Fernando Dourado

Tucanos – Decoração de parede.

É bem provável que no dia em que se inventariarem os descaminhos do PSDB como partido político brasileiro de referência, no trigésimo aniversário de sua fundação, o historiador do futuro aponte o dia 12 de março de 2018 como um enorme e quase despercebido divisor de águas. Conforme ele constatará, a data assinala o anúncio do então prefeito de São Paulo, João Doria Jr., de que deixaria o cargo que ocupava há apenas 15 meses para disputar em prévia a primazia de se candidatar a governador do Estado. Ninguém precisava àquela altura ser PhD em psicologia ou fino leitor de pugilato de ringue para entender a chave de braço de que o então prefeito tentava se desvencilhar. A história é simples e curta. Numa tentativa de emular Michael Bloomberg, ex-alcaide de Nova York, Doria Jr. comprou a ideia de que defenestraria o candidato do PT à prefeitura, no caso Fernando Haddad, tido por alguns tucanos como um dos únicos próceres da agremiação em desgraça com quem se poderia conversar por mais de dez minutos, e que então postulava uma inverossímil reeleição. Para tanto, Doria Jr. deveria recorrer a uma artilharia pouco convencional para surpreender o soberbo Andrea Matarazzo, ex-embaixador do Brasil em Roma, com uma manobra de flanco que lhe valesse a preferência dos delegados peessedebistas presentes às prévias. E assim ele fez, com as bençãos dos desafetos tucanos do candidato oficial e, é claro, algum capital. Quanto ao PT, então engolfado em irrecuperáveis escândalos, mormente os decorrentes do assalto sistemático aos cofres públicos, era óbvio que Haddad tinha pouca ou nenhuma chance de fazer frente a um tucano. Foi assim que, eleito em primeiro turno, e iludido com os vaticínios do espelho que lhe repetiam a toda hora que ele personificava o sucesso do bom gestor – mercê da máquina promocional que colocou em funcionamento -, Doria Jr. assumiu a prefeitura crente de que um iPhone, um maquiador de plantão, um exército de seguidores no Instagram e um estoque de jogadas midiáticas, já lhe assegurariam lugar no panteão tucano. Este pode ter sido o primeiro engano da série que sacudiria o ramerrão do ninho dos pássaros bicudos.

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Assim sendo, como o tal cientista político do futuro também verá, nem tudo foi deslumbramento na audiência. Isso porque olhos experientes perceberam os descaminhos perigosos e extravagantes do prefeito, mesmo relevados os padrões marcadamente narcisistas da agremiação. Se os primeiros meses assinalaram alta dose de euforia para com o noviço – que declarou guerra sem quartel a grafiteiros, pichadores e “nóias” da Cracolândia -, e se os cacoetes milimetricamente calculados lhe turbinavam o prestígio nas redes sociais a níveis pouco vistos no Brasil fora do mundo esportivo, a encomenda estava saindo melhor do que o pedido. Vistoriando programas de atendimento médico de madrugada, passando pitos públicos em secretários que viviam em estado de vigília midiática permanente, espinafrando a sabida incompetência de seu vice-prefeito na pasta da zeladoria e varrição, e travestido de gari – espécie de subcasta na mitologia da classe média brasileira -, Doria Jr. foi catapultado para muito além da audiência do maior programa de televisão que protagonizara, todo ele concebido por espertos, estrelado por ególatras, coadjuvado por alorpados e destinado ao consumo de imbecis. Faltou-lhe, contudo, contar com um fato tão prosaico quanto inquietante: é difícil, se é que é possível, fingir sentimentos por demasiado tempo. Acostumado a pequenos eventos em que se especializou em puxar aplausos, que espécie de “assignement” era aquele que se arrastaria por mais mil dias? E quantas novas rugas teria que espichar se cumprisse o calvário até o fim? Foi então que se instalaram nas comissuras da boca hirta as primeira manifestações de soberba descarada. Enquanto rodava mundo no afã de tirar uma foto ao lado de potentados – uma mísera selfie com Macron já serviria -, ficava patente que não seria com ele que São Paulo contaria para se aprumar, muito menos para desobstruir 600 córregos infartados. E que a aura de gestor havia sido o que na Espanha é conhecida como uma “tapadera”, voltada para turbinar sua participação em outros certames. Instaurava-se a luta do poder pelo poder, na pior acepção do termo. Ou da endorfina pela endorfina, aquela dos sôfregos pelo aplauso fácil dos eventos de salão. Na prefeitura, o tédio devorava Doria Jr.; à sombra, Bruno Covas e asseclas lhe monitoravam os movimentos. O butim era colossal.

