Teresa Sales

Tourada na Espanha.

Tourada na Espanha.

27 de outubro de 2013

Em junho de 2009 eu perdi o São João em algum interior de Pernambuco, para atender a um convite de Flávio Carvalho, olindense radicado em Barcelona e um dos líderes das organizações de brasileiros na Europa. Fiz a palestra de abertura para pouco mais de cem participantes, brasileiros imigrantes, líderes comunitários de vários países da Europa. Fiquei contente com o convite para dar o meu recado de anos de pesquisa a um público não acadêmico, em sua luta por direitos. Pelos dados do Itamaraty, eram então 86 associações na Europa, 66 nos Estados Unidos, 70 no Japão.

Sabia da tradição de festa de rua no São João de Barcelona. Feriado no dia do Santo, como no Nordeste brasileiro. Em 1978 estava lá de férias com meu marido e naquela época foi uma grata surpresa para nós. Fogueiras nas casas mais afastadas da grande metrópole, não como as nossas, mas com móveis velhos. Músicas típicas espanholas tocadas por bandas em determinados espaços do centro da cidade e muita gente na rua dançando, tomando Cava (uma bebida tipo champagne, acondicionadas em grandes tonéis com gelo) e comendo a Coca de San Juan (uma espécie de torta coberta de frutas cristalizadas). Bebida e comida próprias para a data, como aqui as comidas de milho.

Naquele longínquo São João, dançamos até acabar a música, bebendo a tal cava na boca da garrafa, como os demais. Quando voltamos ao hotel já não encontramos taxi nem metrô. Fiz igual Sinhá Vitória de Vidas Secas: descalça e segurando a sandália de salto na mão.

A festa, o feriado, a animação eram iguais 31 anos depois. Mudara o local – não mais no centro da cidade e sim a área reconstituída do porto – e as músicas. Na Europa povoada de imigrantes, a diversidade musical era enorme. Pode ter sido uma percepção enviesada, mas aos meus ouvidos predominavam músicas brasileiras, sobretudo o Maracatu, o que não seria novidade. Os brasileiros têm espalhado nossa cultura mundo afora.

Chego finalmente ao tema da crônica enunciado no título. Fiquei hospedada entre a Sagrada Família de Gaudi e uma Casa de Touros, pela qual passava diariamente a caminho do metrô. Acabado o Encontro, fiquei mais um dia em Barcelona. Haveria uma tourada nesse sábado. Sempre quis assistir a uma tourada: por Seu Manolo, meu sogro, nascido no povoado de Gajate na Galícia; e pelos belos poemas de João Cabral de Melo Neto. Verão, com o sol se pondo pelas dez da noite, os preços variavam progressivamente entre áreas de sol, meio sol meio sombra, totalmente sombra. Apostei na hipótese do meio, contando com a sorte para que fosse mais sombra que sol. Acertei.

Fui sozinha e cheguei logo que abriram os portões para pegar bom lugar nas arquibancadas. Levei comigo uma caixa de Café Crème.

Quando Seu Manolo ia nos visitar em São Paulo, velho comerciante aposentado, ele gostava de me acompanhar nas compras de mercado e na feira. E me contava muitas histórias, algumas que nem seus filhos sabiam. Seus olhos brilhavam ao falar das touradas, que, nos períodos de férias na Espanha, ia com seu cunhado, Jesus. Seu Manolo não fumava, mas para as touradas, cada um levava dois charutos no bolso.

Fiquei razoavelmente próxima da banda de música, que tocava Paso Doble nos intervalos. E bem próxima de uma senhora que levara castanholas e por sua conta acompanhava a música. O espetáculo é lindo! O colorido das roupas dos toureiros, o bailado imortalizado por João Cabral! Poucas vezes na vida me entreguei tão completamente a uma apresentação como aquela.

Olhava também os homens mais velhos à minha volta, que eram maioria. Não sei precisar em qual momento, mas houve dois em que eles tiraram seus charutos do bolso. Acompanhei-os com minha cigarrilha.

A música levou-me por vezes às nossas bandas de música brasileiras, de ritmo e melodias tão ibéricos. Vi-me em Bezerros, na casa de tia Lilia, irmã de meu avô, todos na calçada da rua da Matriz vendo a banda passar. Banda é alegria. Mas naquele dia, a alegria de meu pai deve ter sido parecida com a minha em Barcelona, carregada de lembranças antigas. Ele tirara o lenço do bolso para enxugar as lágrimas.

Chorei em muitos momentos, com uma emoção que renasce agora enquanto escrevo e ouço o Paso Doble que comprei na saída. O filho de Seu Manolo compartilharia daquela emoção.