Fernando Dourado

Tommy.

Tommy.

A caminho de visitá-la em casa com a intenção de lá pernoitar pela primeira vez, Félix se deteve longamente diante das barracas de flores que margeiam o muro do cemitério do Araçá e, sem pressa, foi atrás do arranjo que a encantaria. Ele mesmo tinha preferência pelo chamado buquê de noiva. É relativamente pequeno e fica lindo quando se combinam flores do campo de talos longos, criteriosamente aparados para que o todo não resulte num ramalhete de pedra tumular. Assim, pequenos botões de rosa realçam sobremodo quando ilhados por astromélias amarelas; bocas de leão; tangos e egípcios, com um belo acabamento que as compacte em ráfia bem atada, num cone transparente. Depois da pesquisa de praxe, terminou na barraca onze, como quase sempre acontecia. Nessas horas, trocava um olhar cúmplice com o vendedor que já sabia que contaria com a preferência daquele homem espichado, tão metódico quanto previsível. Pagou em dinheiro e embutiu a gorjeta que também era de lei. Irritava-o o “bom divertimento” com que se despedia o sujeito de sotaque caipira e hálito de cachaça. Soava vulgar. Mas seria de mau agouro se, depois de anos, ele esquecesse o bordão.

Acomodando o arranjo com cuidado no porta-malas para preservar o banco do acompanhante de respingos e pétalas, regulou os retrovisores como sempre fazia antes de acionar o motor e lá seguiu ele. O relógio do painel marcava vinte e cinquenta, tempo quase ideal para chegar pontualmente, mas sem folgas. Dali virou à direita em direção ao Pacaembu e, tendo trânsito livre pela frente, chegou à porta do apartamento dela, situado numa rua ladeirosa de Higienópolis. Pela primeira vez, fora instruído a parar na garagem e o portão eletrônico se abriu mal ele apontou na rampa, sinal de que ela dera o número da placa ao segurança. Passada a primeira cancela, saltou do carro, confirmou os dados junto ao porteiro na guarita e, afinal, transpôs o portão – este pesado e levadiço – antes de estacionar numa área de visitantes que comportava duas dúzias de veículos. Cuidando para que o seu estivesse rigorosamente entre as marcas pintadas no chão, rumou para o elevador respirando fundo e tentando mentalizar o que dizer quando a visse. Esconderia o buquê nas costas e o mostraria com estardalhaço como faria um mágico? Ou o presentearia com beatitude, como faz uma colegial diante do ditador?

A caminho do andar alto, Félix se contemplou longamente no espelho. Com a barba arruivada bem aparada, os olhos de um azul claro suavizavam o nariz adunco. Sendo sábado, e tendo dormido até mais tarde, estava sem olheiras, o que fazia toda a diferença. As bochechas estavam ligeiramente coradas, reflexo do remédio contra disfunção erétil que tomara ao sair de casa. A caminho do vigésimo andar, apertou aleatoriamente os botões de dois andares intermediários para ganhar tempo e se ver sob vários ângulos, antes do reencontro. Enxugou a oleosidade da testa com um lenço perfumado e encolheu a barriga discreta. Ensaiou dois tipos de sorriso, mas se conteve ao se dar conta de que a câmara do teto tudo filmava e que o porteiro, ou ela mesma, poderiam estar se divertindo às suas custas. Apalpou os bolsos e se certificou de que tudo estava lá: chave, chiclete, aspirina infantil, documentos e carteira. Finda a segunda escala, voltou a encher os pulmões e sentiu o elevador refrear. Latidos discretos se tornavam agora mais nítidos e, de repente, ao abrir da porta, lá estava ela, a mulher por quem esperara uma vida, como gostava de dizer.

