Nabokov, Vladimir. Lolita. Rio de Janeiro: O Globo; São Paulo: Folha de São Paulo, 2003 (tradução de Jorio Dauster).
Teresa Sales

julho de 2014

Foto de David Hamilton – The quiet front.

Foto de David Hamilton – The quiet front.

Lolita, luz de minha vida,

labareda em minha carne.

Minha alma,

minha lama.

Lo-li-ta:

a ponta da língua descendo em três saltos pelo céu da boca

para tropeçar de leve, no terceiro, contra os dentes.

Lo. Li. Ta.

 

Este é o primeiro parágrafo do controvertido livro de Wladimir Nabokov. Não está escrito assim como, de propósito, o fiz acima. Se o leitor ler alto e compassado, sentirá toda a lascívia contida nessa simples frase. Eu diria que é o tema principal do livro.

Concluído em 1954, foi recusado por quatro editoras norte-americanas, sendo publicado em 1955 por uma editora francesa. Foi o primeiro livro de Nabokov escrito em inglês e não na sua língua materna, o russo. Depois da edição francesa, foi finalmente publicado nos Estados Unidos em 1958.

Desde então, nas várias edições e re-edições, Lolita tem sido tema de muitas controvérsias, inclusive sobre os limites entre a pornografia e o erotismo na literatura. O prefaciador do livro, John Ray Jr, afirma que a obra não contém um único termo obsceno. Porém é o próprio Wladimir Nabokov quem avalia, a posteriori, depois de criticar acidamente a hipocrisia dos conselhos editoriais que recusaram a publicação de seu livro nos EUA, o seu conteúdo erótico.

Ele faz questão de se distanciar da pornografia, associada à mediocridade, ao comercialismo e a certas regras de narração, sobretudo na que consiste em alternar cenas sexuais num crescendo em que o prazer estético cede lugar à simples estimulação sexual com o emprego de palavras vulgares. Para ele, “um romance só existe na medida em que me proporciona o que chamarei grosso modo de volúpia estética, isto é, um estado de espírito ligado, não sei como nem onde, a outros estados de espírito em que a arte (curiosidade, ternura, bondade, êxtase) constitui a norma”[1].

A pedofilia ocupa há pouco tempo (não por acaso pari passu aos estatutos de direitos das crianças e adolescentes) espaço quase diário na imprensa e nas redes sociais. Nestas, inclusive, também como prática. Porém, a controvérsia do livro de Nabokov é talvez menos por expor esse tema do que por escancarar portas e janelas da devassidão.

Nabokov já era escritor conhecido e valorizado na Rússia e na Europa quando se lançou no projeto de escrever Lolita. Antes de chegar a Lolita, escrevera um conto em russo, onde a ninfeta era francesa e o enredo se passava na região da Provença e em Paris. Achava que tinha destruído esse texto quando se mudou em 1940 para os Estados Unidos, onde passou a lecionar literatura russa e francesa. Contudo, depois de já ter publicado Lolita, não só encontrou os originais, como mudou sua própria avaliação, considerando-o com valor literário. Só foi publicado, porém, postumamente, por seu filho que o traduziu para o inglês. No Brasil foi intitulado O mago[2]

O livro Lolita teve, portanto, uma gênese em outro escrito, assim como Lolita personagem teve sua gênese em outra ninfeta, Annabel. Com uma diferença fundamental: a principal personagem do livro (que não é Lolita e sim o narrador/personagem Humbert) vive uma intensa e fugaz paixão correspondida com Annabel, quando também ele ainda era um adolescente de 13 anos.

