Luciano Oliveira

Os que pertencem à minha geração, aquela que se formou intelectual e politicamente nos anos 1960, conhecem a expressão e o charme de sua designação em alemão, de onde é originária: Bildungsroman. Como tudo ficou mais fácil com uma simples consulta à Wikipedia – que hoje em dia é o que, na minha juventude, chamávamos de “pai dos burros” (quando nos referíamos ao dicionário) –, dispensei-me da trabalheira de tentar entabular uma explicação e fui logo ao Google. E encontrei na Wikipedia a seguinte definição para o que, entre nós, ficou conhecido como romance de formação: “tipo de romance em que é exposto, de forma pormenorizada, o processo de desenvolvimento físico, moral, psicológico, estético, social ou político de um personagem”. Perfeito. Perfeito, aliás, para designar Um Defeito de Cor, romance de Ana Maria Gonçalves (Record, 2006), sobre o qual já teci loas anteriormente. Teci-as numa resenha a que dei o título grandiloquente de “Um Prêmio Nobel para Ana Maria Gonçalves”. Havia, impossível não reconhecer, um quê de galhofa, seja pela quixotesca pretensão (digna de um Policarpo Quaresma) de obter alguma repercussão junto à Academia Sueca, seja por tê-la escrito quando havia chegado apenas à página 384 de um livro que comporta 947! (Talvez Jorge Luis Borges, uma das minhas devoções, tivesse aprovado a brincadeira…)

 

Quando o concluí, minha filha, crítica empedernida dos meus exageros, desafiou-me: “E aí, mantém o entusiasmo?” Respondo-lhe agora: sim. Até mesmo pelo sim que compõe o simples, poderia acrescentar. Mas devo me explicar em relação a esse chiste, pelo qual sou o único responsável, porque o livro de Ana Maria em nenhum instante se entrega a esse tipo de brincadeira com a língua. Se posso simplificar, eu diria que ele integra a tradição do grande (no sentido físico e figurado do termo) romance realista que teve seu apogeu no século XIX, de que são exemplos, um tanto ao acaso, Ilusões Perdidas de Balzac, David Copperfield de Charles Dickens, Guerra e Paz de Tolstói – etc. Repetindo o que disse na resenha anterior, trata-se de narrativas longas, em cuja companhia passávamos dias e dias, e que no século XX (simplifico mais uma vez) foram relegadas à categoria pejorativa dos best-sellers – que em sua maioria, reconheço, merecem a fama negativa que têm. O livro de que ora trato tem algo daquelas grandes obras: é enorme, conta uma história com princípio, meio e fim (nessa ordem…), e não cede à tentação de pirotecnias linguísticas, como se tornou de regra depois da revolução joyceana.

 

O romance conta a longa saga de uma escrava africana chamada Kehinde, nascida em 1810, nas bordas atlânticas da África, para onde volta depois de muitas peripécias no Brasil, onde foi, seguidamente, pretinha de companhia na Casa-Grande, trabalhadora de eito, “escrava de ganho”, teúda e manteúda de um português, alforriada, conspiradora metida numa revolta de “muçurumins” (pretos muçulmanos) contra os brancos, fujona, quilombola… até tornar-se uma preta bem sucedida na venda de “cookies” ingleses (que aprendeu a fazer enquanto esteve “alugada” numa casa de súditos de Sua Majestade Britânica), nas ruas da Bahia. É muita história. Já na idade madura, Kehinde volta à África, onde se junta a um mulato de nacionalidade inglesa, em Lagos, e, ao seu lado, se torna uma próspera mulher de negócios. Bem mais tarde, viúva, velha e cega, falece com mais de 70 anos a bordo de um navio, tentando voltar à cidade da Bahia em busca de um filho que por aqui deixou e que nunca mais encontrou. Entre uma coisa e outra, mais de nove centenas de página interpelam o leitor.

 

“Fui feliz em Lagos”. É com essa frase, simples e cândida, que Kehinde começa a narrativa do seu segundo período “em África” – como sempre faz questão de escrever. “A viagem durou vinte e seis dias. […] desembarquei em Uidá […], no mesmo local de onde tinha partido trinta anos antes.” Mas a volta não se revela nada fácil. Se um leitor bem-intencionado espera que o retorno será a ocasião de um reencontro festivo e jubiloso com suas raízes, Kehinde vai logo decepcionando “não gostei nada do que vi”. Compreende-se. Escrava no Brasil, Kehinde sonha com a África dos seus ancestrais; mas, uma vez na África… digo, em África, tem saudades do Brasil. É o problema, humano e universal, de todo desenraizado. Como diria o deslocado Baudelaire, Je serai toujours bien lá où je ne suis pas. Aproveito a ocasião para destacar a humanidade de Kehinde. Não no sentido de um humanismo confortável que se compraz em criticar as iniquidades do mundo devidamente protegido de suas ambiguidades. Mas no sentido de que a personagem de Ana Maria é gente. Considero esse um dos pontos altos do livro. A autora do romance – a escritora Ana Maria, enfatizo – mantém do início ao fim um estilo dotado de uma inocência desarmante, às vezes de fazer cair o queixo. Nada, no livro, se presta a uma leitura cômoda. Kehinde, personagem de carne e osso, não se esconde atrás do multiculturalismo acadêmico que as pessoas simples não têm. Destaco dois trechos onde ela não esconde sua condição de brasileira desembarcada num mundo que já não é o seu: “Era estranho ver mulheres com o peito de fora, e senti um pouco de vergonha por estar olhando para elas, que também olhavam para mim quase com o mesmo espanto. […] Eu tinha vontade de ensinar a eles a maneira como vivíamos, como nos vestíamos, como cuidávamos das nossas casas, como comíamos usando talheres”.

