José Arlindo Soares*

Daniel Cohn-Bendit , líder estudantil de 1968, na França.

As mobilizações planetárias ocorridas no ano de 1968 ainda suscitam indagações sobre as motivações mais profundas que empolgaram os jovens de países que atravessavam conjunturas econômicas e políticas bem diferentes. Como uma corrente, o mundo assistiu a explosões de descontentamento e de desejo de mudanças que se espalharam, de repente, sem nenhum centro de coordenação e sem contar com a velocidade atual das várias mídias.  Mesmo que parecesse um ciclo de radicalização política com base em um ideário socialista radical, o que ocorria, de verdade, era uma sinergia mais ampla, muito além das ideologias, ou seja, estava-se diante de uma verdadeira ruptura geracional que levava a uma quebra de todos os valores estabelecidos. É como se a geração do Pós-Guerra desse um alerta de que não se contentaria com a naturalização das contradições socioculturais, nem mesmo com as mudanças graduais que vinham acontecendo no mundo após o final do segundo grande conflito mundial.

Para os protagonistas dos movimentos, um outro modelo alicerçado em grandes mudanças deveria abranger tanto o ideário acordado pelo capitalismo como pelo socialismo. O poeta tcheco (depois presidente de seu país) Vaclav Havel (Observateur critique d’une révolution, Hors-Série, Le Monde 2, mars – avril, 2008) afirmou para o Le Monde que a sociedade estava fascinada por um símbolo da modernidade que vinha sendo historicamente reprimida. Ainda segundo o teórico da Primavera de Praga, na “Tchecoslováquia o movimento detestava as ideologias, o que estava sendo questionado era o totalitarismo do chamado socialismo real”. Para Havel, o movimento de estudantes da Primavera de Praga não acreditava na chamada crise revolucionária, muito menos nas teses sobre a revolução. Os estudantes não utilizavam a palavra socialismo, isso não significava nada, não tinha conteúdo. Esta jovem geração se recusava a carregar bandeiras, ela detestava as construções ideológicas.

O sociólogo Edgar Morin, considerado o interprete mais representativo de 1968, começa uma entrevista em 2008 sobre os legados de 1968 afirmando “tudo continua como antes, mas nada é parecido com antes” (Magasin Littéraire, avril – mai, 2008). Segundo o autor, passou a existir uma outra maneira de ver a si mesmo, de olhar a vida e a sociedade. Tomando como referência a França: é como se a  alma do movimento fosse uma simbiose entre o “Marxo-libertaire” – traduzido na espontaneidade do grupo 22 de março, no qual se misturava de maneira bem confusa, mas se assemelhava muito – e a memória do socialismo utópico do anarquismo, dos  trotskistas, tudo para completar a surpresa das forças da ordem e do Partido Comunista.  No entanto, para a grande massa mobilizada que escrevia nos muros de Paris “é proibido proibir”, o importante mesmo era “reinventar a vida”, enquanto o Partido Comunista corria em desespero para repor as coisas no lugar, muito embora o secretário geral do PCF, um conhecido stalinista, anunciou que estava prestes a formar um governo provisório de gestão, proposta que tinha a desconfiança da juventude rebelada.

Nas ocupações, em um primeiro momento, as grandes centrais sindicais perplexas conseguiram retomar o controle e obtiveram do governo um acordo de melhorias das relações de trabalho, que tirou o movimento do comando da nova vanguarda operária, que tinha simpatia com a revolta estudantil. Isso fez Daniel Cohn-Bendit afirmar: “Nós queríamos mudar o mundo, mas os operários queriam apenas melhorar suas condições de vida” (Magasin Littéraire, n.13, avril – mai, 2008).

A interpretação do choque geracional que levou às rupturas culturais e às reivindicações societárias é, atualmente, predominante, embora algumas poucas análises ainda falem de um movimento político motivado por convicções revolucionárias. Na época, talvez, esse segundo enfoque tenha subido à cabeça de uma pequena vanguarda, a qual, de costas para a sociedade. igualou a democracia parlamentar com o fascismo e desencadeou um processo violento de ataques armados contra pessoas e instituições na Itália e Alemanha, isso com as instituições democráticas em pleno funcionamento. Também no Brasil, parte da vanguarda confundiu a aspiração da maioria dos estudantes, de liberdade, de lutas por diretos, ou o desejo de se livrar dos preconceitos patriarcais, com um projeto de revolução anti-imperialista, ou pelo socialismo. Com o aguçamento da repressão pela edição do AI- 5 e do Decreto 477, a grande maioria estudantil indicou que a luta pela liberdade e contra a ditadura não significava a renúncia a seguir a sua trajetória de vida, profissional e familiar

A quem acompanhou o despertar das mobilizações no período mencionado, deu para perceber que o novo fenômeno da contestação já despontava em 1965/1966, quando o governo militar começava a decepcionar as classes médias rural e urbana, que foram, em parte, sua base de apoio social na deflagração do Golpe Militar. Em um capítulo que escrevi para o livro “O Sonho é Realidade” de autoria de Galba Gomes (2016), contemporâneo da militância estudantil em Fortaleza, mostrei que existia o sentimento de mudança que corria na geração estudantil pós-1964, que se mostrava ansiosa para superar o tradicional mandonismo do poder tradicional e se tornar protagonista de um novo tempo. O ex-líder estudantil Wladimir Palmeira em uma entrevista para o livro “Eles só queriam mudar o mundo”, de Regina Zapata e Ernesto Soto, destaca também essa expectativa de ruptura cultural, mesmo no ambiente mais cosmopolita do Rio de Janeiro. Para ele, primeiro ocorreu uma revolução nos costumes, para depois chegar à política. A marcha da História criou outros conceitos, que passaram pela crítica radical a tudo o que existia. A crítica do passado preencheu toda a razão de ser da nova geração. Se o próprio socialismo ficou ultrapassado, tudo desabou e nada se sustentava (ZAPATA; SOUTO, 2008).

Em entrevista recente para o jornal Estado de São Paulo (13/05/2018) um dos ícones de 68, Daniel Cohn-Bendit, no momento em que a revolta completa 50 anos, demonstra que o que possibilitou as grandes manifestações simultâneas em vários países, vivendo diferentes conjunturas, foi a busca de novos valores culturais. Afirma o ex-deputado do Parlamento Europeu que,  até o  momento dos protestos contra a guerra do Vietnam, nas manifestações da Primavera de Praga e no Maio de 68, os estudantes viviam sujeitos a valores patriarcais. Então, para eles, lutar por valores e liberdades individuais era mais importante do que a revolução política. Nessa direção, completa: “Foi uma revolução cultural bem sucedida e uma revolução política fracassada”. Na verdade, fracassada se olhada do ponto vista clássico da tomada do poder, na ótica das esquerdas, o que, segundo Dany, o vermelho, felizmente não aconteceu. Na sequência da História, no entanto, foi seguida de mudanças políticas significativas, com a incorporação de diretos e a modernização das instituições educacionais e fabris.  No plano cultural, então, a sociedade se apropriou das mudanças radicais e de novas aspirações, sem esperar pelo Estado. Talvez seja por essa combinação de mudanças universais, graduais ou radicais, que se explica  porque os acontecimentos de 1968 ainda são tão lembrados e discutidos, em que pese a humanidade passar hoje por um processo bem diferente das ideias libertárias de 1968.

 

*Sociólogo, pesquisador do Centro Josué de Castro, membro do Grupo Ética e Democracia