Nos últimos duzentos anos, o pensamento político esteve dividido em duas grandes correntes antagônicas que, com diferentes nuances, comandaram o mundo e induziram diversos experimentos políticos e sociais com alguns sucessos e dramáticos fracassos: o socialismo e o liberalismo. De forma simplificada, é possível dizer que estas correntes se diferenciavam em dois aspectos dicotômicos: direitos individuais versus direitos sociais; e mercado versus estado. Enquanto o liberalismo combinava os direitos e liberdades civís com o livre funcionamento do mercado, o socialismo defendia a atuação dominante do estado (no controle ou anulação do mercado) e os interesses coletivos (acima dos direitos individuais). No fundamental, a diferença entre liberalismo e socialismo se manifestaria também na ênfase dada à liberdade ou à igualdade, à escolha entre a competitividade econômica e a equidade social.
Parecia existir um incontornável trade off entre as duas grandes correntes de pensamento, seus princípios e seus objetivos, que obrigava a uma escolha entre liberdade e equidade ou entre mercado e Estado. O liberalismo partiria do princípio que, assegurada a liberdade dos cidadãos, caberia a cada um deles construir sua posição na sociedade. Desconsiderava que as próprias relações sociais desiguais, herdadas da riqueza e propriedade acumuladas, perpetuariam desigualdades nos próprios espaços de liberdade. A desigualdade se manifestando também na própria liberdade individual, sendo alguns mais livres que outros. No outro extremo, o socialismo poderia tolerar e aceitar restrições às liberdades e aos direitos individuais, para dizer o mínimo, desde que considerasse necessárias para promover a prometida igualdade social. Sacrificaria, assim, o direito igualitário à liberdade em nome da igualdade social que deveria ser construída de fora das relações sociais dominantes e para além das desigualdades da propriedade.
Do confronto político e ideológico dos dois polos antagónicos, construiu-se, ao longo da história, uma síntese que, além de negar a dicotomia, é melhor que cada um dos polos (tese e antítese): a social-democracia. Da combinação, resultou um sistema que, combinando elementos dos dois, não é mais nem socialismo nem liberalismo. A social-democracia se equilibra e combina os objetivos do socialismo e os valores e princípios do liberalismo, incorporando aspectos relevantes de cada um dos modelos e organizando doses significativas de liberdade e de igualdade, de mercado e de Estado, de competitividade e de equidade. Desde o pós-guerra, este tem sido o experimento social e político mais avançando, combinando a democracia política com um Estado provedor e regulador. Com diferentes combinações e ênfases, a social-democracia associou o liberalismo político – com a implantação e o fortalecimento das instituições democráticas e dos direitos civís – à atuação do Estado no provimento dos serviços públicos de qualidade de forma equitativa na sociedade e na regulação do funcionamento do mercado, orientando para a eficiência e a produtividade econômica.
Como toda construção social, a social-democracia é um sistema dinâmico e historicamente determinado e, portanto, em permanente mudança que decorre das suas próprias contradições internas – tensões entre liberdade e igualdade – e de transformações globais que impactam sobre a sua organização econômica, social e política. Ao longo das décadas, a social-democracia enfrentou dificuldades, conflitos e instabilidades que geraram mudanças e reacomodações, sem, contudo, comprometer os alicerces do Estado provedor e regulador e das liberdades e direitos civís. Mas é precisamente a complexidade do sistema econômico-social com instituições e cultura democráticas que conferem à social-democracia uma enorme capacidade de adaptação e renovação diante das contradições e conflitos internos e pressões externas. Ao contrário dos regimes fechados e inflexíveis, a social-democracia tem caracteristicas de adaptabilidade que permitem mudar e se reconstruir, capaccidade de mudança e renovação. Não apenas sobrevive nas adversidades, pode crescer mudando e se recriando com os desafios e as dificuldades.