Haveria uma história verídica por trás do relato de Lolita (o julgamento de um crime), conforme deixa entrever o Prefácio e algumas passagens do romance. Isso explica a narrativa na forma de uma confissão (reminiscência, memória) escrita em primeira pessoa pela personagem Humbert na prisão. Ele passa rápido pelas suas primeiras lembranças para evocar sua infância num hotel de luxo de seu pai na Riviera Francesa. Nascido em 1910, Humbert perdeu a mãe, morta por um raio, quando tinha três anos, sendo criado pelo pai e a tia. “Criança feliz e saudável, cresci num mundo luminoso de livros ilustrados, areias alvas, laranjeiras, cachorros fiéis, panoramas marinhos e rostos sorridentes”. (p. 12)

Nas primeiras quarenta páginas do livro as memórias de Humbert são leves. Mesmo revelando seu desejo voltado para ninfetas, sua vida inclui apenas olhares furtivos de voyer em jardins públicos; um casamento de conveniência, fracassado ao terceiro ano; e a herança de um tio que o leva a se mudar para os Estados Unidos. Nessa ocasião, a esposa não se dispõe a acompanhá-lo porque já vinha compensando a indiferença sexual do marido com um amante.

Se tivesse que nomear as cem páginas restantes da primeira parte do livro, o título seria Sedução. O acaso leva Humbert a conhecer Lolita na própria casa dela, numa cidadezinha da Nova Inglaterra (no caso, Ramsdale, no estado de New Hampshire) onde vive com a mãe viúva que alugou um quarto ao forasteiro que vem em busca de sossego para se recuperar da segunda internação psiquiátrica, desde que chegara aos Estados Unidos.

Nas palavras da confissão de Humbert, “o que desejo ressaltar é que a descoberta dela foi uma consequência fatal daquele ‘principado à beira mar’ em meu tétrico passado. Tudo o que se passou entre os dois eventos nada mais foi que um tatear no escuro, uma série de erros crassos, falsos rudimentos de alegria. Tudo o que tinham em comum os unia num único episódio (…) Os vinte e cinco anos que vivi desde então reduziram-se a um ponto latejante, e se desvaneceram”. (p. 41)

Essa parte do livro que estou nomeando de Sedução é de grande beleza literária no mais puro erotismo. As situações limites, às quais o antropólogo americano Victor Turner chamou de liminaridades [3], são as mais propícias para expressar sentimentos fortes, tal como o erotismo. No caso, trata-se de um erotismo proibido, de uma tara, na qual a situação de liminaridade fica ainda mais evidente.

Nabokov se vale de vários recursos de linguagem, inclusive um diário, para expressar esses sentimentos eróticos. Esse diário de 17 dias ininterruptos cobre o período de um mês de férias escolares da cidade de Ramsdale. Descreve simplesmente cenas observadas por um voyer, misturadas com algumas considerações sobre a natureza das ninfetas. “O que me leva à loucura é a natureza dupla desta ninfeta – talvez de todas as ninfetas; essa mistura, em minha Lolita, de uma infantilidade terna e sonhadora com uma espécie de estranha vulgaridade, derivada dos rostinhos atrevidos que aparecem nos anúncios e nas fotos de revista, das rosadas imagens de criadinhas adolescentes na Inglaterra (cheirando a suor e a feno), das jovens prostitutas disfarçadas de meninas nos bordéis do interior” (p. 46). A concepção desenvolvida por Nabokov sobre ninfeta influenciou esse próprio conceito. No dicionário de Aurélio, “menina púbere voltada para o sexo e/ou que desperta desejo sexual”.

Uma das melhores cenas sutilmente erótica (fazendo jus à sutileza que perpassa todo o erotismo do livro) de um dos filmes que usou Lolita como roteiro, é a focada no espaço aberto da casa que a mãe de Lolita, Charlotte, chama de piazza. Os três, Lolita no meio, estão num balanço conversando e, sem que a mãe perceba, há um jogo de sedução e toques quase inocentes entre Humbert e a ninfeta . Refiro-me não ao primeiro filme, dirigido por Stanley Kubrick, mas sim ao que se lhe sucedeu, dirigido por Adrian Lyne (1997), tendo Humbert magnificamente interpretando por Jeremy Irons.

Porém o cinema, com todos os recursos audiovisuais de que dispõe, não conseguiu transmitir com tanta força sensual, a beleza descrita por Nabokov usando apenas o recurso da palavra. Estou certa de que o leitor não se aborrecerá com a longa citação, da qual infelizmente precisei cortar partes para não me alongar em excesso. “Quero que meus doutos leitores participem da cena que vou recriar; quero que a examinem em todos os seus pormenores e verifiquem quão prudente, quão casto foi aquele episódio, apesar de seu sabor de vinho doce (…).

