José Arlindo Soares
Sociólogo

Il Quarto Stato - Giuseppe Pellizza da Volpedo.

Il Quarto Stato – Giuseppe Pellizza da Volpedo.

No final dos anos 1970 até metade dos anos 80, em quase todos os países ocidentais (particularmente nos que viveram sob regimes ditatoriais), afloraram intensos debates sobre a superação do autoritarismo por um sistema de representação política de democracia ampliada que contemplasse a participação direta da sociedade na definição e no acompanhamento das políticas públicas, ou seja, que a democracia não ficasse apenas nos limites da representação da política parlamentar.

A Espanha foi possivelmente a pioneira dessas novas proposições, que eram muitas mais amplas porque envolviam a reconfiguração institucional do Estado através da obtenção das “autonomias regionais”, com inserção de parlamentos próprios e com a participação direta da população no plano do poder local. Como diz o sociólogo espanhol Jordi Borja (1975), a necessidade de democratização do Estado transcende as limitações do sistema representativo e até mesmo as lutas por uma melhor distribuição de recursos públicos. Impõe-se como exigência para se construir uma nova organização da sociedade e outro tipo de relação de poder.[1] A importância da combinação do conceito de democracia ampliada com a descentralização possibilitou que, nas primeiras eleições municipais democráticas na Espanha, os candidatos oriundos das “Associaciones de Vecinos” obtivessem expressivas vitórias em Prefeituras de importantes cidades. [2] A participação direta ficou muito ligada ao poder local e sempre combinada a representação política parlamentar.

A lógica do novo modelo passaria por manter os mecanismos clássicos de representação da democracia liberal tradicional e incorporar instrumentos que possibilitassem uma maior aproximação do cidadão com a administração pública, não apenas nos momentos eleitorais, mas na vida cotidiana da população.  Em países que tinham experimentado um largo ciclo autoritário seria muito importante o exercício dessa nova pedagogia participativa. Impunha-se, porém, uma adequação às mudanças na configuração econômica mundial, caracterizadas pela diminuição do papel de decisão dos Estados Nacionais em muitas questões econômicas e sociais, provocando o agravamento do déficit da participação, mesmo nos países de democracias consolidadas.

Nos ano 80, a literatura sobre o assunto resaltava a importância de se reconstituir as identidades coletivas embaçadas pela globalização, enquanto as unidades descentralizadas teriam que refundar a participação política em razão de terem que assumir questões estruturais e complexas, como uma maior atenção ao crescimento econômico, à preservação do meio ambiente, ao combate à pobreza e à garantia das liberdades.

O Brasil não ficou atrás nesse processo de encontrar novas alternativas para redesenhar o tecido democrático do país. Durante a transição do regime militar o discurso da participação esteve presente em quase todas as forças de oposição ao regime, incluindo os liberais mais convictos, como Ulisses Guimarães, que passou a defender a presença da democracia direta e semidireta junto com a representação política parlamentar através do modelo insubstituível do voto universal e do pluralismo. As eleições diretas para Prefeitos das capitais em 1985 aceleraram essas discussões, dando origem a várias experiências inovadoras sobre a presença da sociedade organizada em instâncias do poder local.

A cidade do Recife foi pioneira em iniciativas inovadoras ,que viriam a ser consagradas no Brasil. Nesse processo, algumas tendências dos movimentos sociais sempre advertiam sobre o perigo da instrumentalização dos movimentos sociais pelos partidos hegemônicos no campo da política tradicional.

A Constituição de 1988 ampliou o conceito de participação direta, que estava muito restrito às instancias do poder local. Logo no parágrafo único do artigo primeiro a carta de 1989, define-se que ”o poder no Brasil será exercido por meio de representantes ‘eleitos ou diretamente’, nos termos da Constituição”. A partir dessa autorização constitucional, criaram-se e foram regulamentados os diferentes instrumentos de participação direta ou semi-direta, como a iniciativa popular, o plebiscito, o referendo e os conselhos de participação de fiscalização junto às diferentes políticas públicas nacionais , estaduais e municipais.

Com o respaldo da Constituição, a participação direta ou semidireta passou a fazer parte das propostas de governos de diferentes orientações ideológicas, com eficácia variável, dependendo dos níveis de autonomia da sociedade ou da força e organização das categorias profissionais ou dos grupos sociais envolvidos.

