Fernando Dourado

Isabelli Adjani em Camille Claudel (1988) direção de Bruno Nuytten.

Isabelli Adjani em Camille Claudel (1988) direção de Bruno Nuytten.

Uma das maravilhas dos tempos de hoje é que você pode sentar numa livraria e ler à vontade o livro que lhe agradar. Mais do que isso: algumas pessoas fazem dos salões iluminados um verdadeiro lar ou escritório. Na finada Borders, de Chicago – a da avenida Michigan -, acompanhei nos últimos anos um sujeito de barba de profeta que se instalava na melhor poltrona do recinto, pedia um copo de chá gelado para garantir o assento, descia para pesquisar as novidades e voltava sobraçando não menos de uma dúzia de livros fresquinhos, junto a outro tanto de revistas. Enquanto os consultava – ou folheava -, fazia anotações no caderno de capa preta de que não desgrudava, lanchava os biscoitos que tirava da mochila e, ao final do dia, se despedia dos funcionários da livraria como se fossem colegas de trabalho com quem tivesse compartilhado uma longa jornada. O mesmo valia para uma senhora de cabelo azul que acampava na Barnes and Noble da universidade De Paul, onde eu dava aula. Com a diferença que ela só cumpria meio expediente e dividia o tempo com os jornais, ali também disponíveis. Inverno ou verão, eu podia ter certeza de que ambos estariam cumprindo essa rotina, estivesse eu na cidade ou não. Ele, o quase mendigo, me trazia à memória o velho que dormia perto da ponte de Avignon. Era por lá que passeava com Dominique depois de um jantar frugal nas noites quentes do verão. Já ela, a senhorinha sedenta por informações de um mundo que logo já não seria mais o dela, lembrava a florista de Carpentras. Foram tempos bons aqueles em que vivi na Provence. Nos dias de muito frio aqui em Illinois, lembro invariavelmente dos invernos que passávamos reclusas, nós duas e Argo, nosso amado cão. Enquanto Dominique trabalhava, eu me dedicava a estudar o provençal e o catalão. Até cantarolava umas árias e isso a divertia imensamente. Tive meus tempos de cantora, lá atrás. Antes da escuridão e do uivo dos lobos, eu ia preparar o jantar. E assim vivemos, afagadas vez por outra pelo mistral ou pela tramontana. Dominique dizia que só quem era da região sabia diferenciá-los. Mas isso não era verdade. Hoje me ocorreu que passei a vida adulta açoitada por ventos.

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Eu não sei bem dizer quanto tempo Fabíola ficou por aqui. Acho que dez anos seria um bom palpite. Chamo-a pelo primeiro nome porque era assim que ela fazia questão que nos dirigíssemos a ela. No começo, havia certo constrangimento. Mas ela era tão sincera que não havia como nos furtarmos a um pedido singelo, e no entanto, tão contrário ao formalismo de nossa cultura, não é? Pois bem, foi lá pelo começo dos anos 1980 que Madame Lefèvre, uma mulher gentilíssima que todo mundo na região jurava ter uma queda pelo jovem Benoît Forrestier, chegou da América do Sul com aquela mulher tão espontânea e vivaz. Logo percebemos que ela só podia estar muito apaixonada pela bela brasileira, se é que se pode dizer assim em se tratando de duas mulheres. Veja bem, senhor, sou uma mera padeira aposentada à beira dos noventa anos. Fabíola não trouxera roupa de frio para nosso inverno e reconhecíamos nela os pulôveres tricotados de Madame Lefèvre.  Monsieur Forrestier pareceu bem abalado com o que viu, mas logo se incorporou ao novo núcleo e, ao que nos consta, ficaram bons amigos. Certo é que a madame, ou Dominique, se transformara em outra pessoa. Num ser luminoso e envolvente, apesar de contrita, como convém à tradição de sua família e aos artistas dotados de gênio. Mas quer saber? Fabíola terminou por transformar um pouco todos nós aqui no vilarejo. Já na primeira vez que cruzou o umbral daquela porta, foi se apresentando e, apesar de ainda falar um francês meio manco, logo nos encantou com seus modos. Não era todo dia que estrangeiros chegavam à região para se fixar. Muito menos para viver nosso estilo de vida como ela viveu. Somos uma gente de cultura agrícola e que tem momento certo para expandir os espíritos, geralmente no meio da primavera. Vivíamos praticamente da criação e, hoje em dia, os mais jovens tiram o sustento do turismo de alta gama. Mas naqueles anos, só uns raros viajantes a caminho do Lubéron pernoitavam aqui. Geralmente vinham jantar no “Chez Pauline” e, no dia seguinte, já não havia rastro deles. Pois eis que chegou Fabíola com beijos e abraços. Dizia ser de Salvador, Bahia. Pode ser? Depois da morte de Dominique Lefèvre, ela ainda ficou uns meses por aqui. Até ir para a América. O mundo para ela parecia ser pequeno.

