Reflexões sobre alguns conceitos utilizados em meu artigo Viva a Diferença!

João Rego

Portão principal de Auschwitz, Polônia – Foto de Steven Quayle

Portão principal de Auschwitz, Polônia – Foto de Steven Quayle

 

A visão despersonalizada do Estado (lembro que o Estado é sempre constituído de pessoas) identificando-o como uma “expressão do sentimento dominante na sociedade” dá a impressão de que nada mais resta a fazer, uma vez que esta visão ampla e generosa coloca o Estado como uma instância superior e fruto impune de uma “expressão dominante”.

Imagino um judeu em Auschwitz prestes a ir para o forno crematório pensando nessa expressão do sentimento dominante na sociedade. É claro que a Solução Final foi uma estratégia secreta de guerra e de extrema crueldade nazista, e Hitler, mesmo tendo sido eleito (expressão da maioria), com essa política certamente não estava correspondendo à vontade da maioria. Mas era o Estado que estava lá, com sua logística macabra, com metas, prêmio de melhor funcionário, visão, análise SWOT e tudo mais.

É necessário abrir as entranhas dessa instituição “abstrata” que controla nossas vidas do momento em que nascemos até muito depois da nossa morte. No final de cada um de nós ainda restará, depois das cinzas, o atestado de óbito guardado pelo Estado. Nesses tempos digitalizados, aí é que esse controle vai durar mesmo!

De Hobbes, com seu Leviatã, passando por Marx – aliás, acho que o erro de Marx foi ler mais Rousseau do que Hobbes, depositando muita esperança no novo homem que surgiria após o fim do capitalismo – a Freud com seu Mal Estar na Civilização, o Estado tem sido pensado, investigado e reinterpretado de várias formas, sempre de acordo com os desejos e as visões de mundo de seus observadores. Normalmente os intelectuais investem suas energias em pensar e criticar o Estado, enquanto os políticos o corporifica, lhe imprime sentido e o utiliza para seus propósitos, determinados por sua ideologia.

O que apontei em meu artigo Viva a Diferença! continua valendo:

a.)    O Estado tende a homogeneizar a sociedade para mais facilmente poder estender seus tentáculos dominadores sobre o sujeito, sempre com um suporte moral fundado em uma ideologia. Aqui destaco que religião é também uma ideologia. Assim, o Estado Talibã é fundado na ideologia cuja instância moral é a religião fundamentalista muçulmana, do mesmo modo que as democracias ocidentais têm no cristianismo sua espinha dorsal.

b.)    O Sujeito, imerso na sociedade civil, é diverso em seus desejos e singularidades e tende, à medida que o ambiente for  mais democrático, a expressar sua rica diversidade. Como ser incompleto não cessa de desejar nunca, nem quando dorme.

c.)    Há aqui um impasse que funda e estrutura a civilização, desde seus mais remotos tempos: a incessante pulsão desejante do sujeito (e isso é da ordem do desejo inconsciente, sexual) e a lei, instaurada pelo Estado, que recalca a realização destas pulsões. Sem a Lei voltaríamos à barbárie.

É este o impasse apontado por Freud em seu pensamento social. A Civilização (Kultur termo usado por Freud) é uma envoltória sobre a pulsão, tentando incessantemente e sem sucesso, domesticá-la. As doenças da alma, neurose, psicose, etc. são o preço que se paga para estar na civilização.

O saber freudiano, depois enriquecido pelo saber lacaniano, funda um homem de extrema complexidade, ao mesmo tempo em que o eleva a uma condição libertária como nenhum outro pensamento antes – inclusive Marx – o fez.

Falo isso por conta da descoberta do inconsciente, talvez uma das maiores feridas narcísicas da humanidade. A primeira destas feridas foi à descoberta de Copérnico de que a terra não era o centro do universo, impondo-nos o heliocentrismo; a segunda foi Darwin, destruindo nossa imagem e semelhança de Deus, provando nossa mera descendência de primatas. Freud e seu inconsciente quebram o “Penso, logo existo” de Descartes, nosso último consolo, pois já não éramos o centro do universo, já não éramos mais a imagem e semelhança de Deus e nos restava apenas ser o único ser pensante da natureza. O “penso, logo existo”, embora tenha uma grande importância para a filosofia, está preso e reduz o homem ao seu Eu, como se ali ele fosse acabado e arrumado olhando o mundo pelos seus dois olhinhos, agindo racionalmente. O inconsciente quebra a segurança deste homem fundado no seu Eu. O Eu, para a psicanálise é o universo da alienação desse sujeito, regido em suas vontades, desejos e identificações diante da vida, pelo inconsciente.

O sujeito freudiano é assim um sujeito constituído por desejos inconscientes (desejos de ordem parental) e a estes alienado; um sujeito atravessado pela estruturas significantes da linguagem, sendo ele o vazio dessa estrutura, possibilitando o fluir da linguagem, e por ser incompleto, do desejo; um sujeito onde seu principal algoz está em seu ser, o Supereu, instância da dinâmica do inconsciente e repressora interior, resultado introjetado das ações parentais e do Estado e um sujeito imerso em uma sociedade fundada no impasse insolúvel entre a Lei e a pulsão.

Cito aqui o Sérgio Paulo Rouanet quando discorre sobre o fracasso do homem liberal e do homem marxista:

“O que nos resta é o homem freudiano. Um homem trágico, que nem pode sobreviver fora da sociedade nem ser feliz dentro dela. E isso porque a vida em sociedade impõe a todos os indivíduos pesados sacrifícios pulsionais (Sérgio Paulo Rouanet in Escola de Frankfurt – inquietações da razão e da emoção Ed UERJ )”.

Lacan mais tarde cria o aforisma “Penso onde não sou e sou onde não penso” para definir a subordinação do Eu ao inconsciente. Referimo-nos, portanto, a esse homem freudiano como sujeito (ao inconsciente) diferente do individuo da economia ou da sociologia. É neste contexto que falo sobre a questão do Estado e das minorias em meu artigo Viva a Diferença!

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 DITOS & ESCRITOS
João Rego
joaorego.com