Clemente Rosas

Pablo PICASSO at his studio. France. Paris. 7 rue des Grands by Herbert List 1948

Pablo PICASSO at his studio. France. Paris. 7 rue des Grands by Herbert List 1948

O título é apenas chamativo, não há nele pretensão ou jactância.  Ocorre simplesmente que um amigo de geração, convidado a dar seu depoimento para um livro sobre a condição de idoso, comum a nós dois, provocou-me a fazer o mesmo.  E reconheci que, ao completar setenta e três anos, o momento seria bem propício a uma reflexão sobre o tema.

Se me sinto velho?  Em muitos aspectos, não.  É verdade que já não corro,  e certos movimentos simples, como o sair do carro, em vagas de estacionamento apertadas, exigem um esforço de que não tenho memória do passado.  Se dirigir por mais de duas horas, tenho as pernas emperradas ao final da viagem.  Mas caminho, jogo vôlei e tênis de praia, e nado com alguma regularidade.  Aprecio sobretudo as longas jornadas em contacto com a natureza, como o Caminho Inca, feito oito anos atrás, ou as trilhas do Parque Nacional Torres Del Paine, na Patagônia Chilena, ano passado.

Às academias de musculação não me adaptei.  Todas, ao gosto da garotada, mantêm um fundo musical atordoante, que a mim irrita, quando o desejo é relaxar.  E tenho a convicção de que, para fazer flexões e ativar músculos, não são necessários equipamentos sofisticados.

A memória às vezes falha, ou tarda, mas não a ponto de comprometer o trabalho ou a atividade intelectual.  E tende-se a perder a exata dimensão do tempo: falamos de coisas que nos aconteceram há vinte, trinta anos, como se tivessem ocorrido recentemente.  Sentimo-nos como se continuássemos sendo sempre os mesmos.

Só o espelho, ou às vezes a reação estranha de um interlocutor, é que nos trazem de relance à realidade.  Como observou um artista sombrio, o barbear diário nos faz acompanhar o trabalho da morte, no lento avanço das rugas e dos cabelos brancos.

Essa revelação dos espelhos e dos circunstantes foi bem retratada, há cerca de um século, pelo poeta Marcello Gama, cuja feiúra começava no próprio nome de batismo  (Possidônio Machado), e que a formulou em belos versos alexandrinos:

“Sou feio se não mente o juízo dos espelhos

Nem é falsa a expressão do que olha para mim”

Pois é.  Contra o juízo dos espelhos nós, os velhos, só temos a opor o nosso próprio sentimento e algumas compensações: mais histórias para contar, o conforto das lembranças amenas, a sensação de que nada de dramático, insolúvel ou desconhecido pode mais nos surpreender.  Já vimos tudo.  E se a paisagem à frente se faz nebulosa, os caminhos percorridos mantêm-se banhados de luz.  Para contrapor à labilidade do presente e à incerteza do futuro, temos as coisas findas, “muito mais que lindas”, que permanecem – na nossa memória.

Quanto ao sexo, espero não surpreender os amigos e amigas ao afirmar que não me preocupa.  É claro que a capacidade orgástica juvenil já vai distante.  Mas considero o sexo uma servidão.  Muito prazerosa, é bem verdade, mas sempre uma servidão, pois exige uma parceira, para ser praticado de forma plenamente gratificante.  Portanto, quando me faltar, em futuro incerto e não perquirido, talvez me sinta até mais livre, para desfrutar de outros prazeres do corpo e do espírito.

Só há mesmo uma pena irremediável na velhice: a solidão crescente com a perda dos amigos, parentes, companheiros de geração.  Falando destes últimos, irmãos de pensamento e de sonhos, que se foram, os dedos das mãos já não são suficientes para contá-los.  E as novas amizades não os substituem plenamente.

Há quem veja nessas ausências uma prévia da solidão radical e definitiva da travessia na barca de Caronte, para a qual iríamos sendo preparados.  Mas para um racionalista convicto como eu, e otimista por princípio filosófico, a morte é apenas o último ato da vida.  A única maneira de bem viver é não lhe atribuir importância.  Quem não gosta de descansar, quando a jornada o fatiga?  E falamos aqui de um repouso perfeito, sono sem sonhos em que cessa o tempo, por não mais se ter a consciência dele.  A ideia de uma alma imortal me parece tão absurda quanto a de um corpo imortal.  E ainda mais: inquietadora.

Só a vida é importante.  E enquanto mantivermos a curiosidade em relação a ela e ao nosso mundo, viver será sempre agradável.  De minha parte, tenho todo o interesse em acompanhar o espetáculo pelo máximo de tempo.  Melhor ainda: tenho a pretensão – talvez ingênua, talvez romântica – de bem participar dele, contribuindo, mesmo em pequena escala, para que meus contemporâneos e descendentes vivam mais alegres e felizes.

Velho, sim!  E satisfeito!  Nada a reclamar.