Estendendo o buquê com uma mão, enlaçou-a com o braço livre e sentiu o perfume cítrico que emanava da fronteira entre o pescoço e a nuca dela. Belo pedaço de fêmea, essa Francesca. Enlaçados, Félix sentiu as patinhas de um cachorro que rosnava e pedia atenção. “Esse é o Tommy. Tommy, diga oi para o tio Félix. Félix, não é uma gracinha, meu bebê? É o amor da vida da mamãe, não é, meu lindo?”. Félix sentiu as unhas mal aparadas do bicho esgarçar de leve o tecido felpudo da calça de meia-estação. Desviando a boca do rosto de Francesca que já deixara o buquê no encosto do sofá da entrada, se dobrou para fazer um afago no cãozinho maltês que o recebia com tamanha estridência. “Oi, Tommy”, balbuciou fazendo voz de retardado. “Quer dizer que você é o famoso morador dessa bela casa, hein? Tenho certeza de que seremos bons amigos”. Acompanhando Francesca até a copa espaçosa onde ela colocou as flores num jarro branco, ele não esqueceu de dizer o que a tradição bem-testada impunha: “Essas flores não morrem, amore. Quando murcharem, deixe o buquê seco num canto da sala como decoração. No dia que tivermos muitos, fará um baita efeito”. “Lindas, obrigada”. Tommy latiu alto seu grito de alerta.

*

É comum que os casais se enredem um pouco ao narrar a amigos e confidentes os pontos fortes de uma união conjugal. Félix não era de se estender em delongas, mas adorava dizer que o que o mantinha bem com Francesca era que ela pontuava nota oito em todos os quesitos. Era boa amante, não havia dúvida. Mas ainda não era, se é que chegaria a ser um dia, tão inspirada e ousada quanto algumas das namoradas que tivera. Por outro lado, aquela pele nacarada; os contornos harmônicos do corpo e a boca gulosa e ousada já a colocavam num patamar preferencial. Oito, portanto, era uma boa nota, com dez por cento de margem de erro para mais ou para menos. Isso significava que já tivera noites estupendas com ela e nunca, jamais, uma que tivesse sido realmente decepcionante. Ademais, ela sabia se vestir com apuro, quando necessário, mas ficava melhor mesmo quando afetava um ar despojado, com calças perfuradas, jaqueta de couro e os cabelos arruivados indômitos, quase assanhados. Na cozinha, podia surpreender, embora as receitas se repetissem um pouco demais para uma descendente de sicilianos. Mas quem disse que italiano gosta de variedade?

Um ano se passara desde que ele dormira em sua casa pela primeira vez. Dezenas de buquês ressequidos pendiam do teto da varanda, tal como morcegos obesos. As rotinas eram bem estabelecidas. Como ela só ia à galeria na parte da tarde, salvo raríssima vez em que se comprometia a ver um cliente cedo, Félix se acostumou a dormir até as sete horas. Pouco depois de despertar, ia à academia do próprio prédio para uma hora de ginástica e uns dez minutos de braçadas na piscina aquecida. Depois dos quarenta, era imprescindível. De lá, contudo, seguia para a clínica, de onde só saía à noite, chegando em casa quase à mesma hora que ela. Muitas vezes, sincronizavam os horários de forma tal que entravam na garagem simultaneamente. A três andares do destino, o humor de Félix passava por rápida e inexorável deterioração. Isso porque, mal entravam em casa, eis que dez minutos de relógio seriam tomados pelos afagos quase imorais que Francesca fazia em Tommy. Essa história de ela tocar o lindo nariz no focinho úmido daquele cão intruso lhe dava asco. Certa feita, o celerado teve uma ereção enquanto ela o afagava na barriga. Mas sobre tais antipatias, ele preferia silenciar.

Foi conversando com o amigo Manfred Burckhardt, no simpático Café Árabe da avenida Brigadeiro Faria Lima, que lhe ocorreu ouvir com atenção uma conversa sugestiva na mesa ao lado. Uma senhora de forte sotaque alemão, contava à amiga que tivera que levar a gata ao veterinário porque esta ingerira um comprimido de Rivotril, caído no carpete por descuido. Sem nada dizer a Manfred, que já ouvira não sem espanto um rosário de queixas sobre os ganidos de Tommy, o cachorro infernal, ocorreu a Félix fazer uma boa provisão de cartelas na clínica e, experimentalmente, jogar uma drágea no piso de mármore, sem que Francesca se desse conta do estratagema. Poderia ser uma forma de estancar aqueles latidos enfermiços que se encadeavam por mais de dez minutos até que alguém o levasse ao colo ou lhe atendesse algum capricho. Sequer os chutes discretos que Félix lhe dava na barriga vinham aplacando aquela enorme sofreguidão por carinho e atenção que, para sua revolta, Francesca prodigalizava sem parcimônia nem critério. Certa vez, lhe escapou: “Se fosse uma criança, seria um futuro homicida”. Ela apenas o olhou com espanto e os olhos lacrimejaram.

