Clarice Lispector. A paixão segundo G.H. Rio de Janeiro, Rocco, 2014.

 Teresa Sales
16 de dezembro de 2014

 

 

Não é comum, mas acontece. Você entra num livro, faz uma viagem com o(a) autor(a) e sai dele diferente de como entrou. Quando isso acontece durante uma viagem de fato para um lugar diferente de seu cotidiano, o diferente pode quase se transformar numa epifania.

Foi assim minha leitura do romance de Clarice Lispector A paixão segundo G.H. Esse é um livro de desaprender: o eu que se descobre outro. Sei que ninguém sai impune das leituras dessa autora. A personagem G.H., contudo, superou as minhas expectativas. Já lera na quarta página o curto e certeiro comentário de José Castello: “O escritor argentino Ricardo Piglia disse certa vez que toda a literatura pode ser reduzida a dois gêneros fundamentais: as narrativas de amor e as narrativas de mistério. Em A paixão segundo G.H., essas duas claves básicas da ficção se entrelaçam. Pois é justamente a mistura letal de amor e mistério que chamamos de paixão”.

A personagem G.H. está relembrando as cenas do dia anterior. É uma lembrança como se fosse uma viagem, a mesma que se faz qualquer autor na escrita através de seus personagens. G.H. sabe do horror que será a viagem e por isso pede o apoio de uma mão. Se imaginarmos cenas oníricas entramos melhor no livro – “muitas vezes, antes de ter a coragem de ir para a grandeza do sono, finjo que alguém está me dando a mão e então vou, vou para a enorme ausência de forma que é o sono. E quando mesmo assim não tenho coragem, então eu sonho”. Basta-lhe a mão, sem rosto, sem corpo, basta-lhe a mão para lhe dar a coragem de contar.

Ao escrever agora, sinto-me acompanhando a personagem como fosse essa mão a quem ela entrega cada via sacra de seu caminho rumo à paixão. Nem bem principia: a covardia, o medo (“talvez só o pensamento me salvasse, tenho medo da paixão”). “Terei que correr o sagrado risco do acaso. E substituirei o destino pela probabilidade (…) como adulto terei a coragem infantil de me perder?”

Por medo, G.H. passa todo o primeiro capítulo[1] do seu relato adiando o começar a falar. “É como se eu tivesse uma moeda e não soubesse em que país ela vale”. Até que, quase no limite (aliás, o relato todo ele é ao nível da liminaridade e temos que estar preparados para acompanhar a narradora), decide: “Vou criar o que me aconteceu. Só porque viver não é relatável. Viver não é vivível. Terei que criar sobre a vida. E sem mentir. Criar sim, mentir não. Criar não é imaginação, é correr o grande risco de se ter a realidade. (…) Falarei nessa linguagem sonâmbula que se eu estivesse acordada não seria linguagem.” Aqui, como em outras passagens do romance, a autora dialoga com seu meio de se expressar. Uma metalinguagem.

Segurando a mão de G.H. eu, leitora, tomo a liberdade de deixar de lado o que mais se diz nos comentários e vídeos sobre o livro, do fluxo de consciência da personagem, cujas cenas quase todas se passam no quarto da empregada que deixou inscritos na parede, qual pinturas rupestres, enormes desenhos retratando os da casa (“o contorno a carvão de um homem nu, de uma mulher nua, e de um cão que era mais nu do que um cão”); e, até as últimas consequências, a quase luta corporal da personagem com uma barata viva, depois morta por ela e comida em seu núcleo amarelado. No contexto da narrativa nem se sente a repugnância e o nojo. A metáfora, ao contrário, é para mostrar vida. Vida que se descobre em um dia o que a escuta de uma terapia poderia levar anos até saber se aquela foi a falha necessária para chegar ao eu que se descobre outro.