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Quase não acreditei quando o editor de Cultura me confiou aquela missão de viagem. Escrever uma matéria sobre a grande escultora francesa era um pouco mais do que eu podia almejar. Quando soube que o convite era patrocinado pelo consulado francês e tinha apoio de uma companhia aérea, fiquei mais aliviado. Isso significava que o dinheiro não sairia dos cofres da redação, logo a cobrança do editor talvez não fosse tão implacável. De qualquer forma, eu já tinha meio caminho andado. Isso porque falava muito bem francês, o que me colocava em franca vantagem com relação aos demais colegas. Se a viagem à Provence em plena primavera era um prêmio, também gostei da outra parte do pacote que incluía uma ida à Bahia para pesquisar um mínimo sobre uma amiga misteriosa de Dominique, cujo rastro até a família perdera. Eram tempos duros para alternativos, digamos assim. Apurei que se chamava Fabíola, vinha de uma família do médio São Francisco e estudara em Salvador. Por meio de uma sobrinha ensimesmada, cheguei ao apartamento do Campo Grande, mas aquilo me disse pouco. Do que valia saber onde ela vivera quando jovem? Bom mesmo seria saber em que parte do mundo ela se encontrava e ir ter com ela diretamente, se já não fosse tarde. Ademais, parecia haver uma grande barreira que ninguém ousava transpor. Uma cantora conhecida que pediu anonimato de fonte, disse que Fabíola foi, quando universitária, uma figura apaixonante. Homens e mulheres babavam por um pouco de sua atenção. Todos e todas queriam invariavelmente levá-la para a cama.  Até que chegou a escultora francesa que não pediu permissão para arrastá-la de roldão. Depois que foram embora, praticamente nunca mais voltaram à terra. O que interessa, contudo, é que o corpo de Fabíola aparece esculpido de muitas formas e tamanhos no mundo. E, ultimamente, virou fetiche. O que quer que consiga apurar ao cabo dessa matéria, é importante chegar à filha que, pelo que soube, tem voltado à Bahia para saber mais da mãe.  Em suma, para um mero “foca” na área de cultura, foi um excelente começo embora eu tenha sabido mais pela boca de uma padeira do vilarejo do que dos “marchands” que cobram fortunas pelo trabalho de Dominique Lefèvre.