À beira dos quarenta anos e sem sequer aceitar falar de filhos, o que para ele era um alívio, parece que ela sublimara essas vontades até naturais nos cuidados extremados que dava àquele bicho. Ao constatar que o remédio o deixava ainda mais excitado, e já desconfiado de que Inês, a velha faxineira, o vinha observando pelo canto dos olhos, talvez desconfiada de que ele estava tramando algo contra Tommy, eliminá-lo passou a constituir uma verdadeira obsessão para Félix. Aquela peste era, de forma inequívoca e cabal, o maior empecilho que ambos encontravam para estar muito bem. O ódio tomava tal proporção que ele se irritava até mesmo nas raras vezes em que o cão dormitava no tapete felpudo da sala de televisão. Enquanto se barbeava, guiava ou tomava banho, Félix contemplava opções: pediria ao paraibano Robertinho que o sequestrasse e lhe desse sumiço num passeio pela praça Buenos Aires. Depois disso, ele afixaria cartazes por alguns dias na vizinhança fingindo aflição, mas a essa altura o animal já estaria bem longe dali, e dificilmente vivo. Ou podia lhe ministrar raticida com a ração. Será que se fazia autópsia de cachorro? Era o que faltava.

*

Enquanto nada disso tomava forma concreta, Francesca levava Tommy com frequência cada vez maior ao veterinário da avenida Angélica. Decididamente, podia estar colhendo evidências de intoxicação ou mesmo das marcas dos sopapos nada amistosos. Mas talvez fosse só delírio seu. Quando chegavam dessas consultas, ele levantava Tommy no ar e dizia: “E, então, como vai meu meninão?” Tommy rosnava e, uma vez devolvido ao chão, podia urinar no assoalho enquanto dava voltas como se quisesse morder o rabo. Francesca arregalava os olhos e o enlaçava num abraço tão apertado que Félix tinha que sair de perto para não ter uma síncope. A melhor possibilidade à mão comportava riscos, mas poderia ser a mais efetiva. Iria arremessá-lo do alto do edifício, embora temesse que sendo leve, Tommy sobrevivesse ao impacto e, ainda por cima, fraturasse as patas. Ele já se via na Cobasi comprando regenerador articular e aquelas ridículas roupas pós-cirúrgicas que examinara quando de uma de suas visitas. As vantagens do arremesso do alto eram grandes, mas havia também o risco de as câmaras internas captarem o momento. No pain no gain, pensava.

Certo e comprovado era que Francesca mudara muito com relação a Félix. Especialmente depois que ele admitiu abertamente ter se arrependido de alugar o apartamento onde morava na alameda Franca. Tão cedo poderia reavê-lo e, se saísse dali, teria que ir atrás de um imóvel provisório. E todo esse drama por conta daquele animal esganiçado e piegas, chantagista e voluntarioso. O que fizera para merecer aquilo? Félix próprio começara a ingerir os comprimidos que trazia para dopar o animal e já se ressentia dos efeitos colaterais. Seria por isso que o relacionamento com Francesca estava esfriando a olhos vistos? Já sabia o que ia fazer. Ia assoberbar o cachorro de mimos nos próximos dias para descaracterizar qualquer hostilidade visível ou imaginária. Ele mesmo iria só à loja favorita da bicharada e voltaria com uma provisão de bolinhas, coleiras e aqueles odiosos ossinhos babados que se espalhavam pela casa. Isso feito, ele desencadearia um dos planos que vinha esboçando há tanto tempo – todos eles amparados pela segurança, mas eivados de uns tantos outros passíveis de desmascará-lo, de longe o que mais temia. Mas se visse o cachorro morto, chutá-lo-ia.

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Foi no último domingo de maio que o melhor momento afinal se anunciou. Isso porque embora Francesca estivesse fazendo questão de carregar consigo o pequeno maltês – que Félix descobrira afinal se tratar de uma variedade chamada bichon frisé – para todos os lugares onde poderia levá-lo, a presença dele na Parada Gay lhe parecera um disparate, mesmo porque todas as energias da mulher tinham que se concentrar na organização do protesto contra o estupro infame de que fora vítima uma menina do Rio de Janeiro. Se esse lado ativista da esposa lhe causava antipatia, pois sabia que ela era usada pelas oportunistas – estas mesmas que abusam de palavras idiotas como empoderamento, transversalidade e protagonismo, sinônimos candentes de picaretagem populista -, Félix fazia questão de se mostrar solidário da boca para fora. Sutilmente, um dia desarmaria esses maus hábitos, resquício de quem acumulara algumas lacunas de realização na vida, a começar pela maternidade. Portanto, com Inês de folga e Francesca na avenida Paulista, o palco estava armado para que Tommy visse a dona pela última vez quando esta, exageradamente maquiada, tomou o elevador. O cão ganiu, Félix exultou.

