Breve reflexão de sabor arendtiano sobre o projeto (consciente ou não) de destruição da oikos pelo juiz Sérgio Moro

Luciano Oliveira

 Dever ou fazer amor – Família na Grécia antiga em preparativos para a atividade sexual.

Dever ou fazer amor – Família na Grécia antiga em preparativos para a atividade sexual.

Nas últimas semanas, assustado com a “tagarelice democrática” que ensurdeceu a sensatez no país, mais de uma vez senti o impulso de escrever alguma coisa. Mas sou lento e vago, como diz um amigo meu. E quando começava a pensar no que escrever, sentia-me atropelado pelos acontecimentos que se sucediam vertiginosamente. Era como se o próprio tempo tivesse enlouquecido. O que tinha a duração de uma semana se transformava em dia; e depois, o dia se transformava em horas. (No momento em que escrevo [10 horas e 27 minutos de sábado, 19.03.16], com essa guerra de liminares e cassação de liminares a respeito da posse de Lula, as horas estão se transformando em minutos…) Assim, resignei-me a ficar no meu canto, assustado. Na última quarta-feira, todavia, quando assisti à divulgação (não como “vazamento”, mas como uma publicidade dada pelo próprio poder judiciário do país) de incontáveis conversas pelo telefone de Lula com diversas pessoas, petistas e não petistas (Eduardo Paes, por exemplo), o que era um susto privado tornou-se num susto público! Nem que seja pelo fato de que uma dessas gravações envolvia a própria Presidência da República, fato que tem mobilizado juristas de alto coturno, coisa que não sou, e sobre o qual não é exatamente o que quero falar.

Antes de prosseguir, permitam-me dizer de onde falo. Como todo mundo, sou suspeito. Em relação a Lula e ao PT, sempre fui, do primeiro, um admirador; do segundo, um eleitor. Porém, quando Lula chegou ao poder e fui vendo as alianças que ele se pôs a fazer, comecei a me perguntar se, para assegurar a famosa “governabilidade”, ele precisava chegar a tanto. Quando, em 2012, Lula foi à casa de Maluf para selar o apoio deste ao candidato do PT que concorria à prefeitura de São Paulo, escrevi um texto, chamado Ate Aqui Cheguei (evidentemente “plagiando” Saramago), onde escrevi: “A troca de afagos entre o ‘ex-sapo barbudo’ de que falava Brizola e um corrupto de coturno internacional, procurado pela Interpol, foi a gota d´água que, de tão enorme, já não cabia no copo quase cheio”. E deixei de ser, como se diz, um petista. No entanto, em 2014 votei em Dilma! Por quê? Porque sou (como acho que todo mundo no fundo é) um apaixonado. E quando vi, na abertura da Copa do Mundo no Brasil, em São Paulo, a presidente da República ser vaiada por aquele povo que podia pagar ingresso para lá estar, fiquei indignado e disse a mim mesmo: “vou votar nessa mulher”. E votei. Há razões mais inteligentes para se escolher o voto, concordo. Mas a minha foi essa, confesso. Devo, já que estou no registro das confissões, dizer que continuo não me regozijando com o que anda se passando em nossas avenidas. Continuo não conseguindo simpatizar com panelaços na Paulista, em Copacabana e em Boa Viagem. No mínimo, acho um acinte com quem, de fato, precisa pensar, hoje, se vai ter o feijão com arroz para colocar no fogão amanhã. Ou seja: muitos e muitos brasileiros.

Isso não quer dizer que sou indiferente à maneira que Lula encontrou para a formidável ascensão social que é a sua. Afinal, ele deve muito daquilo em que se tornou ao carinho e admiração que lhe devotamos durante tantos anos – de resto, algo que não lhe foi dado gratuitamente: Lula é, para desgosto dos “esfomeados” da Paulista, um personagem importante da história do Brasil. Isso é uma coisa. Outra coisa é toda essa dinheirama em que andava refestelado e que agora o afoga. E não me refiro à dinheirama das palestras que, supostamente, andou dando aqui e ali, no Brasil no exterior. Nisso, ele está na sua. Ou seja, ele segue uma tradição que envolve ex-chefes de estado mundo afora: americanos, franceses, ingleses, brasileiros… Mas a polícia federal, o ministério público, o judiciário federal de Curitiba e a grande mídia querem porque querem fuçar essa promiscuidade para, entre outros desideratos, nos convencerem daquilo que todos sabemos. Aqui pra nós: empresários rodando a bolsa para pagarem 200 mil reais por palestra (verdade ou bravata de Luiz Inácio?) estão interessados em aprender outra coisa senão o “caminho das pedras”? Mas, me digam, será que esses mesmos empresários, ao pagarem a Fernando Henrique para palestras desse tipo, estariam interessados em aprender Sociologia?… Oh! Oh! Como diria nosso “príncipe da sociologia brasileira” (de resto, alguém que sempre admirei), “for god’s sake!”. Isso dito, passo à reflexão propriamente dita.

