárias, capaz de integrar na sua atividade criadora fontes locais e universais, ou mais propriamente europeias, sua obra é perfeitamente acessível ao grande público, que por isso logo a acolheu com vivo entusiasmo. O mesmo se observa com relação à obra dos demais integrantes do grupo ao qual me refiro desde as primeiras linhas deste artigo. Evidentemente nunca constituíram uma unidade em qualquer sentido, nem mesmo no ideológico, ou estritamente político. Seria possível dizer que da Revolução Cubana ao final dos anos 1960 havia uma unidade ideológica substancial entre eles. No entanto, acontecimentos como a Primavera de Praga, esmagada pelas forças armadas da União Soviética, e a questão dos direitos civis em Cuba romperam essa provisória unidade.

A dissensão é mais evidente na trajetória de García Márquez contraposta à de Mário Vargas Llosa. Além de grandes amigos, foram até vizinhos quando moraram em Barcelona, Vargas Llosa publicou em 1971 uma volumosa obra dedicada ao conjunto da obra de García Márquez até Cem anos de solidão. Fruto de uma tese de doutorado, a obra intitula-se História de um deicídio, título que sugere o sentido fundamental da interpretação proposta pelo autor. O deicida, como sabemos, é aquele que mata Deus. Segundo Vargas Llosa, é isso o que García Márquez faz ao reinventar literariamente a realidade. Por isso o criador literário é um rebelde que se volta contra Deus e sua criação, o mundo real como empiricamente o apreendemos. Noutras palavras, prendendo-me ao caso que considero, o rebelde García Márquez mata Deus ao reinventar Aracataca, seu lugar de origem. Daí procede Macondo, universo imaginário criado pela imaginação delirante de García Márquez, deicida e competidor de Deus. Macondo se entranhou de forma tão profunda na imaginação do leitor, sobretudo do colombiano, que a população de Aracataca chegou a promover uma eleição para mudar o nome do lugar. Por pouco Aracataca não se tornou Macondo. Essa vitória da realidade é contudo aparente, pois Macondo vive e continuará vivendo na geografia imaginária de cada leitor a cada leitura que faça do livro. Por isso não é preciso ser profeta para prever que Macondo e Cem anos de solidão, assim como outras das obras de García Márquez que não me aventuro a citar com a sólida convicção do profeta, sobreviverão enquanto houver leitor de obra literária. Portanto, não seria exagero afirmar que a imortalidade de García Márquez está assegurada.

Na intimidade García Márquez era conhecido apenas como Gabo. Se podia gabar-se de matar Deus, segundo a interpretação de Vargas Llosa, conosco compartilhava a mortalidade que tanto nos assombra. A prodigiosa imaginação mítica da fração americana entranhada na sua obra maquinou muitas formas de vencer a morte. A resistência contra nossa mortalidade se traduz nitidamente na religiosidade exuberante, na tradição da literatura oral do povo secularmente imune às formas letradas da cultura, nas mitologias indígena e africana, na linguagem ricamente imaginativa do povo que se vale de eufemismos e metáforas em narrativas tão delirantes quanto as que lemos no repositório mítico de Macondo para anular a morte. Embora ateu e deicida, Gabo impregnou-se de forma tão profunda desse manancial mítico que por certo tramou para si próprio uma imortalidade para além da que lhe assegura sua obra literária. Quero noutras palavras dizer que não me espantaria saber que tramou algum pacto com Deus ou com as forças míticas de Macondo para migrar para o céu dos ateus.

Macunaíma, uma das mais luminosas matrizes dessa tradição mágica e realista na qual se inscreve a obra de Gabo, subiu ao céu conduzido por um cipó plantado no fundo da mata virgem. Lá chegando para repousar na imortalidade estelar, foi providencialmente protegido por Pauí-Pódole, que conhecemos como o Cruzeiro do Sul. Reza a lenda magistralmente narrada por Mário de Andrade que Pauí-Pódole transformou Macunaíma na constelação da Ursa Maior depois de jogar três pauzinhos para o alto e fazer encruzilhada. Não duvidem de que algum mago da estirpe dos Buendía inventada por Gabo tramou algo semelhante e dele fez uma estrela que doravante brilhará na eternidade inútil do céu, com certeza o céu dos ateus. Que deus o acolha e continuem competindo para reinventar nossa confusa humanidade