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Minha Bem Amada Fabíola, estive na tarde de hoje na clínica. O gentil Dr. Mersault me deu um prognóstico muito ruim, mas decidi que não vou compartilhá-lo contigo pelo tempo que for possível. Não vou me submeter a nenhum tratamento e, pelo tempo que me restar, serei grata ao médico pela honestidade. Falemos de hoje, mais um dia em que você tentará me explicar como os ventos se diferenciam pelos latidos de Argo. Pois bem, mais tarde você entrará pela escada da garagem e vai me chamar para um copo de vinho à lareira. Como recusar a dádiva desse momento? No dia que você ler essa cartinha que deixarei bem guardada numa bolsa que você quase nunca usa, quero que aceite minhas desculpas pelo meu nervosismo ontem em Tarascon. O encontro com o médico vinha deixando meus nervos em frangalhos. Agora, é incrível, estou mais aliviada. O personagem da cidade sobre quem você perguntou era Tartarin. Quem foi ele? Segundo Alphonse Daudet, que foi meu escritor favorito quando adolescente, Tartarin era um bufão, um excêntrico desses que você tanto ama, ademais de um obcecado com a ideia de caçar leões na África setentrional, nos montes Atlas. Alardeava proezas para toda a cidade de Tarascon, onde era considerado um “grande” – assim mesmo, com o adjetivo elevado a substantivo –  pelos cidadãos. Sob o luar da Provence, rescendendo ao alecrim e à lavanda que se tornaram teu próprio aroma, e empolgado pela atenção da platéia, Tartarin mesmerizava homens, mulheres e crianças com pausas de tremendo suspense e ninguém se dava ao trabalho de querer saber se ele fora mesmo caçar leões na Argélia ou não. Na verdade, todos sabiam que ele passava o verão no vilarejo das tias, em Uzès. Mais importante do que a verdade factual era o pretexto para o convívio das pessoas. Faço um longo caminho para dizer que vou sentir sua falta onde estiver. Não pense que não percebi o quanto a encantou o veranista americano de Carpentras. Soube que ele a levou com galanteios até a florista local mais de uma vez, mas como posso me rebelar contra isso? Se já não terei minha vida, com que direito posso privá-la da tua? Na Provence, minha querida, a gente sabe de tudo. Onde quer que você vá, me leve. Tua, Dominique.

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Meu nome é Rose e parece que foi em homenagem à minha avó paterna, nascida na Lituânia. Na verdade, o nome completo é Rose Dominique Kutnikas e até entendo que haja tanto interesse pela vida de minha mãe. Mas, como diz meu pai, temos que respeitar os assuntos privados de família e não nos sentimos na obrigação de testemunhar o que quer que seja sobre o passado dela. Terminei recentemente meus estudos em Wharton e era normal que quisesse saber mais sobre minhas origens. Um pouco disso, posso dividir com você. No verão passado, estive em Kaunas para visitar os locais por onde passaram meus ancestrais paternos. Mas, na verdade, o que descobri foi muito pouco. Esse ano, é normal que tenha vindo à Bahia onde fui bem recebida por primos que vivem na cidade onde ela passou a infância, ao lado do rio São Francisco. Ainda me dói muito tê-la perdido há apenas um ano, mas saber que ela pode estar por trás de todas essas esculturas disputadas a peso de ouro pelas galerias do Soho, tudo isso me dá a estranha sensação de que ela está mais viva do que nunca. Minha mãe teve uma vida privilegiada, mas eu sempre tive a impressão de que era uma pessoa um pouco melancólica. Tinha altos e baixos. Não sei, talvez o espaço de uma vida fosse pequeno demais para ela. Embora se possa dizer sem medo de errar que ela teve várias. Meus primos disseram que depois que a tia Fabíola saiu do Brasil para estudar com a professora que a escolhera – meu segundo nome é uma homenagem a ela -, a família silenciou sobre seus passos. O que temos de concreto é que meu pai se encantou pelo sul da França e comprou uma pequena casa de veraneio na cidade de Carpentras. Foi lá que ele conheceu minha mãe que ia vez por outra comprar flores, uma paixão que a acompanhou até o fim da vida. Deviam estar vivendo em Chicago há uns três anos quando eu nasci. Nessa reconstituição dos passos de meus antepassados, talvez haja um elo perdido na França, mas nunca me senti tentada a saber mais sobre a tal Dominique. Mesmo porque os Lefèvre são muito reservados. Digamos, muito franceses. Meu pai se ressentiu muito da morte de minha mãe, mas seria a última pessoa do mundo a comentar sobre ela. Isso dito, peço a todos que nos poupem de tanto assédio. Só se deve olhar para trás para colher o vento que nos leva adiante. Isso pode soar bem americano. Mas parece que minha mãe também gostava dos ventos.

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