Helga Hoffmann

Karen Staal – Karen’s solo show at the Rogue Gallery in Medford, Oregon.

Políticos populistas, de qualquer tendência, dependem mais que os outros do seu faro político, da capacidade de captar certas tendências do momento e criar a partir delas um relato distorcido que cola nelas o significado que mais lhes convém. O ex-presidente Lula nesse sentido é genial, captou a ansiedade do atual movimento contra a corrupção: “todo dia, todo santo dia, tem alguém dizendo, agora vão prender fulano, vai delatar o Lula… prenderam o Papa, vai delatar o Lula… sabe o que é levantar todo dia achando que a imprensa vai estar na porta de casa porque eu vou ser preso?”. Só vendo o vídeo! É necessária uma boa dose de tradição empírica e respeito a dados e fatos para argumentar contra essa tese de “perseguido político”. E isso que ele já passou da fase de mero “delatado”, já é “réu” em vários processos. No caso, há dados que qualquer um que queira pode averiguar.

É verdade que tem muita gente com pressa, é verdade que tem página de Facebook que anuncia a prisão de Lula quase todo dia. A pressa, ainda que não de modo explícito, talvez se deva ao fato de que Lula, sem qualquer compromisso com a verdade, vai dar muito trabalho na eleição de 2018. Isso não é novidade. A novidade é que, passada a prolongada discussão do impeachment e finalmente formado o governo Temer, ampliou-se cada vez mais a lista de delatados ou dos que aparecem em listas dos que poderão vir a ser delatados. “Todo dia, todo santo dia” aparece um nome novo. O mais grave é que, sobretudo desde a famosa “lista do Janot”, tem muita gente que quer e acha que pode substituir a “classe política” toda, sobretudo a parte que participa do governo Temer. Não querem saber de “pinguela” para levar o país até as eleições de 2018: querem derrubar desde já a ponte evidentemente frágil, que entendem ou descrevem como sendo apenas a sobrevivência da “velha classe política”. De forma quase mística pressupõem que de repente vai aparecer da mesma sociedade que engendrou a “velha classe” uma “nova classe” de pessoas oriundas dessa mesma sociedade, mas diferentes.

“Fora Temer” é desde o início uma campanha de petistas, seus satélites e simpatizantes. Qualquer que seja o pretexto do momento (e a lista é longa, vai desde suas ideias conservadoras sobre a família, à nomeação de um Ministro do STF, passando pelo número de citados em delações premiadas que estão no governo, e agora as “reformas contra os pobres”), o núcleo central dessa campanha foi de derrotados na discussão sobre o impeachment, e “fora Temer” está embaralhado com a narrativa daqueles que alegam cegamente que o afastamento de Madame Rousseff foi um golpe. E continuam difundindo essa falsidade, como o faz a ex-presidente em “campanha contra o golpe” no exterior. É pedir demais, é claro, que os órfãos de Madame Rousseff leiam as cento e tantas páginas do relatório do Senador Antônio Anastasia, que fundamentaram a votação em favor do impeachment. Ou leiam “Anatomia de um Desastre: Os bastidores da crise econômica que mergulhou o país na pior recessão de sua história”, dos jornalistas Claudia Safatle, João Borges e Ribamar Oliveira – para citar apenas duas argumentações complementares.

”Fora Temer” foi o que sobrou como estratégia para petistas depois de sua espantosa derrota eleitoral em 2016. “Fora Temer” agora está embaralhado com a resistência às reformas, é neste momento quase idêntico aos protestos contra a reforma da Previdência. E “fora Temer” é olhado com simpatia e até apoiado pelos que declaram seu horror à “velha classe política”. Estas são motivações compreensíveis para os que engrossam uma campanha contra o governo Temer em seu conjunto.