O fantasma que assombra a social-democracia da Europa no momento é uma onda neopopulista – xenófoba, nacionalista e anti-européia – que cresce em vários países do continente, explorando a insegurança da população com o desemprego dos jovens, a pressão migratória e o terrorismo. O populismo isolacionista do governo Trump tende a animar estas retrógradas correntes politicas européias. Mas o descontentamento e a crítica generalizadas às suas medidas estapufúrdias e irresponsáveis pode ter o efeito inverso: alertar os europeus para os riscos e ameaças das aventuras neopopulistas. De qualquer forma, pelo que reflete de inquietação e insatisfação na sociedade, este fantasma deve provocar mudanças na social-democracia europeia. Difícil imaginar, contudo, que os europeus abandonem os fundamentos do mais bem sucedido modelo de sociedade contemporâno que combina valores do liberalismo – democracia, liberdade e direitos civis – com a presença ativa do Estado como provedor de bens e serviços públicos que promove a igualdade de oportunidades.
Querido, obrigada pela clareza de texto e de pensamento! beijo
A Social- Democracia começou a ficar aturdida na final dos anos 70 quando o Estado de bem estar social começou a ter problemas para se financiar. Como disse Perre Rasavalon em seu pequeno livro,que considero clássico ” A Crise do Estado Providencia”(1981). O Estado Providência está doente- e o diagnóstico é simples– as despesas sanitárias e sociais cresceram muito mais rapidamente do que as receitas.Com tal impasse os governos sociais/democratas entraram em pânico e muitos não conseguiram mais se diferenciar de direita e da histeria do chamado neoliberalsimo, ficando sem apesentar uma proposta alternativa . A perspectiva da terceira via de Blair acabou se envolvendo na aventura guerreira dos Estados Unidos e também se desmoralizou . Em pouco tempo, no entanto, tanto as correntes liberais com as tradicionais sociais- democratas viram que teriam que promover mudanças sem se desfazerem dos fundamentos obtidos pelo Estado de Bem- Estar. O dilema não foi ainda resolvido porque a crise arrastou uma boa parte do eleitorado da esquerda social democrata para o Nacionalismo Xenófabo que, por incrível que pareça, fez os partidos liberais (ou neo liberais) irem para o centro. A Alemanha precisou de uma aliança histórica entre o os dois partidos mais tradicionais – Sociais Democratas e Democracia Cristã para garantir uma estabilidade politica e social que mantenha as conquistas históricas da democracia no País. A França, que tem uma esquerda menos estruturada do que a da Alemanha, seguramente, terá que, também, estabelecer uma aliança com a direita liberal para não ser tragada pelo nacionalismo populista da extrema direita.
Arlindo
A social-democracia já ficou “aturdida” várias vezes mas tem se renovado. Você mesmo lembra a crise do Estado providência dos anos 70, lá se vão quase 50 anos, e a social-democracia continua o mais bem sucedido experimento social. Acho que este “aturdimento” é o que leva à mudança e a renovação. Quando falo em modelo social-democrata não estou me limitando aos partidos que, evetualmente, dirigem os países. A aliança da social-democracia alemã com a democracia cristã (já tinha tido um ensaio com Willy Brandt) não alterou a essência dos fundamentos social-democratas. Vou mais longe (digo isso num artigo mais longo publicado na revista Política Democrática), a avalanche liberal de Margareth Tatcher na Grã-bretanha gerou um ajuste de rota no Estado obeso e na economia atrasada do país que decorria do excesso de Estado e de regulação. O confronto das forças sociais permitiu que fossem mantidas as bases da social-democracia ao mesmo tempo em que aprimorava a competitividade da economia e a estabilidade fiscal do país. A social-democracia está “aturdida” de novo agora mas o problema é bem diferente e mais complicado: se trata, na verdade, da ameaça de uma onda neo-populista. E com esta não dá para construir uma síntese porque, aí sim, existe um antagonismo profundo.