Foi sobretudo a conversa de Lula com Eduardo Paes, prefeito do Rio, que, no ato, remeteu-me às reflexões de Hannah Arendt sobre o que é do domínio do “político” (a polis) e o que é do “domínio privado do lar” (a oikos). O lar é “um local seguro, sem o qual nenhuma coisa viva pode medrar”. E, entre os homens, por mais forte que seja sua tendência para adentrar a “luz pública”, eles continuam precisando da “segurança da escuridão”. Aí, “escolhemos aqueles com quem desejamos passar a vida, os amigos pessoais e aqueles a quem amamos”; aí, o exercício da discriminação e dos preconceitos é legítimo. No domínio público, não. Aí, para começar, estamos submetidos às leis da Cidade. Se as respeitamos por adesão sincera ou mera hipocrisia, isso não tem importância. Num certo sentido, isso sequer faria sentido, porque agir “sinceramente” ou “hipocritamente” exige que sejamos algo com uma identidade fixa e que saibamos o que esse algo é – em relação a que seríamos “sinceros” ou “hipócritas” quando falamos na Praça. Mas não sabemos. Para Arendt, “é altamente improvável” que sejamos capazes de conhecer, nós mesmos, a essência do que somos: “seria como saltar a nossa própria sombra”. Daí que, segundo ela, a esfera pública é o domínio da aparência: o espaço que “passa a existir sempre que os homens se reúnem na modalidade do discurso e da ação”, os “modos pelos quais os seres humanos se manifestam uns aos outros”. Ou seja: na Praça, só o que aparece existe. E, porque aquilo que é do domínio do lar está imerso na escuridão, o que “somos” na oikos não pode, nem deve ter, ingresso na polis. Simples assim.

Pois bem. Desde tempos imemoriais, aquilo que escrevemos aos amigos está protegido pelo direito ao “sigilo de correspondência”; modernamente, aquilo que falamos ao telefone também está protegido por idêntico direito. O juiz Sérgio Moro mandou tudo isso às favas quando, por exemplo, autorizou a divulgação da conversa de Lula com Eduardo Paes, onde, para deleite da Caverna (estou citando Platão, evidentemente), o prefeito do Rio, que não estava falando num palanque, lá pelas tantas disse coisas como “o senhor me para com essa vida de pobre…” Oh! Oh! De minha parte, confesso que achei engraçado. Disso, evidentemente, deduz-se que ele tem nojo de pobre. Se tem? Sei lá! Pode até ter. Mas isso é lá com as negas dele, como se diz. As interpretações podem ser as mais diversas. Que importa a minha? O que importa, para a polis, é a aparência. (Se a essa altura, algum leitor estiver achando que estou fazendo uma apologia da hipocrisia, infelizmente não me fiz entender.)

Pois bem. Fiquei pensando em mim mesmo e em conversas telefônicas que tantas vezes tenho com amigos, em que dou azo a esse tipo de “incorreção política”. Como não consigo saltar sobre a minha própria sombra, acho (apenas acho) que sou um homem de esquerda. E, no entanto, já tirei tanto sarro de Marx em conversas telefônicas com amigos comunistas!… Também acho que não sou machista. Mas já gozei (êpa!) tantas vezes falando das feministas!… Igualmente acho que não sou racista. Mas já ri tanto de piada com negros!… Homofóbico? Também acho que não sou. Mas tem cada história engraçada com gay!… E por aí vai. Sei muito bem que o que estou escrevendo levantaria várias questões. Por exemplo: e as quebras de sigilo telefônico que possibilitaram lançar a luz pública sobre tantos “crimes de colarinho branco”? “Questão prenhe de questões”, como diria o velho Machado. Mas não se pode dizer tudo. “Seria muito longo” – como diz o personagem C. S. Lewis no filme Terra das Sombras. Com o que, para concluir, volto à “velhinha irritante”, como gosto de me referir a Hannah Arendt. (Depois de escrever isso, fiquei pensando: será que chamar alguém de “velhinha irritante” infringiria algum dispositivo do Estatuto do Idoso? Do jeito que as coisas andam, é bem capaz.)

Mas enfim! Arendt tinha como uma de suas características principais a disposição para enfrentar questões difíceis sem medo de enfrentar o que hoje chamaríamos de “politicamente correto”. Se nunca hesitou em chocar seus compatriotas judeus, por exemplo, também nunca hesitou em chocar seus amigos liberais – no sentido americano do termo. Quis imprimir análoga coragem (no meu caso, miúda) no que acabo de escrever. Como ela disse certa feita a propósito de uma das inúmeras polêmicas em que se envolveu, minha “intenção não é esgotar o assunto ou mesmo resolver os inúmeros e difíceis problemas que ele implica”. Mas, ainda citando-a, não escondo a pretensão de que minha tentativa, “mesmo desajeitada”, de enfrentá-los, “possa ajudar a quebrar a perigosa rotina na qual, dos dois lados, a discussão dessas questões ameaça se atolar”.