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Mas recomenda-se cautela ao analista político do futuro por ocasião desse trigésimo aniversário, aquele que colocará na lâmina do microscópio o bacilo que contaminou o organismo tucano, lá mesmo onde ele é tido como mais virtuoso, que é em São Paulo. Certo mesmo é que Doria Jr. intensificou a movimentação e em novembro se mostrou arrependido de ter estimulado os pré-candidatos tucanos ao governo do estado, aqueles mesmos que acorreram a ele para saber se contavam com sua benção e, sub-repticiamente, se não lhe estavam a estorvar planos secretos. Dissimulado, disse-lhes que fossem em frente, e que trabalhassem os delegados. Mas bastaram poucos meses para que os chamasse de volta ao gabinete, agora na presença de seu maior cabo eleitoral e principal interessado em sua saída prematura da prefeitura – o vice Bruno Covas, um ultraje ao sobrenome – para anunciar que, na verdade, ele sim também entraria no páreo e partiria para postular a candidatura para si. Como tais movimentos poderiam sinalizar uma temida investida rumo ao Planalto – o que não está descartado até hoje -, um ou outro figurão do partido lhe questionou o comprometimento frouxo para com o magnífico desafio administrativo que representava governar a cidade de São Paulo. Em pleno Círio, em Belém, o novo devoto de Nossa Senhora de Nazaré torceu a boca, fez sua melhor expressão de nojo e arremeteu contra o ex-governador do estado e ex-presidente do partido, Alberto Goldman, que ousara lhe cobrar um comprometimento com a função. Acoimado de fracassado e de parasita das glórias alheias, Goldman foi espinafrado com fúria tão devastadora, que até os asseclas do prefeito o receberam cabisbaixos, invocando a virulência do palavrório emanado do fígado. Isso não era da política, disseram. Sendo frágil, ou nula, a empatia que pensara ter forjado ao envergar macacão de gari e ao disfarçar o asco que lhe inspiram os perdedores – os losers, como gosta de dizer entre quatro paredes -, eis que muito antes do que pensava, a saturação lhe tomou conta da vida, e se instaurou o desespero para achar para si uma saída honrosa. Não suportava mais o cargo. Assim, mesmo que os maiores desastres levem tempo para ser construídos, certo mesmo é que em poucos meses, Doria Jr. se transformou naquilo que dizia repudiar: um político profissional na pior acepção do termo, posto que personalista e carreirista.