A sua análise teórica, ao descrever as características essenciais de dois extremos de um espectro político, ajuda a entender a política nos países em que algo que pode ser nomeado de “social democracia” chegou a existir. No mundo real, não vejo que tenham existido de fato (nem como governos, nem como programas de partido) esses extremos puros, nem o liberal, nem o socialdemocrata, com todas as características que você examina. Entendo que você construiu esses extremos para efeito didático. Do ângulo que eu enxergo o mundo, o da economia, acho que o modelo liberal tem sofrido ataques indevidos, pois não é verdade (pelo menos não é verdade hoje) que propõe o livre funcionamento dos mercados sem intervenção do Estado. Vejo muito mais que as divergências existem quanto aos tipos de intervenção estatal, e não entre funcionamento da economia com estado ou sem estado. Os defensores mais entusiastas da socialdemocracia (identificada com o estado do bem-estar) em geral esquecem que um dia chega um limite de arrecadação de impostos para a expansão do estado do bem-estar. Aliás, como se viu nitidamente na Suécia, por exemplo, onde esse limite um dia chegou. Alguns chamam The Economist de “a bíblia liberal”. Desde o dia em que pela primeira vez pisei na Inglaterra, até hoje, nunca mais deixei de ler The Economist: tem muita defesa de intervenção do Estado na economia nessa bíblia liberal, e com frequência essa defesa de intervenção estatal não se distingue daquela feita por um socialdemocrata.
Helga
No meu entendimento, no mundo real tem havido uma permanente disputa ideológica entre o liberalismo econômico e o socialismo que, na verdade, delimita o papel do Estado e os seus limites e espaços de atuação. Claro que os dois modelos constituem arquétipos. O que eu tentei mostrar foi a construção de uma síntese que concilia os modelos, aproveitando o melhor de cada um deles, que tem se provado viável. Ou seja, não se trata de uma escolha entre liberalismo e socialismo mas da síntese que combina mercado e Estado, liberdade e igualdade. Concordando com você, acho mesmo que o discurso liberal tem ajudado a moderar os excessos da intervenção do Estado nos países da social-democracia que tende a um Estado obeso com excesso de regulação, lembrando o “limite de arrecadação de impostos para expansão do estado de bem-estar” que você fala. Aprofundei este enfoque em artigo publicado na revista Politica Democrátia comentando algumas reformas duras do Estado realizados na Grã-bretanha de Margareth Tatcher (também na Nova Zelândia) que, não obstante, não comprometeram as bases da social-democracia. Sérgio
Oi, Sérgio, lendo seu artigo lembrei, com um sorrisinho de auto-indulgência, do tempo em que gente como nós torcia o nariz para a social-democracia…
Ainda lembro de um velho comuna aracajuano dizendo que era o regime perfeito para o capitalismo, pois contava com a aceitação da exploração por parte do proletariado…
Ai, ai!
A gente era feliz e não sabia…
Bom domingo!
Luciano
Mas isso foi há bem mais que meio século…
Caro Luciano
Na verdade, quando nos conhecemos no mestrado do PIMES (conhece-lo foi um dos melhores ganhos deste mestrado), eu já não torcia o nariz para a social-democracia. Desde muito cedo (ainda no movimento estudantil) eu já tinha uma visão muito crítica do chamado “socialismo real”, depois nos anos que vivi na Alemanha social-democrata conheci os enormes ganhos sociais numa economia de mercado com amplos direitos civis e tive a oportunidade de ler alguns autores do leste que falavam numa “terceira via” (bem antes de Tony Blair e diferente deste), que defendia uma interação positiva e necessária entre Estado e mercado (o que já funcionava muito bem na Alemanha ocidental) e as análises arrasadoras do “socialismo real”, especialmente a obra de Rudolf Bahro sobre a Alemanha Oriental. O que vejo hoje são partidos e militantes falando em socialismo e até comunismo mas, quando muito, fazendo politica de pequenos ajustes no capitalismo e ainda sonhando com um Estado empresário, ineficiente, inviável. Ou, o que tem sido mais comum, uma esquerda concentrada na luta por direitos civis tipicas do liberalismo que tanto detestam. Escrevi este texto pensando provocar uma reflexão que levasse uma explicitação sem rodeios e falsas ideias do que se quer realmente para a sociedade brasileira no médio e longo prazos. Eu gostaria que o Brasil pudesse avançar na direção da social-democracia com crescente igualdade social e garantia de direitos civis, o que significa uma economia competitiva com mercado e um Estado provedor de serviços públicos. Pensando no longo prazo, não me preocupo com igualdade de renda porque o fundamental é a igualdade no acesso a bens e serviços públicos que cabe ao Estado prover que, no fim das contas leva à redução das desigualdades de renda. Sergio
Análise muito bem feita. Parabéns Sérgio!