Fernando Dourado

Pastor Alemão.

Quando cheguei à família, nos tornamos três. Eu, portanto, e mais dois veteranos. Confesso que me senti tão bem acolhido por aqueles pares de olhos brilhantes de adultos e crianças que nem me incomodei com o cão grandalhão, de passadas enormes, que durante os primeiros meses alcançava a bola antes que eu conseguisse sequer chegar perto. Quando começou a resfolegar, contudo, passei a roubar-lhe quase todos os arremessos e ele foi se desinteressando pela brincadeira. Meu segundo rival era um orelhudo, de tronco espichado, e muito preguiçoso para essas artes. Adorava dormir, não tinha ânimo para passear na areia ou no asfalto, e passava o tempo rendido à contemplação das meninas, como se em adoração aos pés de suas pequenas divas. Sempre com os olhos sonolentos e remelentos, Paulinha o chamava de Fedido, e não havia força canina que o levasse à piscina ou ao banho de mar. Só cedia quando nosso dono o obrigava, mas isso já não ocorria. Pois sequer eu que fui o companheiro preferencial de mergulhos por algum tempo, já não recebo mais aqueles empurrões bem-humorados para cair na água com ele. Na verdade, meu dono vem exalando um cheiro diferente e isso me preocupa. E este só piora quando chegam uns homens que se sentam longamente à mesa da varanda, falam baixo, quase não tocam na comida e dão-lhe tapinhas no ombro na hora da partida. Quando saem, eu sei que é perigoso me aproximar para brincar, mas fico por perto, caso ele precise de mim. No final dessas rodadas, ele só chuta a bolinha e nem espera a devolução.

 

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De um tempo para cá, somos só dois os agregados. Eu e o Fedido, com quem quase não mantenho contato. O grandalhão não veio para a temporada de verão e acho que não o veremos mais. Vou sentir falta da areia que ele esparramava na sala e não poderei mais me divertir com as bordoadas que levava de nossa dona. Mas para ele, um tipo desengonçado, importante era chamar a atenção, nem que por conta disso fosse castigado. Pelo menos, era essa minha impressão. Por mim, na verdade, ficaríamos na praia para sempre porque gosto de espaço para correr e fazer o que quero, sem obedecer a hora certa nem depender de ninguém para me aliviar. A vida em apartamento é limitada e não é fácil implorar a terceiros para nos acompanhar num reconhecimento pela vizinhança. O barulho por lá também é ensurdecedor e prefiro o som da água salgada onde até tempos atrás, meu dono caminhava comigo pela parte rasa e, no final, me pegava nos braços e íamos até os arrecifes. Ele sentia que meu coração disparava de medo, mas me afagava e dizia muxoxos. Pelo cheiro, eu percebia quando ele urinava na água. Tudo isso parece que foi há muito. Lembro também de festas na vizinhança em que ele me levava com a condição de ficar quietinho. Então, me afagava o pescoço e fazia carinhos viris na barriga. Cada vez que dizia Freddy, eu o olhava agradecido, e ele sorria de orgulho. Agora ele deita na rede e fico sem acesso a seu hálito. Cresci demais para subir e me aninhar ao lado, como antigamente. Sinto-o pensativo e não gosta que ninguém chegue perto nessas horas. Passei a fazer cara brava quando alguém se aproxima, mas logo ouço um quieto e baixo as orelhas. A última palavra será sempre dele.

 

