Mariana Monteiro

 Ponte da Boa Vista, vista da Ponte Duarte Coelho      Photo by Anizio Silva.

Ponte da Boa Vista, vista da Ponte Duarte Coelho Photo by Anizio Silva.

Nunca morei em Recife, embora meus pais sejam ambos pernambucanos, mas visito a cidade anualmente desde os 10 meses de idade. Nestes mais de 45 anos, cheguei a me acostumar- infelizmente- com o grande número de meninos e meninas pedindo dinheiro nos sinais da cidade. Uma imagem emblemática é a das crianças e adolescentes pobres dos sinais da Avenida Agamenon Magalhães- a grande via que liga Recife a Olinda- jogando água e sabão nos para-brisas dos carros, sem pedir licença, pra conseguir um trocado na marra. Era chato ver que a situação dessa população não melhorava, e também era chato- não vou negar- ver o vidro do seu carro ficar mais sujo do que era antes e não poder fazer nada. Não poder fazer nada pra que eles não nos impusessem aquele serviço indesejado e não poder fazer nada contra aquela situação social. A não ser, claro, tentar votar bem.

No centro da cidade- mesmo depois da revitalização que deixou o feio e cinzento Recife antigo lindo e colorido- a miséria continuava a dar as caras. Quantos relógios minha avó e minha mãe viram roubados naquele centro, que não é o chamado Recife antigo, é o centro comercial, que tem na Avenida Conde da Boa Vista seu ponto nevrálgico. Meninos de 8, 10 anos, perguntavam alguma coisa e, quando vc estava se preparando pra responder, flapt, eles colocavam a mão sobre o seu antebraço e puxavam o relógio. Uma vez, eu e vovó távamos subindo no ônibus e, vapt, senti um puxão forte no pulso. Pronto, levaram meu Swatch colorido de borracha… Era comum.

Passeio de infância
Eu adorava andar no centro com vovó Otávia, minha avó materna. Íamos sempre de ônibus, saindo de Casa Forte, onde ela morava primeiro, e depois de Olinda, nos últimos 20 anos de sua vida. Era uma delícia andar pelas lojinhas do centro, de roupas, fantasias de carnaval e, principalmente, tecidos, que escolhíamos juntas pra que ela fizesse nossos lindos vestidos em sua velha máquina de costura, que ela sabia usar tão bem! Eram passeios mágicos por aquelas lojinhas simples, mas tão coloridas e variadas. Dali levávamos pra casa também umbus, pitombas ou siriguelas, invariavelmente. Quando minha mãe estava junto, íamos eu, minha irmã Joanna e a amiga de Brasília ou São Paulo que estivesse passando aquelas férias conosco assistir a algum filme no histórico cinema São Luís. Normalmente, o último dos Trapalhões. Mas as sessões de cinema recifenses são outra história, dariam um post à parte.

O fato é que eu nem ligava pro fato de as ruas serem sujas e meio fedorentas e os prédios malconservados. Anos mais tarde, era também ali, especificamente na Rua Sete de Setembro, que íamos à ótima livraria Livro Sete e à fantástica Disco Sete, onde comprei meu primeiro disco do Talking Head, algo impossível naquela época em Brasília. O centro de Recife had it all, como se diz!

Mas havia uma coisa que eu evitava fazer porque era chocante demais: passar pela Ponte da Boa Vista, uma ponte de 1870 toda feita de ferro e com duas pequenas vias pra pedestres, era uma tortura. Ali ficavam os mendigos mais mendigos: os “aleijados”; um deles não tinha as pernas. Ele praticamente morava ali e estava sempre pedindo na ponte. Doía a minha alma de criança.

Choque do bem
Pois bem, acabo de voltar de Recife. E desta vez reservei dois fins de semana pra ficar na cidade, visitar os familiares e amigos (os poucos com que tenho contato atualmente) e também passear pelo centro. Fiquei chocada com o que vi. Na ida para a cidade, já percebera que não havia mais um menino pedindo nos sinais da Agamenon. “Como assim?”, pensei. “É, eles não pedem mais aqui, e nem estão na escola nesta época”, dissera minha mãe, que passa quase a metade no ano na casa que temos em Olinda. “Mas nenhum, nenhum?”, perguntei sem acreditar. “Não”, disse ela com ar de contentamento.

Quando chegamos à Conde da Boa Vista percebi logo que o tratamento vip dado à região do Marco Zero, o chamado Recife antigo, não havia nem se aproximado desta parte que também é antiga, pra cá das pontes que cortam o Capibaribe. Os prédios, muitos deles mais recentes, dos anos 50 até os 80, estão cada vez mais velhos, sujos e descuidados. As ruas continuam imundas, mas também fervilhando de adultos e crianças em busca de material escolar barato e também do melhor item de fantasia para o carnaval que, em Olinda e no Marco Zero, já começaram. Comprei peruca vermelha pra mim e máscara do filme “Pânico” pro meu filho.

Mas e os meninos ladrões? Não vi nenhum; não vi crianças andando sozinhas no centro. Nada parecido com antigamente. Hesitei um pouco, hesitei mais uma vez, antes de resolver tirar a câmera fotográfica da mochila do meu marido (que estava na frente do peito, por conselho meu, claro) pra tirar esta foto. Claro que eu não tinha levado bolsa.

Fomos andando em direção à tal ponte secular. Ela, sim, fora repintada, estava verde escura, nova em folha. E não havia nenhum, nenhum mendigo pedindo dinheiro ou deitado no chão da ponte. Pela primeira vez pude olhar com calma pra beleza daquela ponte. Pela primeira vez passei por ali sem pena, sem constrangimento. Pela primeira vez em 40 anos, tirei foto de um lado e do outro do Rio a partir da ponte. A sensação foi indescritível! Naquele momento, ao constatar in loco que a miséria deixara o Recife, não pude parar de pensar que valeu cada palavra de incentivo e campanha que fiz ao longo da vida para que fosse eleito um governo que se preocupasse com o bem estar dos pobres, com a distribuição de renda. Tenho certeza que não foi só o governo federal o responsável por esta revolução. Há que se dar crédito aos governos de esquerda dos últimos anos em Pernambuco e em Recife e Olinda. O fato é que vi e senti de perto. E ver o meu Recife sem miséria não tem preço!

 

Mariana Monteiro é jornalista e já cobriu política e cultura para jornais com a Gazeta Mercantil e TVs como a Bandeirantes. Atualmente, é repórter e editora na TV Câmara e autora do blog escritos do ócio.

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