Helga Hoffmann

Este ano, o Prêmio Nobel da Paz foi para os tunisinos. E eles merecem, por manter viva a esperança de um futuro democrático. Tem toda razão Mohamed Fadhel Mahfoudh, presidente da Ordem Nacional dos Advogados da Tunísia (uma das quatro organizações do “Quarteto” premiado) quando disse na entrevista a Andrei Netto (O Estado de S. Paulo, 10 de outubro de 2015, p. A12) que foi “um prêmio a todo o povo tunisino”. O “Quarteto” não poderia ter feito nada e não teria recebido prêmio algum sem o apoio majoritário da população, em uma série de eventos complicados e dolorosos em que um governo de muçulmanos moderados tratou de combater o terrorismo sem interromper a transição democrática. Aliás, o comunicado do Comitê explicita que, mais que tudo, a intenção do Prêmio é encorajar o povo tunisino a continuar trilhando o caminho de um diálogo pacífico entre os cidadãos, os partidos políticos e as autoridades.
Quem forma o “Quarteto”? E o que tem feito esse “Quarteto”? O Comitê Norueguês do Nobel surpreendeu ao chamar a atenção para a Tunísia, um país pequeno, 11 milhões de habitantes na região do Magrebe, na África. As indicações deste ano haviam somado 227 pessoas e 49 organizações. Havia até uma bolsa de apostas e, segundo o Diretor do Instituto de Oslo para Pesquisas da Paz, Kristian Berg Harpviken, Angela Merkel havia sido vista como a favorita, pela liderança moral na crise dos refugiados.
No fim das contas, o Prêmio para a Tunísia não deixa de ter alguma relação, ainda que indireta, com a crise dos refugiados. Pois a Tunísia é o único país do Oriente Médio em que a esperança original da “Primavera Árabe” não foi frustrada, em que foi possível unir muçulmanos moderados e laicos moderados simultaneamente contra a ditadura e contra o terrorismo.
O Prêmio Nobel da Paz será entregue ao Quarteto de Diálogo Nacional Tunisiano, que compreende quatro organizações-chave da sociedade civil da Tunísia: a União Geral Tunisina do Trabalho (UGTT), a União Tunisina da Indústria, do Comércio e do Artesanato (UTICA), a Liga Tunisina pela Defesa dos Direitos Humanos (LTDH) e a Ordem Nacional dos Advogados da Tunísia. O Prêmio vai para esse “Quarteto” do diálogo, e não para qualquer das organizações individuais, que representam diferentes setores e valores da sociedade tunisina.
A Tunísia é o país onde nasceu a assim chamada e mal denominada “Primavera Árabe”, em 2010/2011. Um vendedor ambulante, Tarek Mohamed Bouazizi, vendia frutas e legumes nas ruas da pequena cidade de Sidi Bouzid, no centro-oeste da Tunísia. Ele não tinha conseguido autorização da prefeitura, e um dia uma policial (sim, foi uma mulher) decidiu cumprir os regulamentos e apreendeu o material de Bouazizi. Um evento que parecia de rotina. (Aliás, evento paulistano comum.) Só que a administração municipal de Sidi Bouzid era conhecida como corrupta e o país vivia desde 1987 sob uma ditadura feroz. E o jovem vendedor ambulante entendeu que o confisco de sua mercadoria era injustiça, se desesperou, pôs fogo em sua roupa, e morreu das queimaduras.
Quando Bouazizi morreu queimado, em 17 de dezembro de 2010, ninguém imaginou que sua cólera se espalharia pelo país e para além de suas fronteiras. Ou que o rústico estande de madeira em que expunha suas frutas e verduras chegaria a ser um símbolo da “Primavera Árabe”. Ou que Mohamed Bouazizi teria uma praça com seu nome em Paris. Seu ato de desespero rapidamente desencadeou uma revolta que desembocou na Revolução de 1911. Um movimento contra o desemprego, pela liberdade e pela dignidade se espalhou a partir de Sidi Bouzid por várias cidades da Tunísia, e foi se ampliando, com muitos episódios de violência, mortos e feridos, até chegar à capital Tunis em 12 de janeiro.
Em 13 de janeiro o ditador Ben Ali anuncia que não tem intenção de se manter no poder depois de 2014, dá ordem para que não mais se atire contra a multidão, determina uma baixa no preço dos alimentos básicos e promete liberdade de imprensa e de acesso à Internet. Não era suficiente e era tarde demais. As manifestações recrudesceram e na noite de 14 de janeiro o ditador Ben Ali toma seu avião e se refugia na Arábia Saudita, com a qual a Tunísia não tinha acordo de extradição de criminosos.
O terrorismo não surgiu na Tunísia depois da Revolução de 2011, mas também ali, no período de transição para a democracia, os extremistas se aproveitaram da instabilidade no momento em que as instituições frágeis ainda não conseguiam exercer sua autoridade e da liberdade que a população acabava de conquistar. Dois anos depois da derrubada da ditadura, em 2013, a Tunísia parecia estar à beira de uma guerra civil: greves paralisavam o país e críticos dos islamistas eram assassinados. Os radicais de Ansar al-Sharia criavam problemas para o partido islâmico moderado Ennahda. Os liberais atacavam Ennahda. Pela primeira vez desde a Revolução de 2011, o governo em Tunis proibia a reunião anual dos extremistas de Ansar al-Sharia, marcada para domingo 17 de maio, enquanto a seita retrucava: “não pedimos licença do governo para pregar a palavra de deus e advertimos contra qualquer uso de força policial que queira impedir nossa reunião”. Em várias cidades os militantes de Ansar al-Sharia formavam milícias dispostas a atos violentos, que recebiam armas que entravam no país durante as escaramuças na Líbia e no Mali. E a crise econômica agravava as diferenças.
Nessas circunstâncias tensas é que muçulmanos moderados e laicos moderados se uniram para, juntos, tratarem de evitar a violência e o terror. É quando se forma o “Quarteto”, com o objetivo declarado de intermediar um diálogo entre as várias correntes políticas da Tunisia, sobretudo entre o partido islâmico Ennahda, de Rachid Ghannouchi, e o partido laico Nidaa, do então Presidente da Tunisia Béji Caid Essebsi. As organizações que constituíram o “Quarteto” já existiam antes, e algumas já haviam adquirido experiência política na luta contra a ditadura de Ben Ali. Em 2013, elas se juntaram no “Quarteto” e conseguiram estabelecer um processo pacífico de diálogo, conciliação e busca de consensos. Mostraram que, mesmo em circunstâncias difíceis, é possível fortalecer instituições que levem a uma resolução de conflitos de modo pacífico e à realização de eleições livres. Daí o mérito para o Prêmio Nobel da Paz.
Diferente dos outros Prêmios Nobel, que são entregues em Estocolmo, o Prêmio Nobel da Paz (mais ou menos 850.000 euros) será entregue em Oslo no dia 10 de dezembro, dia da morte do criador do Prêmio, Alfred Nobel.
Espero que o Itamaraty não tenha esquecido de enviar cumprimentos ao Comitê do Nobel pela bela decisão. Como li em uma das mensagens de governos que saudaram a decisão em favor do “Quarteto”, é um prêmio merecido por trabalho pela democracia, pela firme adesão à ideia de que um povo que derrubou uma ditadura merece algo melhor que uma nova ditadura.

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