“Personagem principal: Humbert, o Cantarolador. Hora: manhã de domingo em junho. Lugar: sala de estar ensolarada. Acessórios: sofá velho de forro listrado, revistas, vitrola, bugingangas mexicanas (…). Ela estava usando um bonito vestido estampado que eu vira antes uma única vez: saia rodada, cintura justa, mangas curtas, tecido de fundo rosa com quadrados de um rosa mais escuro. Para completar o jogo de cores, ela havia pintado os lábios e segurava com ambas as mãos uma linda, banal e edenicamente rubra maçã. No entanto, não estava calçada para ir à igreja e a bolsa branca dos domingos fora abandonada perto da vitrola.

“Meu coração batia como um tambor quando ela sentou a meu lado no sofá, a saia leve inflando-se como um balão para depois ir murchando lentamente. Jogou para o alto a fruta luzidia, no ar onde já dançavam cintilantes partículas de poeira, e a apanhou com as duas mãos, produzindo um som oco e seco.

“Humbert Humbert apoderou-se da maçã.

“’Me dá’, ela suplicou, revelando o brilho marmóreo das palmas das mãos. Ofereci-lhe a maçã. Pegou-a num movimento veloz e deu-lhe uma mordida, meu coração derretendo-se como neve sob uma fina camada de pele carmesim. Com a agilidade simiesca que lhe era característica, a ninfeta arrancou de minhas mãos abstratas a revista que eu havia aberto”. (O autor descreve nesse ponto, minuciosamente a “luta” dos dois pela posse da revista, até que), “com absoluta simplicidade, a impudente criança pousou as pernas sobre meu colo.

“A essa altura eu me encontrava num estado de excitação que beirava a insanidade, mas possuía também a astúcia dos loucos. Sentado ainda no sofá, consegui harmonizar, por meio de uma série de movimentos furtivos, minha recôndita lascívia com suas pernas inocentes. (…) cautelosamente aumentei a fricção mágica que pouco a pouco ia dissolvendo (num sentido alucinatório, se não factual) a textura fisicamente irremovível mas psicologicamente bastante friável do obstáculo material (pijama e robe) que se interpunha entre o peso de duas pernas bronzeadas de sol, atravessadas sobre meu colo, e o tumor oculto de uma terrível paixão (…) Ligeiras contrações percorriam suas pernas, esticadas sobre meu colo em chamas; acariciei-as de leve (…) e cada movimento seu, cada ondulação sua, ajudava-me a esconder e aperfeiçoar o sistema secreto de correspondência tátil entre a bela e a fera, entre a ferocidade amordaçada e prestes a explodir dentro de mim e a beleza das reentrâncias de seu corpo por baixo do inocente vestidinho de algodão.

“Sob as pontas de meus dedos-bailarinos corria, imperceptivelmente eriçada, a pelugem de suas pernas (…). Quando ela se retesou para jogar na lareira os restos da demolida maçã, seu jovem peso, suas pernas candidamente impudicas e seu roliço traseiro agitaram meu colo tenso e torturado, imerso ainda em seu labor clandestino; e, de repente, uma misteriosa mudança se operou em meus sentidos. Penetrei num plano de existência onde nada mais importava senão a infusão de prazer que borbulhava dentro de meu corpo. (…)

“Suspenso à beira daquele voluptuoso abismo, continuava a repetir palavras ao acaso que se misturavam às dela, como alguém que falasse e risse em pleno sono, enquanto minha bem-aventurada mão subia por sua perna ensolarada até o ponto em que a sombra da decência o permitia (…) e minha boca gemente, senhores membros do júri, quase tocou seu pescoço nu enquanto eu comprimia contra sua nádega esquerda os últimos espasmos do mais longo êxtase que qualquer homem ou monstro jamais conheceu.”

Nessa longa citação, como no livro inteiro, o narrador escreve a confissão como se estivesse fazendo uma peça acusatória contra si mesmo, onde os “leitores” ou os “senhores membros do júri” são explicitamente os narratários.