Mal o elevador desceu, Tommy correu para o quarto de Inês e lá ficou entocado sob a cama. Sentiu-se mais aliviado quando Félix desceu para nadar, mas voltou a tremer quando a voz grave dele ecoou pelo apartamento à sua procura: “Tommy. Vem cá que tenho uma coisa para te dar, seu filho da puta”. O cachorro resistiu até ao velho golpe de se apresentar sempre que alguém abria a gaveta onde ficava a coleira de passeio. Encolhido, sentiu afinal a vassoura lhe enlaçar os fundilhos e foi arrastado por um Félix sorridente de tão malvado, tão exultante quanto nervoso. Tommy tentou resistir; rosnou; mostrou os dentes miúdos a até latiu. Mas afinal, cedeu. Chegara a boa hora. O marido da patroa teve grande prazer ao senti-lo tremer quando, vencendo a repugnância que tinha em tocar no bicho, o alçou do chão com vigor e o colocou-o sobre o antebraço. Quando se desvencilhasse do cão, se desinfetaria para debelar a fedentina, os piolhos, os vermes e o que quer que tivesse um animal quase repulsivo. Sabia bem o que iria fazer, já que o tempo contava em seu favor. Iria abandoná-lo à própria sorte no parapeito da janela de serviço. Como era alta em ambos os lados para saltar, Tommy passaria por boa e merecida aflição.

Longa foi a agonia do cãozinho. Félix se permitiu um dia de rei. Depois de acomodar Tommy no alto da mureta, ainda viu quando ele se deitou nos dois palmos de largura e, fazendo malabarismo, colocou as duas patinhas dianteiras diante dos olhos, como se estivesse empenhado num grande esforço para não ceder ao pânico ou à vertigem. Se, contudo, nada acontecesse até o fim da tarde, quando Francesca estaria de volta, Félix daria um empurrãozinho no animal exangue. Enquanto isso, preparou um espaguete ao pesto; tomou uma garrafa de espumante e, antes de se deleitar com o delicioso sorvete caseiro de limão que só Francesca fazia tão bem, foi lá dar uma olhada no infeliz que, ofegante, continuava na mesma posição. Chegara a hora. Àquela altura, de pouco lhe importavam os álibis elaborados ou verossímeis. Diria que o cachorro sumira da sala e dali devia ter escalado o banco, a tábua de passar, a máquina de lavar até o passo definitivo. Mas às quatro da tarde, quando ele optou pelo rodo para empurrar um Tommy resistente no ar fresco da tarde – afinal, rodos não deixam vestígios no pelo -, Félix ouviu uma voz firme às suas costas: “Se trocar nele, eu te mato agora”.

Acompanhada de uma figura grotesca que ele não saberia dizer se era homem ou mulher, Francesca lhe apontava com furor um revólver. Então, a criatura avançou e foi salvar o animalzinho trêmulo. Do andar de cima, uma babá uniformizada balbuciou: “Graças a Deus”. Fizera bem em avisar o porteiro, o único dali que tinha o telefone de Francesca. Furioso e desmoralizado, Félix lhe pediu que baixasse a arma e lhe desse uma hora para acomodar seus pertences no carro. Naquela noite, e pelas seguintes, dormiria num flat próximo ao antigo endereço. Na porta de casa, enquanto lhe devolvia a chave, ainda disse: “Fique com seus amigos estranhos e seu cachorro de merda”. Francesca então abraçou Tommy e chorou. Passou o resto da noite recebendo visitas. Por sorte, conseguiu localizar um chaveiro de plantão no bairro. O pobre homem trabalhou até tarde para trocar as fechaduras das portas de acesso. Quanto à portaria, estava doravante instruída de que deveria chamar a polícia ao menor indício de aproximação do ex-companheiro. Tommy se recuperaria. Horas antes da meia-noite, porém, dezenas de buquês ressequidos já dormiam na lixeira.