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Até poucos meses atrás, eu sabia quando meu dono estava para chegar, depois de dias de ausência. Muito tempo antes de o carro entrar no Condomínio, ou de ouvirmos o motor do helicóptero, eu já desdenhava a comida e entrava em atividade febril. As empregadas sorriam. “Lá vem teu amigo”. Então, enterrava um osso, desenterrava outro, tirava a bolinha debaixo do sofá e corria até a rampa da garagem para ser o primeiro a recebê-lo e a ganhar um afago. A meu sinal, todo mundo na casa começava a se agitar porque a hora soara. Pena que normalmente ele se trancava para conversar com a patroa. Mas pelo menos no dia seguinte estava de pé cedo para o longo passeio que fazíamos pela orla. O que mais me dói é que muitas vezes eu sei que ele está por perto, dentro do Condomínio, mas não tenho permissão de ir a seu encontro porque se deteve na casa de um vizinho para comer e beber. Fico acabrunhado. Quando faz isso, chega com cheiro alterado e não me dá atenção. Além de trazer vestígios olfativos de outras convivências, às vezes de alguns rivais de pelo longo que reconheço de longe. Por que meu dono fica com eles antes de vir me ver? Para minha patroa, já sei, quase não existo. Só mesmo quando ela recebe visita de gente que cheira a perfume de flor. Então me chama e afeta uma intimidade que não existe. As meninas são mais doces, mas preferem fazer meu colega Fedido de bobo e me deixam em segundo plano. Ora, tenho a preferência do dono de tudo e todos, e isso já me basta. Estou pretendendo lhe fazer uma surpresa qualquer hora dessas e já sei por onde começar. Ele vai ficar muito agradecido.

 

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Não aguentando mais vê-lo naquele estado de nervos, resolvi lhe fazer um favor. Dois, na verdade, mas certo é que terminei me dando bastante mal. O primeiro foi simples. Logo que fui incorporado à família e já estava forte o bastante para desempenhar algumas tarefas, ele me ensinou a lhe trazer chinelos, jornal e o iPad, cuja tela o entretinha por bom tempo e o fazia até rir. Depois me dei conta de que aquele brinquedo o deixava apreensivo. Pois depois de lê-lo, começava a gritar, falando a um microfone que lhe pendia das orelhas e que não deixava que eu puxasse. Então fiz uma surpresa logo cedo. Antes que disparasse a ordem de buscar o iPad com um sorriso, como costumava fazer, eu levei o aparelho a um terreno ao lado e o escondi embaixo da terra, depois de cavar um buraco raso. Quando me perguntou de novo, dei muitas voltas e fiquei de pé, dançando, como só costumo fazer quando há visita ou vou ganhar uma maçã. Mas ele não gostou e foi discutir com as meninas. Pensei que fôssemos passear na sequência, mas não foi o que aconteceu. O pior foi na manhã seguinte. Alguém deixou os jornais na mesa da varanda logo cedo e estes tampouco lhe vinham fazendo bem. Abocanhei-os, piquei-os e o pouco que sobrou, o vento levou. Dessa vez, ele realmente foi injusto. Enrolou uma revista que ficara na mesa, e que também não lhe fazia bem, e me deu uma surra que me fez ganir, como se fosse o Fedido no dia em que Paulinha caiu de bicicleta sobre ele e lhe tiveram que engessar a pata. Sofri, foi humilhante. Quando ele veio me afagar à noite, urinei na sala de tanta emoção. Já era tarde, fora um mau dia.

 

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Fazia escuro ainda e eu estava na soleira da porta do casal. Sabia que lá dentro do quarto nem o patrão nem a patroa conseguiam dormir e conversavam em voz baixa, depois de exalar uma lufada intensa de cheiros conhecidos e próprios da cama deles. A certa altura, entrei em alerta. Ouvi barulhos lá fora e todo mudo em casa começou a despertar. Até o vigia da portaria do Condomínio chegou no meio de uma balburdia humana que foi invadindo a casa, mais parecendo que era dia de festa em plena madrugada. Lati, mas ali não vi nenhuma expressão amiga ou acolhedora. Como meu dono estava cercado de muita gente, levei a bolinha até uma moça fantasiada, mas ela só me fez um afago e continuou abrindo todas as gavetas que via pela frente. Procurava algo? Ao pegar minha coleira de passeio, esperei pelo melhor. Muitas daquelas palavras ditas em voz alta para mim eram familiares, mas não me deixavam chegar perto de meu dono. Uma expressão ficou me martelando e então achei que poderia sair da exclusão e também participar da brincadeira. Pois como todos falavam de iPad, corri a toda velocidade até o terreno e encontrei sem dificuldade o aparelho que tinha enterrado uns dias antes. Levei-o para a sala certo de que seria afagado, mas foram os visitantes que sorriram e me acarinharam o focinho. Pelo resto da manhã, fiquei triste porque percebi que havia algo de muito errado no ambiente. Até aquele cachorro comprido e preguiçoso veio se deitar a meu lado. Francamente, as coisas deviam estar mal para que eu aceitasse a companhia do Fedido. As meninas choravam baixinho e nós nos cansamos de latir. Meu dono só voltou à noite e todos comeram em silêncio em torno da enorme mesa. Ele só fez beber. Ninguém, sequer ele, se deu conta de minha existência.