Uma variável sempre muito importante na vida desses conselhos é o reconhecimento efetivo e respeito à autonomia que os governos atribuem à participação organizada da sociedade . Um exemplo consagrado de participação semi-direta são as Conferências Nacionais de Saúde, que se iniciaram há 70 anos, cumprindo o disposto no parágrafo único do artigo 90 da lei 378 de janeiro de 1937. Atravessando diferentes regimes, as Conferências de Saúde têm revelado um aumento significativo em importância. A cada ciclo, adquiriram maior representatividade e uma influência efetiva nas políticas públicas. De modo particular no período da última transição democrática, a consistência conceitual e a representatividade das Conferências Nacionais de Saúde foram essenciais na aprovação e consolidação do Sistema Único de Saúde(SUS) .

Um exemplo contrário, que mostra fragilidade da participação, são as recentes Conferências de Políticas Públicas, de caráter transversal , que se esgotaram no ato mesmo da conferência com delegados, com quase nenhuma representatividade e teses pouco consistentes e sem força para se tornarem paradigmas a serem levadas em conta pelos Planos Plurianuais do próprio governo nacional . Para quem teve oportunidade de assistir a alguns dessas conferências, foi fácil perceber a fluidez dos critérios para a escolha de delegados, além da pouca discussão sobre os temas em foco, com resoluções quase sempre limitadas à votação de uma lista de prioridades sem teses mais consistentes sobre as políticas públicas de largo alcance, relacionadas ao objeto da conferência. É verdade que também os conselhos formais previstos na legislação perderem conteúdo e representatividade e até mesmo sofreram um esvaziamento pela imbricação com o estado. Mesmo assim, são ainda os que mais acumulam conhecimento sobre as diferentes políticas setoriais no país.

A tentativa da Presidente Dilma de instituir uma Política Nacional de Participação Social (PNPS) e o Sistema Nacional de Participação Social (SNPS) é o tipo da medida inócua, que legisla sobre o já existente, além de provocar desconfiança em relação ao futuro. O decreto presidencial derrotado na Câmara Federal estabelece diretrizes relativas ao conjunto dos mecanismos participativos, tais como conselhos, conferências, ouvidorias, audiências públicas e ambientes virtuais de participação social. Com exceção da chamada participação virtual, todos já estão presentes na legislação. Na verdade, o decreto não cria nem extingue Conselhos, mas define parâmetros para uma eventual criação de novos. Talvez, por esse caráter de generalidade, foi que o Gilberto Carvalho disse que a decisão da Camara federal foi uma vitória do “Nada”. Bem que o Ministro poderia de ter acrescentado: foi uma decisão sobre o “nada”, em relação a um decreto que não queria dizer ‘‘nada”. É sempre bom dar o direito da dúvida ou da ingenuidade e aceitar que a Presidente queria apenas ter o que dizer no futuro: que ela teria sido a idealizadora da participação direta no Brasil. Com isso, iria se apagando a memória do que foi estabelecido pela Constituição e pela legislação complementar dos governos anteriores . Seria então um simples pecado venial da vaidade.

Por outro lado, o aspecto sombrio da questão está no que “poderá vir a ser”. Ou seja, na alimentação do ideário de estatização completa dos mecanismos de controle social e, no limite máximo, no ideário de transformar os Conselhos, controlados pelo estado, em embriões de uma “democracia popular”. Seguramente essa é uma hipótese que não passa pela cabeça da presidente, embora suscite dúvidas sobre o que está presente na mente de certa “esquerda senil” que frequenta os bastidores do governo e sempre vem se mostrando muito dócil aos regimes autoritários da atualidade.

O decreto presidencial contraria a essência da democracia ampliada proposta pela Constituinte, que se coaduna com os ensinamentos Noberto Bobbio, ao defender que as diversas formas de participação devem ladear de forma autônoma o sistema de representação universal, representado pelo parlamento, mesmo considerando as suas imensas dificuldades e limitações que têm abalado própria representatividade desse sistema.

Uma análise um pouco mais cuidadosa mostra que os problemas da baixa organicidade e representatividade dos conselhos de controle sobre as políticas públicas estão na própria composição da sociedade e não se resolve com a centralização e a estatização. Ao contrário, exige um processo gradativo de mudanças na cultura política, onde não seja cultuada a conquista do poder a qualquer custo ou o princípio de que os fins justificam os meios para se alcançar o paraíso. Na verdade, o caminho seguro da democracia ampliada passa pela presença da sociedade nos diferentes espaços públicos de forma autônoma e independente, dentro do limites do pluralismo e do repeito à representação parlamentar com voto universal, embora com todas as críticas merecidas que marcam a distância entre o Parlamento e a sociedade .

[1] Borja Jordi, Movimentos Sociales urbanos, Buenos Aires. Ediciones SIAP, 1975

[2] Ver Edson Nunes” Partidos e Nuevos Movimientos Sociales.” Madrid Editorial Sistema, 1968