Qualquer um tem direito de não gostar do governo Temer. A maior desonestidade intelectual, no entanto, a maior distorção dos fatos, vem dos economistas que afirmam que a recessão e o desemprego foram criados pelo governo Temer. E mais: que as medidas de política econômica que estão sendo tomadas pelo governo Temer estão gerando a recessão. É a mesma turma que já afirmava que a contenção de gastos proposta por Joaquim Levy estava produzindo a recessão. Alguns desses defensores da “Nova Matriz Econômica” implementada por Dilma Rousseff são até professores universitários, e alguns chegam a apresentar-se com uma fachada técnica, ao afirmar que apenas têm um diagnóstico diferente das origens da crise fiscal. O objetivo dessa empulhação é sempre o de convencer os eleitores que a maior recessão da história econômica do Brasil e um desemprego de mais de 12 milhões, que o fato de estarmos há dois anos sem gerar novos empregos formais, não foram causados pelos erros de política econômica e de políticas públicas dos últimos governos do PT e de sua assessoria.

Segundo esses economistas, que algumas vezes invocam Keynes, outras vezes invocam Krugman e Stiglitz, não é o aumento do gasto público e a mais completa desordem do orçamento público, além das intervenções desordenadas dos governos Lula e Dilma na economia o que causou inflação alta junto com recessão. Tentam passar como explicação completa da maior recessão da história econômica republicana um dos ingredientes, que é o fato de que a arrecadação de impostos diminui quando a atividade econômica se reduz. Tratam de dar como causa da recessão uma dificuldade adicional criada pela recessão, para concluir que a contenção de gastos pretendida pelo governo Temer cria recessão.

Defendem essas ideias erradas, que os fatos já desmentiram mais de uma vez, envolvendo-se no manto de uma heterodoxia desmoralizada. É claro que agora estimulam nos bastidores os protestos contra o governo Temer, assim como deram incentivo para a intensa campanha contra a aprovação da PEC do teto do gasto público. E assim os protestos contra o governo Temer, queiramos ou não, são liderados e mobilizados por organizações e movimentos que são ao mesmo tempo contra a Lava Jato e contra as reformas e a modernização do Estado brasileiro. São os fãs de Lula e José Dirceu, que ainda acreditam na fantasia de que os “heróis do povo brasileiro” extorquiam a burguesia para permanecer no poder e ajudar o povo.  Ainda não percebem a relação entre corrupção em escala inédita e incompetência, desordem orçamentária, e falta de avaliação e controle de resultados de políticas públicas.

Quando vejo a movimentação política do “fora Temer” e o seu efeito mais imediato, que é o de atrasar e diluir as reformas necessárias para que o país volte a crescer, chego a pensar que talvez quem estivesse certo à época era o Senador Aloysio Nunes quando, ainda contrário ao impeachment, disse “deixa sangrar” no momento em que apenas uns poucos mais radicais já pediam o impeachment da mais incompetente e/ou mentirosa dentre todos os Presidentes que o Brasil já teve. À época soou chocante dar à débacle do governo Dilma prioridade sobre a promessa de evitar que o país afundasse cada vez mais em seu desastre econômico, como previam e advertiam os economistas que apontavam para o desmoronamento do tripé macroeconômico e a incoerência das intervenções do governo. Eu só defendi o impeachment depois que Joaquim Levy saiu do governo, e conclui que a permanência de Madame Rousseff só ia levar a um fundo de poço ainda pior, que mais do mesmo só podia resultar em mais do mesmo, isto é, as políticas da Nova Matriz Econômica só podiam resultar em recessão ainda maior e quantidade ainda maior de desempregados. Lembro de uma frase da época: “o Brasil não aguenta mais dois anos de Dilma”.

Se o impeachment da Presidente petista, depois de todo o doloroso processo que foi para o país, afinal de contas resultar apenas em “fora Temer” e a recuperação do prestígio de Lula, terá sido desperdiçado o impeachment e a mudança de governo, que evitou apenas que o desastre fosse ainda maior do que o que vivemos em 2016. E convém registrar que, à época, ninguém ignorava que o vice-presidente se chamava Michel Temer ou o tipo de político que ele encarnava. Não há por que ser surpreendido por seu estilo ou pelo fato de que é um “político tradicional”. Nesse sentido há uma ordem de prioridades, na minha visão, que é a de conseguir a aprovação, no mínimo dos mínimos, antes de mais nada, da reforma da Previdência tal qual apresentada, sem diluição. O projeto nada tem de radical. É claro que seria mais justo com a sociedade que o projeto incluísse um teto imediato para as super-aposentadorias, lembrando que metade de tudo o que o governo gasta com aposentadorias vai para 10% dos aposentados.

