Teresa Sales

Conhaque a Charuto no Bar Sofia, Havana, Cuba.

Conhaque a Charuto no Bar Sofia, Havana, Cuba.

O primeiro dia foi no domingo de nossa chegada. Estávamos no apartamento do hotel nas primeiras arrumações para uma morada de uma semana. Pela janela aberta do banheiro chegava um som de rumba. Apressamo-nos para não perder. Nos dias seguintes ficaríamos sabendo que não havia pressa. A música ao vivo estaria ali todos os dias ao almoço e ao jantar.

Era só sair na calçada do hotel, ouvir o pregão dos taxistas (que nos acompanharia até o último dia, taxi?), caminhar alguns poucos metros em direção ao Malecon, e lá estávamos. Numa esquina estratégica na área turística do bairro Vedado, no entorno do Hotel Nacional. Quando um dos garçons nos viu especulando o local, logo se aproximou e nos convidou para entrar. Nenhuma formalidade. Como se ali ele estivesse recebendo conhecidos a quem introduz em sua casa.

Nossa fome era de um dia atribulado de vôos e conexões. Com as burocracias da chegada, esquecêramos de trocar moedas no aeroporto, o que não nos causou nenhum transtorno na chegada. O taxista (Chevrollet 54 em excelente performance e movido a diesel) aceitou de bom grado os 25 euros pela corrida, ademais, um valor praticamente equivalente à moeda local de turistas.

Ainda tenho seu cartão de apresentação, colorido, um céu com nuvens ao fundo e sua foto de camisa branca e um sorriso igual ao que nos presenteou durante toda a conversa do caminho, pelo imenso retrovisor do carro. Um senhor bem-apessoado, pela casa dos cinquenta anos, engenheiro de formação. Não, não valia a pena trabalhar na sua profissão, que teria que ser com salário fixo pago pelo governo. Num dia de taxi ele apurava um mês de salário. Um lado do cartão escrito em inglês: Official Guide and Driver; no verso, sua segunda ocupação: Prints design, Impressiones de tarjetas de Presentación y Sueltos.

E assim vai vivendo o primeiro cubano com quem travamos conhecimento e com quem conversamos todo o trajeto do aeroporto ao hotel. Penso agora que conversar foi o que mais fizemos na Ilha. Só isso valeria a viagem. Pessoas que querem conhecer Cuba não vão à cata do turismo convencional, pois, de saída, já sabemos da precariedade do país pós embargo americano. Queremos ver, ouvir, sentir, auscultar uma sociedade diferente, o último experimento socialista do planeta (sem contar a China e a Coréia do Norte). E tinha que ser agora, enquanto os gringos não chegam.

A falta da moeda local também não foi problema no restaurante. Pagamos em euros e recebemos o troco em CUCs, tal como no taxi. Sentamos em uma das mesas próximas do conjunto de músicos. O cantor se destacava no grupo, tocando maracas. Com cabelos de look africano e um boné, lembrava Milton Nascimento. (Nesse dia, foi ele quem passou no intervalo para vender o CD do grupo ou simplesmente pegar algum dinheiro. Não conhecia Milton Nascimento, mas se referiu a Michel Teló). Uma cantora que com ele se revezava, ou às vezes cantavam juntos, tocava ora as claves (dois “pauzinhos” de madeira que produzem sons percutidos um contra o outro), ora a “cajita” (um cilindro de madeira oca tocado por baqueta). Dois violões. E o mais importante da rumba, os tambores, tocados com as mãos livres, sem baqueta. Comandava esses tambores um negro retinto, baixinho, o mais simpático e jovem do grupo, de sorriso sempre aberto quando com ele cruzávamos o olhar.

Ficamos freguesas. À alegria contagiante da música juntava-se o quê de informalidade que faz o povo cubano tão próximo a nós, brasileiros. Fomos também a um dos restaurantes e a um show do Buena Vista no Hotel Nacional. Nada a ver. Americanos, russos, gente do mundo todo, garçons aparamentados e representando o papel formal de qualquer garçom. O mesmo no bar La Florecita, lindo, caro, também com cheiro de estrangeiros.

