Teresa Sales
agosto de 2014

O Inferno de Dante – Gustav Doré.

O Inferno de Dante – Gustav Doré.

Grandes livros são frequentemente narrativas de viagens. A volta de Odisseu a Ítaca em Homero, a viagem de Dante Alighieri ao mundo dos mortos. Escolhi Dante, uma lacuna na minha formação literária, para me acompanhar na mais recente viagem.

Principiei, conforme a recomendação de muitos, pelo Inferno. Quase perdi o sono, tal o fascínio que me tomou. Não fosse o compromisso do dia seguinte, talvez tivesse completado a viagem ao Inferno de Dante noite adentro.

O segundo verso do Canto I poderia ser a epígrafe de todos que desejam a aventura da escrita criativa:

“Ah! que a tarefa de narrar é dura

essa selva selvagem, rude e forte,

que volve o medo à mente que a figura.”

Estamos no Canto III, vestíbulo do Inferno, onde estão os ignavos. É intrigante a figura desses ignavos: não praticaram o mal, porém foram relapsos na escolha do bem. No linguajar de hoje, estariam em cima do muro:

“O céu exclui-os porque o aviltaria,

e o fundo inferno também os proscreve,

que tê-los certa gloria aos réus traria.”

Mesmo não sendo pecadores, Dante impinge-lhes pena compatível com sua condição, de quem passou ao largo da vida. Não pecaram, mas também não fizeram o bem.

“Esses, de quem foi sempre a vida ausente,

estavam nus, às picadas expostos

de uma nuvem de vespas renitente,”

Deixo os ignavos e vou para os luxuriosos do Canto V. Lá estão Samíramis, Cleópatra, Helena, Páris, Tristão. Pela luxúria estar de par com o amor, até a imagem do castigo, que para Dante sempre corresponde ao tamanho do pecado, tem aqui certa leveza, mesmo que não desprovido de sofrimento. Essas almas são carregadas pela ventania. Mas vão aos pares, os luxuriosos:

“Amor, que a amado algum amar perdoa,

tomou-me, pelo seu querer, tão forte,

que como vês ainda me agrilhoa.”

(Embora sabendo ser este um livro carregado do teor católico da época medieval, tenho cá pra mim que Dante aqui se traiu em simpatia pelo pecado da carne. Ouvindo o relato dos cunhados adúlteros Paolo e Francesca, do qual faz parte os versos acima, Dante se esvai de pena e dor “e caí como corpo morto cai”.).

É na entrada desse segundo círculo do Inferno que Dante e Virgílio (seu guia nessa viagem ao inferno) se deparam com a figura horrenda de Minós, o confessor das almas danadas.

Nessa parte do livro, fui transportada aos meus sete anos. Na casa de meus avós, uma tia nos preparava para a Primeira Comunhão com aulas de catecismo. Ficou-me por muitos anos a lembrança e o medo da figura impressionantemente colorida em tons de encarnado do diabo retratado no livro, que vezes me perseguia em sonhos.

Temi pelos meus sonhos nessa noite.

Contudo, o universo onírico, sabemos, não obedece ao nosso consciente. As imagens simbólicas de Dante me levaram para outra viagem, que nada tinha a ver com o diabo nem com medos, pecados e castigos. O inconsciente misturou a poesia de Dante com a revisão final de meu livro João Cabral & Josué de Castro conversam sobre o Recife.

Minha viagem foi às fotografias do Recife que ilustram o livro, levada pelo próprio Dante Alighieri. Com o mesmo encanto com que ele se refere a Virgílio:

“Depois, na sua tomando com meiguice

minha mão, com o que me confortei,

fez que no umbral secreto eu o seguisse.”

Na minha viagem, o umbral secreto se metamorfoseia em um lamaçal (seria a lama em que estão imersos os gulosos do terceiro círculo?) que dificulta a travessia da ponte da Boa Vista do lado da rua Nova para o lado da Rua da Imperatriz. Somos um grupo grande conduzido por Dante, que no meu sonho semelha Marcelo Mastroianni. O objetivo é chegar ao Cais da Aurora, onde nos esperam barcos.

Com alguma dificuldade, conseguimos passar pelo lamaçal e chegar ao outro lado da bela ponte de ferro, com os sapatos imundos. Não se vê carros nem bondes nas ruas. Um barqueiro negro e forte nos convida para a travessia, mas o próprio Dante decide que ainda temos um percurso a pé. Seguimos então pela Rua da Aurora até a Ponte Duarte Coelho. O grupo já não é o mesmo e algumas pessoas, tal como os pecadores luxuriosos do Canto V, vão sendo levadas por um vento forte.

Da ponte, atravessamos a Avenida Guararapes em direção à Praça da Independência, onde já de longe vislumbramos um imenso tablado, como se fosse para apresentação de alguma peça de teatro ou espetáculo musical. Ao chegar perto, não é nada disso. É uma exposição de livros usados para serem retirados por qualquer um. Eu descubro, pela cor rosa da capa, um exemplar de meu livro Agreste Agrestes e, ávida, vou buscá-lo pensando que hoje dele só tenho dois exemplares. Vejo que está oferecido a alguém, mas não identifico a pessoa a quem ofereci. E lembro na hora: “ainda bem que já retirei as dedicatórias dos livros que vou doar a bibliotecas”.

Como nos sonhos, já nem sei mais de Dante ou do grupo que o seguia. Estou agora de mãos dadas com Hamilton (que dos mortos o sonho traz de volta) e resolvemos seguir para o Recife Antigo. Continuam as imagens antigas do Recife. Hamilton sugere que a gente atravesse da Ilha de Antônio Vaz para a Ilha do Recife de barco (semelhando a cena em que Dante e Virgilio chegam às margens do rio Aqueronte, onde Caronte transporta num barco a remo os pecadores para a outra margem, rumo às suas penas). Mas ao final decidimos pela Ponte Maurício de Nassau. Novas surpresas. Em mais de um lugar as pessoas estão reunidas na rua para discutir assuntos da cidade, qual na democracia grega. Chegamos à Praça Rio Branco, com a estátua no primitivo lugar onde ficava e que é hoje o Marco Zero. O clima é de agitação, como se estivesse para acontecer alguma mudança séria nos rumos da cidade.

Acordo e demoro um tempo para sair do clima do Recife. Estou em São Paulo, minha segunda cidade por opção, onde construí minha família e minha profissão. E acordo grata a Dante Alighieri por ter me trazido o Hamilton nesse passeio pelo Recife de antigamente.