Nem me ocuparei do que mais se aproxima de meu ofício (ninguém se livra dos pecados que cometeu, dizia meu professor Octávio Ianni), a metáfora da enorme distância de classes na sociedade brasileira. “Carvão e unha se juntando, carvão e unha, tranquila e compacta raiva daquela mulher que era a representante de um silêncio como se representasse um país estrangeiro, a rainha africana”. Nem tampouco do que é matéria preciosa para os psicanalistas: a procura da identidade descoberta numa “fonte muito anterior à humana e, com horror, muito maior do que a humana”.

Busco a força da paixão anunciada no título do livro, na fartura da criação de imagens de Clarice. Não dá para inventar nada. Apenas, segurando até o final (ou sendo segurada) a mão de G.H., entrar com ela no quarto que engloba o mundo com os prazeres e sofrimentos todos, até o final da viagem.

“A vida, meu amor, é uma grande sedução onde tudo o que existe se seduz (…) eu estava saindo do meu mundo e entrando no mundo. (…) Era como se eu já tivesse morrido e desse sozinha os primeiros passos em outra vida”.

Querer somente o tempo presente, sem esperança (“pois a atualidade não tem esperança, e a atualidade não tem futuro”). “Eu, que chamava de amor a minha esperança de amor”. Ou: “como falarei de um amor que não tem senão aquilo que se sente, e diante do qual a palavra ‘amor’ é um objeto empoeirado?”

“O inferno pelo qual eu passara – como te dizer? – fora o inferno que vem do amor. Ah, as pessoas põem a ideia de pecado em sexo. Mas como é inocente e infantil esse pecado. O inferno mesmo é o amor. Amor é a experiência de um perigo de pecado maior – é a experiência da lama e da degradação e da alegria pior. Sexo é o susto de uma criança. Mas como falarei para mim mesma do amor que eu agora sabia? É quase impossível. É que no neutro do amor está uma alegria contínua, como um barulho de folhas ao vento. E eu cabia na nudez neutra da mulher na parede.”

“Lembrei-me de ti, quando beijara teu rosto de homem, devagar, devagar beijara, e quando chegara o momento de beijar teus olhos – lembrei-me de que então eu havia sentido o sal na minha boca, e que o sal de lágrimas nos teus olhos era o meu amor por ti. Mas, o que mais me havia ligado em susto de amor, fora, no fundo do fundo do sal, a tua substância insossa e inocente e infantil: ao meu beijo tua vida mais profundamente insípida me era dada, e beijar teu rosto era insosso e ocupado trabalho paciente de amor, era mulher tecendo um homem, assim como me havias tecido, neutro artesanato de vida.”

“Oh, meu amor desconhecido, lembra-te de que eu estava ali presa na mina desabada, e que a essa altura o quarto já se tornara um familiar inexprimível, igual ao familiar verídico do sonho. E, como do sonho, o que não te posso reproduzir é a cor essencial de sua atmosfera. Como no sonho, a lógica era outra, era uma que não faz sentido quando se acorda, pois a verdade maior do sonho se perde. (…) e a verdade de um sonho estava se passando sem a anestesia da noite.”

“Para termos, falta-nos apenas precisar. Precisar é sempre o momento supremo. Assim como a mais arriscada alegria entre um homem e uma mulher vem quando a grandeza de precisar é tanta que se sente em agonia e espanto: sem ti eu não poderia viver. A revelação do amor é uma revelação de carência – bem aventurados os pobres de espírito porque deles é o dilatado reino da vida”

“Ah, meu amor, não tenhas medo da carência: ela é o nosso destino maior. O amor é tão mais fatal do que eu havia pensado, o amor é tão inerente quanto a própria carência, e nós somos garantidos por uma necessidade que se renovará continuamente. O amor já está, está sempre. Falta apenas o golpe da graça – que se chama paixão”.

[1] Chamo de primeiro capítulo por minha conta e risco, pois o livro não é constituído de capítulos e sim de trinta e três pedaços, qual um relato único que repete sempre ao início do pedaço seguinte a frase final do anterior.