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“Doria soube pegá-lo como refém e Geraldo está pagando resgate”, murmurou entredentes uma iminência parda do partido, uma dessas figuras venalizadas de grande poder informal e que quase nunca têm seu nome estampado nos jornais, pelo menos não no noticiário político. Quem é o refém a que ele se referia? Ora, ao então governador Alckmin. Prestes a deixar o Palácio dos Bandeirantes no prazo de desincompatibilização, consternado com o cerimonial de adeus do local tão intimamente associado ao falecido filho, o calejado político de Pindamonhangaba, o mais notório e altivo atleta em atividade da modalidade dita “jogar parado”, parecia paralisado pela proverbial indecisão que todos apõem ao DNA da legenda agora balzaquiana. De mais, estava transido pelo medo de que, sentindo-se sem espaço no partido, Doria Jr. debandasse para outra agremiação e ali cavasse um espaço à direita do centro, roubando-lhe as bandeiras e percorrendo o Brasil nas asas da capilaridade do Lide, uma espécie de maçonaria de endinheirados que o ovacionam por onde passa, além de arregimentar profusas claques. Nesse contexto, o historiador do futuro talvez perceba que a palavra e o gesto do primeiro mandatário – alçado a presidente do partido e, semanas mais tarde, com a defecção do histriônico Arthur Virgílio, prefeito de Manaus, também a pré-candidato a Presidente das República -, teriam tido peso suficiente para estancar as litanias levantinas do presidente do estadual do PSDB, um médico libanês de nascimento, formado na França e radicado em Bauru, que ora pedia compostura aos contendores, ora agia como se estivesse à frente de falanges do Hezbollah. Alckmin fingiu ignorar que um gesto seu teria apaziguado os prefeitos do interior de São Paulo que, atentos leitores das entrelinhas de sua pálida linguagem, sentiram-se alforriados pelo silêncio omisso e medroso para subverter a ordem das prévias, de forma a que Doria Jr. não se desincompatibilizasse do cargo sem ter a pré-candidatura ao governo devidamente garantida. Era um “hedge” político. Uma aberração por ele abençoada e nociva à democracia. Mesmo que isso se desse em total detrimento do interesse maior do partido, inclusive nacionalmente. E foi assim que Alckmin, por inominável tibieza que alguns de seus próximos julgaram genial, tirou do cenário paulistano uma chance efetiva de compensar o impacto anódino que sua candidatura a presidente tem em quase todos os grandes colégios eleitorais do país. Salvo por São Paulo e, quem quiser que confie, por Minas Gerais.

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Nesse contexto, concluirá o historiador do futuro, não há espanto algum no fato de que a candidatura de Alckmin apresente sérias fissuras em meados de julho de 2018, data de redação destes apontamentos. Isso porque Doria Jr. continua sendo alvo de um tratamento meramente protocolar por parte de um acuado e ressentido Alckmin e, visivelmente, já perdeu parte substancial do eleitorado da capital que o sufragou em primeiro turno há menos de dois anos, quem quer que venham a ser os demais contendores. Não obstante essa erosão, Doria Jr. continua a fazer sombra ao nome de Alckmin que teme tanto de dia quanto à noite o advento de uma espécie de golpe branco quando da convenção tucana. Ou conspirações palacianas de quaisquer ordem que condicionem maliciosamente o engajamento de agremiações-chave à candidatura tucana, neste caso desde que o candidato seja Doria Jr., e não Alckmin. Seja como for, a única coisa que se pode dar por certa – e veja-se aqui o quanto ela é sintomática -, é que o voto pessoal do ex-governador e de boa parte de seu entourage será para Márcio França na eleição estadual, o socialista que governará São Paulo até o fim do ano, e também candidato à reeleição. Por titubear, por não conseguir adotar uma postura disruptiva, perdeu Alckmin a primazia de ter a seu lado um candidato que personificasse o novo – e ele tinha dois ótimos nomes para tal -, e que tornasse mais leve sua inusitada cavalgada Brasil afora. Digo inusitada porque fora das fronteiras de seu estado natal, o honrado Alckmin parece estar tão à vontade quanto qualquer um de nós estaria em solo marciano. E já nem se fale aqui dos espaços abertos do mundo, uma abstração que ele só poderia (rá) explorar mercê dos bons quadros que, neste ponto, poderiam secundá-lo com alguma desenvoltura. Em favor da candidatura tucana – extremamente importante num momento em que as alternativas são aterradoras, e as que não o são não dispõem de espaço legal na televisão para divulgar plataformas ou propagar suas ideias-, só resta a Alckmin torcer pela aclamação por exclusão, e para que, à custa de repetir os ritos bisonhos de entreter conversinhas de padaria em torno de café de bule, o Brasil se renda ao mal menor e reconheça o bom cartel de realizações que ele traz no embornal numa campanha que, pelo menos, lhe dá a vantagem e o alívio de ser curta. Por jogar parado, por repetir seu mantra surrado de empego e renda, e por ter tido medo de Doria Jr., a Alckmin resta a fé e a sorte. Ao Brasil, idem.

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