Fernando da Mota Lima

Meu Tempo é Hoje é um filme justamente dedicado à música de Paulinho da Viola, um dos mais notáveis compositores e intérpretes populares da música brasileira. Em apenas alguns minutos a câmera transita das ruas populares do Rio de Janeiro para uma livraria, a Elizart; daí para o samba “Meu mundo é hoje”, de Wilson Batista, que com uma variante ou paráfrase confere título ao filme. Embora o samba seja de um outro compositor, Paulinho da Viola sempre gravou e renovou como intérprete muitos outros compositores, ele anuncia o núcleo significativo do filme. Daí se desloca para a oficina de um relojoeiro; daí para a própria oficina de Paulinho, artesão por vocação. As imagens e alusões ao relógio, medida e metáfora do tempo, repõem o tema do tempo e da memória, agora diretamente associados à música de Paulinho da Viola. Mas o filme pouco se detém neste tema, o tempo e suas variantes, que será outras vezes retomado ao longo da narrativa.

A câmera  se move para o ambiente onde Paulinho se reúne com a Velha Guarda da Portela, sua escola de samba de formação e devoção. Este é um outro ponto forte do filme, pois traduz algo da riqueza do samba popular carioca, em particular algo dos vínculos profundos de amizade, expressão artística e integração cultural do compositor a seu mundo de origem, ao qual se manteve fiel ao longo da vida. Aí, à volta de uma grande mesa onde a música ata com poderoso nó comunitário os integrantes de uma cultura tecida pela mescla de raças e etnias, de elementos provenientes da tradição e do presente, de ecos arcaicos e rurais recompostos num espaço urbano cuja imprecisão borra fronteiras convencionalmente reconhecíveis em países onde os processos de desenvolvimento da modernidade fixaram linhas de distinção bem nítidas, aí a música celebra a vida com sua força única de socialização.

É nesse contexto que Paulinho é acolhido e celebrado como padrinho e grande difusor da música dos portelenses, assim como humildemente se reconhece discípulo daquele grupo de músicos, vários simplesmente anônimos para o grande público, em cujo círculo  cresceu absorvendo a matéria e a técnica e os meios expressivos que embasam sua  música. Quem também discretamente comparece a estas cenas é Cristina Buarque, irmã de Chico. Tão discretamente, assinale-se, que não é sequer identificada. Ela canta, come e bebe em meio ao grupo, dissolvida no anonimato onde logo sobressaem os músicos e compositores mais brilhantes: César Faria, pai de Paulinho e violonista do Época de Ouro, entre outros grupos notáveis; Monarco, compositor e líder da Portela; Élton Medeiros, parceiro de longa data de Paulinho.

Mais adiante a cena desloca-se para uma outra reunião musical, esta dentro de uma casa, e aí podemos identificar Cristovão Bastos (o grande pianista parceiro de Chico Buarque e Aldir Blanc), Luciana Rabello e talentos anônimos da música carioca. Essas cenas de celebração grupal, de festa agregadora de tipos culturais e artísticos bem diferenciados, se refaz na casa de Zeca Pagodinho, onde uma grande festa do samba reúne Paulinho, Hermínio Bello de Carvalho, Zuenir Ventura, autor do argumento e coautor do roteiro do filme, o crítico de música Sérgio Cabral e muitos outros.

Paulinho é um artesão que desde muito se adestrou no uso das ferramentas. Esse seu gosto pelo trabalho manual se estende ao conserto de relógios e à reconstrução de automóveis raros. Além de dignificador do trabalho humano, sobretudo numa cultura cuja longa e cruel experiência escravista reduziu-o à atividade socialmente aviltante, o artesanato importa na sua vida como fator de disciplina e terapia, inclusive para aliviar as tensões decorrentes da própria atividade de criação musical. A música, assim como a arte em geral, é  indissociável do trabalho que necessariamente supõe disciplina e aplicação continuada. Somente no reino mistificador do hedonismo festeiro e consumista se impõe uma concepção deformadora da arte e da música como puras expressões de aprendizagem mágica, de talento, espontaneidade e prazer. Como todo artista verdadeiro, Paulinho sabe que a música é fruto do trabalho, da disciplina, da tensão criadora que muitas vezes carece de buscar alívio no artesanato e noutras formas de ocupação terapêutica.

Ocupo-me agora do núcleo central do filme comprimido no título e na letra do samba de Wilson Batista. Lembro antes disso que Wilson é confessadamente um dos compositores prediletos de Paulinho. Lembro-me ainda, introduzindo aqui uma nota de memória pessoal, de quando o conheci em Recife em meados dos anos 1970, no auge, portanto, do seu sucesso como autor e intérprete de música popular. Jovem tímido e ainda bem inseguro, fui levado por Jomard Muniz de Britto para jantar com Paulinho e D. Hélder Câmara num apartamento da Av. Conde da Boa Vista onde amigos hospedavam o cantor que horas mais tarde fez um belo e concorrido show no Teatro do Parque.

Lembro-me de que falamos de Mário de Andrade, creio que por sugestão de Jomard, que com seus arroubos oswaldianos e glauberianos me apresentou como um grande conhecedor do assunto. Fiquei muito encabulado, até porque as palavras de Jomard não passavam de excesso típico do seu modo de ser e deformar surrealmente a realidade, e prontamente desativei qualquer expectativa dos presentes. Para minha surpresa, Paulinho falou um pouco de Mário, dando provas de ser um leitor perceptivo, logo se desmanchando em desculpas injustificadas, que antes traduziam sua humildade e timidez. Foi mais um motivo para que desde então o admirasse por suas raras qualidades pessoais.