O cheiro predominante da cidade era, porém o dos anos cinquenta, sessenta. Os maravilhosos carrões americanos circulando pelas ruas. O clube de jazz (La Zorra y el Cuervo), onde ouvi uma excelente apresentação de Oscar Valdez e seu conjunto, em um ambiente fechado com quase todos bebendo e fumando cigarro ou charuto. Depois do segundo mojito, ouvir a boa música nesse clube fumacento e cheio da magia de Nova York (e de Havana, por supuesto) de outrora foi das mais agradáveis reminiscências.

Um dia presenciei a chegada no nosso hotel de dois frades e uma freira com vestimentas franciscanas. À noite estavam os três no Sofia. Vestidos à paisana. Revezavam as roupas de frade de dia e à paisana de noite, onde os encontramos mais de uma vez. Fui à mesa deles, puxei conversa. Com os dois frades, canadenses, o diálogo fluiu melhor em inglês. Estavam em Havana para um Encontro sobre políticas anti homofóbicas e androfóbicas. Ela, cubana de nascimento, migrara com os pais para Miami quando criança. Agora estava com propósitos de se estabelecer de novo em Cuba para o trabalho pastoral. Numa das noites, depois de vários Cuba Libre, juntou-se aos músicos e dançou no maior desembaraço e animação. Foi da conversa com eles que me surgiu a ideia dessa crônica, sendo o Sofia um microcosmo tão perfeito da sociedade cubana de hoje.

Os músicos, os garçons e garçonetes, o gerente, o cozinheiro, todos funcionários do governo. A gorjeta distribuem entre eles. O fato de lidar com duas moedas é um imponderável no cotidiano de uma ampla camada da população que trabalha no setor serviços. A insatisfação é visível à primeira conversa. Alguns, como os taxistas com quem tivemos contato mais a vagar (o do aeroporto e o que foi conosco à praia de Varadero em seu fantástico Plymouth 53), gostariam de viajar, conhecer outros países. Seu nível de ganhos daria para isso. Mas para eles impõem-se as limitações de visto, quase impossíveis de transpor.

 

Difícil estabelecer o limite entre a simpatia, a comunicabilidade e a alegria natural de um povo com origens tão africanas quanto nós brasileiros; e o interesse em tirar proveito do turista, com o qual nos deparamos todos os dias. Havana é hoje um enigma difícil de decifrar. Uma população toda escolarizada, com saúde de boa qualidade assegurada, transporte público com tarifa quase simbólica (desde o segundo dia, circulamos na cidade pela linha de ônibus P5), ruas pavimentadas, bem conservadas e largas avenidas. E onde todos têm direito ao salário. (Amartya Sen, o indiano prêmio Nobel sucessor de Josué de Castro no estudo da fome, não teria dificuldade em caracterizar ali o oposto da fome, que ele nomeou como “Entitlements”: outorga ou garantias básicas). Porém, esse mesmo povo detentor dos direitos básicos à vida, vislumbrando uma pequena brecha de liberdade, quer mais. Muito mais.

 

Às vezes, com poucos clientes no restaurante, víamos o grupo de garçonetes se juntar numa mesa para conversar à vontade. Pareciam estar em casa. Se um dos garçons ou garçonetes ou até um dos músicos via alguém nas mesas se animando, não relutava em tirar para dançar. Meu par favorito foi Juan, o gerente de charuto sempre na boca. Dançava boleros leve como uma pluma, como nunca mais eu experimentara desde os bailes da AGA em Garanhuns nos meus quinze, dezesseis anos.

 

Nossa despedida no Bar Sofia foi no domingo dia das mães. (Aqui devo acrescentar que essa aventura cubana foi compartilhada com minha irmã, grande companheira de viagem, Rosa Sales). Mudara o perfil dos clientes. Como em qualquer restaurante brasileiro, lá estavam nesse dia famílias inteiras de cubanos, mães, pais, filhos, avós. Roupas muito coloridas e justas no corpo, cabelos com look africano, ouvidos atentos à música, muita cerveja, pouca ou nenhuma comida. Quis saber de Juan: pagariam na moeda local, sendo aquele um dia especial? Não. Eram cubanos com parentes em Miami.

***