 

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A vida não tardou a voltar ao normal. Tinha um elemento diferente no ar, é verdade, mas pelo menos meu dono estava mais disposto a fazer as atividades de que eu gostava. Acordava cedo, ainda no escuro, e íamos correr na praia, atividade que nunca foi o forte dele. Passou também a se exercitar nos pedais de uma bicicleta parada e levantar pesos. Só depois do exercício, com o sol alto, comia e ia dormir. Pelo menos já não havia mais tanto telefone tocando pelos cômodos da casa, mas aquela paz o fazia exalar um cheiro que não era o comum dele. A casa estava de pernas para o ar desde a festa em que ele saíra com os convidados para só voltar à noite. O atordoamento de todo mundo fez com que espalhassem rações de comida muito mais fartas do que acontecia antes e passei a me sentir pesado. O Fedido, então, se arrastava pelo chão. Os sons desapareceram pouco a pouco, mas meu prestígio foi restaurado, pelo menos em parte. Senti que tornei-me a companhia favorita, talvez única. Certa madrugada, saímos cedo e como a água estava quase chegando às casas no lado norte, resolvemos caminhar na outra direção. Meu dono nada falava, corria devagar, suava muito e de vez em quando olhava para trás. Até que estacou em dado momento, ignorando meus protestos para continuarmos. Parei de latir e o senti bem a meu lado, ajoelhado, a respiração se confundindo com a minha. Uma lágrima lhe descia do olho e a lambi. Depois outra e mais outra. Até que dois carros escuros vieram em nossa direção pela faixa de areia. Tinham luzes vermelhas ligadas no alto e emitiam um ronco que me fez medo. Era o mesmo pessoal da festa de outro dia. Lá dentro, estava minha patroa. O meu dono entrou e apontou para casa: “Volte correndo, Freddy. Vá cuidar das meninas”. Se falasse como ele, diria: o Fedido cuida delas. E eu, de você.

 

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Já faz tempo que nossa casa está fechada. O Fedido sumiu com as meninas e eu vivo hoje nas instalações do caseiro, quase ao lado da mansão principal. Já não tenho um papel muito ativo aqui e meu pelo preto e curto parece ter desbotado, e perdido a cor azulada de antigamente. Estou também mais quieto, pois desde a partida do patrão passei a me arriscar em brigas, muitas vezes com outros cães maiores do que eu, e deliberadamente maldosos. Bichos que sabem que não sou mais quem um dia fui. Levei a pior nos combates, e passei dias me lambendo para cicatrizar as feridas, mas algo aprendi. Sempre que ouço o barulho de um helicóptero ou um ronco de carro igual ao veículo de meu dono, corro em direção à entrada do condomínio na esperança de que seja ele que vá aparecer. Mas nunca é e os porteiros me afagam. Certo é que não voltei a ver a família à qual julgava pertencer. Outras pessoas chegaram para viver na casa e trouxeram dois cães enormes. Fui destituído de minha coleira vermelha e a impressão que tenho é que, se volto inteiro de meus passeios exploratórios pela vizinhança ou não, dá tudo rigorosamente na mesma coisa. É claro que  tenho alguma mágoa de meu dono por ele não ter me levado. Mal sabia o que eu ainda poderia ter feito por ele. Agora quase ninguém me chama pelo nome. Virei tudo, menos Freddy. Sou Negão, Delator ou Pelé Dedo Duro. Não gosto de peixe com pirão, mas me acostumei. Vivo, na verdade, em função do retorno dele que uma hora vai acontecer. Então voltaremos a caminhar até o fim da restinga como tento fazer sozinho, muito embora já não consiga ir longe. De preferência, sem carros com luzes vermelhas nem sirenes que o levem para longe desse local onde já fomos tão felizes.