"Blind Justice" Kinuko Craft (1980)

“Blind Justice” Kinuko Craft (1980)

João Humberto Martorelli

Pretendia destinar a coluna hoje à França livre e a Paris ultrajada de tantas mortes, mas outra morte se interpôs, súbita, daquela que faz a gente suplicar que não tivesse acontecido, como se a incoerência do momento não fosse presença em todas as mortes. ÔÔÔÔ Telminha, leia esta carta que nunca escrevi, cantava eu para ela nos corredores da Faculdade de Direito, imitando Alceu Valença, ela ria, às vezes se fazia de enjoada, pedia para eu parar, porque se sentia genuinamente envergonhada com aquelas brincadeiras; ou não? Tinha vez que eu pensava ser puro charme. Faço logo uma observação: nada havia entre nós, salvo afeto de amigos, colegas de turma, notadamente em razão da diferença de idades, ela ingressara mais tarde no curso, já casada, com filhas, uma senhora de altíssima linha, elegante, a verdade é quem conhecesse Telma Paiva não imaginaria que ela suscitava e permitia gracejos, ai de mim, confessando à coluna, este protótipo de homem chato e sério, divertimentos juvenis, mas é que Telma prezava tanto pela elegância, vestidos bem cortados, cintos larguíssimos, enormes, aquelas fivelas anunciando-se na frente do corpo, o cabelo arrumado quase saindo do salão, a bolsa ao braço, por mais livros que tivesse a carregar, o sapato alto em perfeito equilíbrio, dir-se-ia mesmo que, antes de entrar no recinto da Faculdade, ela equilibraria os livros na cabeça, só para treinar elegância, que não dava para não gracejar. Certa noite, ela chegou tão arrumada, mas tão arrumada, que não teve jeito, pus-me de joelhos e, aos berros, no apinhado corredor da Faculdade, pedi-lhe em casamento, assim, quase em transe, ela, o rosto crispado e vermelho reprimindo-me, mas logo desabando em um sorriso amplo, entrando na brincadeira e dizendo que já tinha marido, mas, se tivesse que escolher outro, seria bem mais novo do que eu, então com 18 anos. Telma era uma lady no meio daqueles rebeldes de esquerda, barbudos, inquietos, revoltados, daquelas estudantes jovens, com tantos problemas à frente. Ela já os tinha resolvido a todos, cursava a Faculdade por diletantismo, para se ocupar, era nosso imaginário inicial. E depois, colando grau, que diletantismo que nada, Telma fora ótima aluna, danou-se a advogar, a brigar pela sobrevivência, sua e das filhas, um escritório aqui, outro acolá, e nos perdemos no tempo e nas memórias, somente reacesas quando e vez nos encontros, muito escassos, da Turma Torquato Castro, orgulhosamente formada no ano de 1977, sob muitos protestos políticos. Telma, a lady, estava lá entre nós, protestando. A notícia afiada, incômoda: Telma se foi, não morreu apenas porque o coração parou, morrera antes, alvejada pelo infortúnio, doente, definhada, pobre, despojada de joias e dos cintos largos, e sem que estivéssemos ao seu redor. Possa eu ao menos deixar-lhe nesta carta, que nunca escrevi, um beijo, um pedido de casamento, um adeus.