Depois do êxtase, o clima erótico se ameniza até o final da primeira parte do livro. E a cena dos três no balanço se reproduz de outras formas: quase um triângulo amoroso (Charlotte que deseja Humbert, que deseja Lolita, que não sabe bem se deseja Humbert) no cotidiano acanhado de uma pequena cidade cujo principal atrativo é o banho de lago. A mãe usa da autoridade para mandar Lolita, a contragosto desta, para um acampamento de férias. Ao sair de carro para a viagem até o acampamento, deixa com a empregada uma carta declarando amor e uma proposta de casamento. O segundo casamento de conveniência de Humbert tem dessa vez um componente estratégico: poder ficar perto de sua paixão proibida.

Qual um roteiro cinematográfico, sucedem-se rapidamente cenas que levarão à segunda parte do livro: o casamento, drogas para adormecer a esposa e eximi-lo das “obrigações matrimoniais”, o desespero dela quando lê o diário, o que a leva a uma morte acidental em um atropelamento na rua. Foi tudo mais fácil do que todas as elucubrações de Humbert para desviar Charlotte de seu caminho. A vida havia lhe propiciado não um álibi, mas o afastamento de qualquer interdito para um plano que, também surpreendentemente, foi correspondido. “Vou contar-lhes algo muito estranho: foi ela quem me seduziu”. (p. 134)

A beleza das passagens iniciais de sedução, onde a sutileza, a insinuação e o não dito dão a tônica da narrativa, vão dando lugar a quase um segundo livro que se abre nos últimos capítulos da primeira parte do livro e que tem continuidade na segunda parte, a qual nomeei os insaciáveis prazeres (e dores) do amor ilícito. Passo a palavra ao narrador: “Estou tentando descrever essas coisas não para revivê-las na infinita miséria que é hoje minha vida, mas para separar a dose de inferno e a dose de céu que existem naquele mundo estranho, terrível, enlouquecedor, que é o amor por uma ninfeta. A bestialidade e a beleza se encontram num determinado ponto… (p. 136/37).

A segunda parte do livro também se distancia da primeira por ser um road movie pelos Estados Unidos. Quem conhece pessoalmente ou mesmo pela indústria cinematográfica americana os lugares e as paisagens desse road movie clandestino de Humbert e Lolita, terá dois caminhos a percorrer nessa parte do livro: a relação de encantamento inicial que se deteriora dia a dia, permeada de medo, sentimento de aprisionamento, chantagem ilimitada chegando quase aos limites da prostituição de uma adolescente; e as belas descrições de paisagens, motéis e estradas.

“Vez por outra, na vastidão das planícies, imensas árvores avançavam em nossa direção e se agrupavam amedrontadas à beira da estrada, proporcionando um retalho de sombra humanitária sobre uma mesa de piquenique, enquanto na terra marrom salpicada de sol, espalhavam-se copos de papel amassados, tâmaras e palitos de sorvete.” (p. 155). A descrição de um posto de gasolina à p. 215 caberia junto à pintura com o mesmo tema de Hopper, que imortalizou na sua arte, tal como Nabokov nesse livro, cenas do cotidiano americano.

À minha curiosidade de como um professor de origem russa conseguira tal amplidão de conhecimento da paisagem e das estradas americanas, tive resposta apenas no pósfácio citado na nota 1. Todos os verões, ele e sua mulher saiam para caçar borboleta. “As etiquetas que identificam o local de captura dessas borboletas farão o deleite de algum pesquisador do século XXI que se interesse por biografias esotéricas. Foi nesses quartéis-generais que dediquei as noites e os dias nublados à enérgica retomada da composição de Lolita.” (p. 315)

 

[1]Nabokov, W. Sobre um livro intitulado “Lolita”, posfácio a Lolita, 2003:317

[2] São Paulo: Nova Fronteira, 1987.

[3] Turner, Victor. Dramas, Fields, and Methaphors – Simbolic Action in Human Society. Ithaca and London: Cornell University Press, 1974.