A caminho do teatro, pouco antes do show, fui conversando já bem animadamente com ele. A meio disso me declarou sua profunda admiração por Wilson Batista. Lembro-me bem de que me disse que o considerava o maior sambista brasileiro. Fiquei de cara no chão, pois então nada sabia de Wilson Batista. Quero dizer, conhecia dois sambas dele, mas  não associava os sambas ao autor. Foi em parte devido a esse breve encontro que pouco mais tarde me interessei em conhecer a música de Wilson Batista. Seu samba, que dá título ao filme, condensa e anuncia, já antes assinalei, o núcleo central da obra que comento.

Wilson Batista traduz na linha do realismo cru uma noção do tempo muito similar à dos filósofos estoicos. Evidentemente, é também a que Paulinho da Viola abraça, tanto que parafraseia o título do samba para identificar o documentário e alertar o espectador atento para o sentido profundo da obra. Se a ideia não foi dele próprio, será talvez mais apropriadamente atribuível a Zuenir Ventura, autor do argumento e coautor do roteiro. Penso que o realismo contido nos versos do samba de Wilson Batista expressa muito da crua realidade vivida por pessoas de sua condição social. Elas têm consciência da vida precária que vivem, sempre exposta à incerteza e ao acaso que tão frequentemente irrompe no cerne de percursos traçados à deriva das circunstâncias.

Se o espectador tem acaso o privilégio de ignorar essas opressões miúdas e cotidianas que assolam a vida do nosso povo pobre, se nunca sequer observou à distância a realidade crua em que se move, basta que atente para algumas cenas do filme que bem espelham a precariedade dessas vidas cujo cotidiano se  desdobra rente à linha da carência e da desordem. O que é espantoso no universo social do qual brotou a música de Wilson Batista, também comum a muitos dos personagens e figurantes do documentário, é essa paixão espontânea pela vida, essa alegria e prazer com que a celebram através da música, antes de tudo.

Tentando esclarecer para Zuenir Ventura sua concepção do tempo, Paulinho pontua sua relação profunda com a música de Pixinguinha, sabidamente bem anterior à sua geração. O que visa ressaltar ao recuar ao tempo de Pixinguinha é o sentido profundo da tradição musical na qual se inserem sua música e sua memória do tempo individual e coletivo. Seu vínculo com a tradição não é confundível com saudade ou nostalgia  porque, para ele, a obra que fica, a que sobrevive ao tempo torna-se por definição intemporal. Logo, amar a música de Pixinguinha não é querer retornar ao passado, ou reverter o presente a um tempo ideal.

A tradição viva, assim como a memória do que de mais precioso vivemos, abole as distinções convencionais entre passado e presente, assim como converte o futuro, o ainda vazio de ser, em um modo de atualização do tempo que se concentra em uma forma singular do presente. Quem assim se põe em face do tempo não tem a presunção, de resto descabida, de regredir no tempo ou idealizar o passado com o verniz ilusório da nostalgia. Como Paulinho sabiamente observa, a saudade suprime a história e a vida, ela nos transpõe para um tempo ilusório, já que existe fora do tempo, ou como tempo ideal descolado do tempo efetivamente vivido. A saudade, ou ainda a nostalgia, seria nesse sentido antes de tudo um sintoma de infelicidade no presente. Por fim, Paulinho da Viola sintetiza sua concepção dos tempos convergentes, abolindo assim as noções espúrias de saudade e nostalgia, citando dois versos de “Dança da Solidão: “Quando penso no futuro /não esqueço o meu passado”.

Essas ponderações ligeiras, que entretanto tanto ressoam na minha concepção pessoal do tempo, daí o acento que a ele imprimo nesse comentário do filme, de algum modo conduzem à concepção do tempo característica dos filósofos estoicos. Para eles o presente é o único tempo real. Portanto, só o presente importa, pois o passado é irreversível, enquanto o futuro é por definição o que ainda não é e de resto não sabemos o que será. Podemos evidentemente antecipar algumas coisas, antever o futuro próximo que por vezes se anuncia confusamente na linha do presente, mas o fato é que o futuro, compreendido enquanto categoria do tempo vazio de ser, o futuro assim compreendido, e é esta sua natureza distintiva e singular, o futuro é imprevisível. Dizendo-o de modo mais simples, o futuro não é, ou não é ainda. Portanto, se existe sabedoria na nossa relação com o tempo, ela consiste no reconhecimento e acomodação do nosso ser dentro da realidade presente.

É difícil, e portanto sempre arbitrário, escolher num conjunto de obras musicais tão belas, refiro-me evidentemente à música composta por Paulinho da Viola, as três que prefiro. Feita esta observação necessária, diria que as minhas são “Sinal fechado”, “Coisas do mundo, minha nega”, “Para um amor no Recife”, e “Choro Negro”. Como leem, não são três, mas sim quatro.

Paulinho da Viola condensa na sua música e na sua personalidade algumas das características da cultura popular brasileira que mais amo e admiro: o refinamento harmônico e melódico, a elegância, a delicadeza, a generosidade integrada a um senso de socialização que desgraçadamente tende a desaparecer do áspero horizonte do presente, refugiando-se em nichos quase imperceptíveis. O mais grave é constatar quão pouca é nossa consciência dessa perda, a perda de um sentido de expressão humana que constituía o melhor da nossa enraizada cordialidade cultural. Se bem avalio, o que no presente nos sobra e se acentua é a dobra negativa da cordialidade, a que suprime dos vínculos pessoais e afetivos as qualidades tão admiravelmente expressas nesse filme consagrado à música de Paulinho da Viola.