 

A mesma candura estilística pesponta quando a narradora se reporta seja a eventos humilhantes da sua vida, seja a atitudes de que não se orgulha muito – como aquela (desarmante!) de ter-se tornado, próxima da velhice, mercadora de armas numa África em que a pólvora e os fusis tinham se tornado familiares às guerras intermináveis entre as tribos do seu próprio povo, das quais resultavam novas levas de escravos embarcados em navios negreiros para as Américas. Ela própria (quando tinha sete anos), sua irmã e sua avó, tinham passado por essa terrível provação – as duas últimas tendo morrido durante a dura travessia… Essas lembranças marcaram-lhe a consciência a ponto de recusar-se ao tráfico repugnante:  “Eu só não tinha coragem de comprar e vender gente, porque já tinha sentido na pele como era passar por tal situação.” Mas, se esse é um cabo que não tem coragem de travessar, nem por isso se recusa à navegação entre seus perigosos istmos: “Às vezes eu ficava um pouco constrangida por me relacionar com mercadores de escravos”, confessa. Mas, feito uma Scarlett O´Hara jurando que nunca mais voltaria a passar fome em … E o Vento Levou,  logo esquecia esse assunto tormentoso – “já que aquele não era problema meu”!

 

Mas terminei entrando pela perna do pinto e saindo pela perna do pato, e deixando de lado o mote com que comecei: aquele do romance de formação. Retomo-o nem que seja rapidamente. Talvez o leitor já tenha percebido o quanto sou chegado à grande narrativa de um Balzac e de um Tolstói, e muito pouco simpático ao minimalismo de, digamos, Dalton Trevisan – para usar um exemplo extremo. Idiossincrasias. Como tais, não são nem positivas nem negativas. Simplesmente são. Mas não é disso que gostaria de falar. Minha reflexão tem a ver com o que a leitura do livro de Ana Maria Gonçalves evocou no meu acervo de leitor: o Bildungsroman. Retomando a definição da Wikipedia, o “processo de desenvolvimento físico, moral, psicológico, estético, social ou político de um personagem”. É disso que quero falar. Para começo de assunto, esse tipo de romance, anterior à famosa revolução joyceana, não está preocupado com a genialidade da escrita. O livro de Ana Maria, por exemplo, não tem nenhuma trucagem literária. Não sou radicalmente contra elas. Costumo, a seu favor, dar como exemplo o nosso inimitável Guimarães Rosa, uma das minhas devoções literárias brasileiras. Grande Sertão: Veredas é ao mesmo tempo uma experiência estética impactante e uma história (ou estória, como ele preferia dizer) eletrizante, além de conter um processo de formação no sentido clássico do termo, o do jagunço Riobaldo. “Existe é homem humano”, diz ele no final ao seu extasiado interlocutor – nós!

 

Ora, mais importante do que estar ou não comprometido com essas filigranas modernistas, é o fato de o romance de formação estar comprometido com certa noção positiva de humanidade. Correndo de novo o risco da simplificação, ele tem como desiderato valorizar o progresso moral de um personagem na direção das Luzes, no sentido clássico do termo. Não por acaso, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, de Goethe (publicado em 1796), são considerados a origem desse novo gênero literário. O risco da pieguice, claro, é enorme. Sobretudo depois que o mais essencial da literatura moderna se erigiu contra as melhores promessas iluministas: Kafka, Céline, Sartre, Orwell, Beckett… quem mais? Todos nós, eu inclusive, aderimos ao cânone literário a que tanto nos apegamos na contramão das promessas iluministas. Pessoalmente, aliás, sinto-me inteiramente à vontade para escrever isso quando considero que os outros dois ícones da minha devoção literária no Brasil, Machado de Assis e Graciliano Ramos, não escreveram exatamente modelos de aperfeiçoamento moral. Brás Cubas das Memórias Póstumas e Paulo Honório de São Bernardo não são exatamente personagens a servir de inspiração a quem tenha um mínimo de piedade pela pobre humanidade.  Kehinde, tem.

 

Concluindo. Há muito tempo que não lia um livro como Um Defeito de Cor. Há muito tempo, portanto (leitor que sou de Rubem Fonseca, Patrícia Melo, Cristovão Tezza, Ronaldo Correia de Brito, Chico Buarque – etc. etc. etc.), que não lia um livro que me fizesse encarar com simpatia os seres humanos. Obrigado, Ana Maria!