Paradoxalmente, são exatamente as categorias mais privilegiadas na situação atual, a dos funcionários com aposentadorias mais altas, as que lideram as manifestações contra a reforma, alegando defender os mais pobres. Os mais pobres, que terão aposentadoria no piso (atualmente o salário mínimo), já se aposentam em média em idade mais avançada, aos 65 anos. São os funcionários públicos, que têm aposentadorias mais altas, os que atualmente se aposentam em média com idade mais baixa, bem inferior a 60 anos. As reformas não são pró-governo, nem a sua votação significa apoio ao governo, como entendem alguns. E o governo não quer acabar com a aposentadoria. As reformas são pré-condição para o Brasil voltar a crescer. Os que estão contra a reforma é que podem levar ao fim da aposentadoria, quando a desordem e o déficit chegarem ao ponto de não haver mais dinheiro para pagar ninguém. O governo Temer, em bloco, com todos os seus ministros, deveria sair a campo para explicar as reformas à população, tirar dúvidas e desmascarar as falácias que estão sendo servidas à população pelos que rejeitam toda mudança. E argumentar pela urgência, ensinar que há uma defasagem entre aprovação de uma medida e seus resultados, e mostrar como, lentamente, estão começando a surgir alguns resultados da mudança na política macroeconômica e alguns êxitos da nova agenda microeconômica.

O combate à corrupção vai continuar, devagar como é o Judiciário brasileiro, respeitando as leis vigentes, que ainda mantêm o absurdo do foro privilegiado e da prisão especial, e tem mais recursos e liminares que pernas de centopeia (ainda mais agora que o Judiciário interfere sem pejo em áreas que não são de sua competência e para as quais não têm preparo técnico, por exemplo, ao defender pichadores ou decidindo que empresas aéreas não podem cobrar para transportar mala). A prisão de alguns corruptos, e mesmo penas elevadas, não vencem a corrupção, que precisa ser contida por um arcabouço institucional. Nem adianta transformar em ídolos certos juízes. Não é a psicologia social que explica indícios mais altos de corrupção, e sim a frouxidão (ou interpretação flexível?) de leis e regulamentos. Mal comparando: eu já quis atravessar a rua com sinal vermelho na Alemanha… Tentem.

O combate à corrupção continuará, à medida que novos casos são revelados e devidamente investigados, e à medida que se perceba que um Estado desorganizado favorece a corrupção. Vai ser devagar. Não resisto citar um trecho da entrevista do criador da Faculdade de Direito da FGV, o jurista Ary Oswaldo Mattos Filho, comentando delações e pedidos de inquérito do Procurador Geral da República. Minha prioridade é o noticiário econômico, não acompanho o noticiário da PF ou dos procuradores. Não sei quem é, desconheço suas preferências políticas, e a primeira vez que vi esse nome foi no jornal O Estado de S.Paulo, 16 de março de 2017, página C2: ”Daqui por diante nós, cidadãos, vamos notar nitidamente os diferentes tempos em que agem os meios de comunicação e o Judiciário. Os primeiros têm suas pautas diárias a cumprir e buscam sempre fatos novos. O segundo tem seu rito marcado pela lei e pelo formalismo de seus atos, sempre atendendo ao amplo direito de defesa. Esses tempos são incompatíveis entre si. E lembro aqui que os indiciados vão se adequar sempre ao tempo do Judiciário e não ao da mídia.” Pois é, o tempo dos economistas tampouco é o tempo dos juristas.

Em favor de reformas e de modernização do Estado, é bom relembrar que corrupção sempre começa pelo Estado, quando funcionários públicos detentores de algum poder específico criam dificuldade para vender facilidade.  Um Estado em que a avaliação de políticas públicas seja a norma, em que cada serviço de responsabilidade do Estado tenha prazos de aprovação e de execução respeitados e transparentes (o que impede a “venda” de aprovação mais rápida), um Estado cujo funcionamento não seja um emaranhado de regras e exceções que permitem interpretações divergentes, um Estado menos arbitrário e com regras menos ambíguas, trará consigo menos corrupção e menos contravenção.