Teresa Sales

Gabinete de Freud em Viena, Berggasse 19.

Gabinete de Freud em Viena, Berggasse 19.

Será que vocês também fazem isso? Tentar chegar à primeira lembrança? Imagino que a memória primordial deve ser, para a maior parte das pessoas, algum dia singular. Esse dia para mim foi o da mudança de casa. Eu tinha três anos de idade.

Saíamos do começo da Av. Rui Barbosa em Garanhuns (número 391) para o final e no outro lado da rua (número 1.138). Naquela época, era uma avenida em expansão, com a construção de novas casas em largas avenidas, uma das quais, para onde nos mudávamos, no bairro Heliópolis, conhecido, antes do loteamento das casas novas, como Arraial.

Da primeira casa, onde nasci, não tenho nenhuma lembrança, a não ser após ficar sabendo onde era. Fica no lado oposto ao Hotel Tavares Correia, outrora um Sanatório para tuberculose, onde meu pai foi clinicar quando se mudou para a Garanhuns, a convite do velho Tavares Correia. Eu gostava muito de olhar essa casa ao passar em frente. As paredes brancas, as portas e janelas cor de laranja. Deve vir daí minha preferência por essa cor.

A casa laranja. Nunca a conheci por dentro. No feriado de finados desse ano, fizemos uma viagem ao passado, eu e minhas duas irmãs, Rosa e Denise. Passamos primeiro em Bezerros. Uma visita às velhas tias. Outra ao cemitério, com flores para o túmulo da família desde meus bisavós paternos. Dali seguimos para Garanhuns.

A cidade continua bonita. Ainda mais florida nos parques públicos, porém sem os jardins das casas de outrora. Alguns jardins do Pau Pombo (Parque Ruber Van Der Linden), lembram os que vi recentemente nos de Monet. Os principais monumentos estão iguais: a Prefeitura, o Palácio Episcopal, a Igreja Matriz de Santo Antônio, o Colégio Santa Sofia, o Mosteiro de São Bento, o Colégio Diocesano, o Colégio XV de Novembro, o Seminário São José, a Rádio Jornal do Comércio. Revimos as marcas deixadas por meu pai: o Hospital Palmira Sales, no bairro da Boa Vista, e a Rua José Antônio Sales, na parte nova do bairro Heliópolis.

A casa onde nasci ainda é casa de residência, bem conservada. Mudou o telhado, as cores das paredes e esquadrias. Não conseguimos entrar. Na casa, só um cachorro. A segunda casa, vendida, virou um escritório de advocacia sem muro, sem jardins, sem oitões livres. Uma ampla e feia construção de um lado a outro do terreno. Mais de cinquenta por cento de nossa antiga vizinhança do bairro foi abaixo para virar comércio. O progresso…

Voltemos à memória primordial. Hoje tenho a lembrança perfeita da casa nova, de todos os seus cômodos, do quintal com fruteiras, galinheiro, criação de abelha e cachorro brabo solto à noite. O muro da frente tinha cerca viva de papoulas de muitas cores, as únicas que podíamos dar para meninos que passavam na rua pedindo flor para enterro de anjo.

Do dia da mudança tenho lembranças fragmentadas. Homens entrando e saindo da casa, carregando móveis. Era como se eu estivesse perdida em lugar estranho. Um sentimento de medo tomou conta de mim. É desse sentimento que lembro. O primeiro medo consciente.

A casa das rosas, como passo a chamá-la agora, tinha um terraço na frente que se comunicava com duas portas. Uma dava para a sala de visitas. Era a porta usada para entrar e sair de casa. A outra dava para uma saleta, onde ficavam as estantes de livro e uma pequena mesa redonda de vime (ainda hoje na casa de minha irmã) com quatro cadeiras que se perderam no tempo.

Naquele dia, eu fiquei nessa saleta, bem encolhidinha embaixo de uma das cadeiras para ninguém me ver. Os homens circulavam pela outra porta. Não sei do que eu tinha medo. Já não havia mais barulho de gente e de móveis arrastando quando meu irmão mais velho (tinha nove anos então) me encontrou ali chorando e me levou para os braços de minha mãe.

A porta dessa saleta não abria por fora: um trinco vertical fazia subir e descer dois ferros que se encaixavam em cima e embaixo. A não ser para pegar livros nas estantes – ah, o Tesouro da Juventude! – essa saleta não era de muita serventia. Cada um de nós tinha sua própria escrivaninha no quarto.

Quem não sonha com a casa da infância? No meio de muitos sonhos bons, um passou a me perseguir muitos anos depois de eu já ter saído de Garanhuns, com dezesseis anos, para morar no Recife. Era quase um pesadelo. No sonho eu acordo no meio da noite e vou ver se a porta da saleta está fechada. Descubro então que a precária fechadura tinha quebrado e a porta está escancarada. Sozinha, de novo com medo, agora claramente medo de ladrão, eu tento com grande esforço arrastar uns móveis pesados para escorar a porta.

Nunca me interessei em pensar no significado desse sonho. Morando em São Paulo, já com os filhos crescidos, ainda sonhava com a porta. Até que um dia, em férias no Recife, fui com minha mãe e minha irmã a Garanhuns para resolver algo do aluguel. Fomos encontrar o corretor na casa. Vazia de móveis, dava uma sensação estranha, parecendo menor. O mosaico da sala ainda estava lindo! Na foto, parece um tapete.

Fui até a saleta. A fechadura era a mesma. Abri e fechei a porta várias vezes e me certifiquei de que estava bem fechada. Freud que me explique agora por que, depois disso, nunca mais tive esse sonho-pesadelo.