Frederico Toscano

A mezzo-soprano francesa Clémentine Margaine em produção recente de Carmen no Metropolitan Opera de Nova York.

Ao morrer em 2 de junho de 1875, aos 36 anos, o compositor francês Georges Bizet (1838-1875) não tinha sobrevivido o bastante para saber que sua ópera Carmen tornar-se-ia uma das mais queridas obras musicais jamais escritas e a mais amada de todo o repertório francês. Hoje, Carmen está sempre no segundo ou terceiro lugar – quando não no primeiro – nas listas das preferidas das plateias e dos críticos. Era a ópera favorita da rainha Vitória do Reino Unido, de Otto von Bismarck e de James Joyce; foi incluída em romances por Thomas Mann e até pelo desafinado – e totalmente destituído de ouvido musical – Vladimir Nobokov; sua história foi recontada um sem-número de vezes em filmes. Friedrich Nietzsche, um apaixonado discípulo de Wagner que se voltou contra seu ídolo depois da década de 1870, terminou sua vida louvando Carmen:

“Ontem ouvi – você não vai acreditar – a obra-prima de Bizet, pela vigésima vez […]. Essa música me parece ser perfeita. Ela se aproxima com leveza, maleável e polidamente. É agradável, não transpira. ‘O que é bom é leve, tudo que é divino move-se com pés gentis’: o princípio número um de minha estética. A música é funesta, sutilmente fatalista: ao mesmo tempo ela continua popular – sua sutileza pertence à raça, não ao indivíduo. É rica. É precisa. Ela constrói, organiza, termina: assim, ela se constitui no oposto ao pólipo na música, a ‘melodia infinita’. Alguma vez ouviram num palco acentos mais dolorosos, mais trágicos? E como se os consegue? Sem trejeitos. Sem contrafação. Sem a mentira do grande estilo!” [KAUFMAN, Walter. Basic Writtings of Nietzsche. Nova York: 1968]

Bizet tinha a certeza de estar fazendo algo de inteiramente novo: “Os críticos afirmam que sou obscuro, complicado e tedioso, mais preocupado com a habilidade técnica do que iluminado pela inspiração. Pois bem, desta vez escrevi uma obra que é toda feita de clareza e vivacidade, que está cheia de cor e melodia”, afirmou ele. Essa confiança em sua criação, porém, não impediu Carmen de ser um fracasso ao estrear, em 3 de março de 1875, no Théâtre de l’Opéra Comique, em Paris, o que o abateu fortemente. O que teria causado tal fiasco?

Carmen é uma personagem absolutamente inédita, em termos de universo operístico, e vai influenciar muito todo o teatro lírico realista do futuro. Nada tem em comum com a heroína tradicional, pura, sofredora, um joguete nas mãos dos homens e do destino. É amoral, complexa, combina em si traços tanto de heroína quanto de vilã, mas de uma forma que a coloca acima dos julgamentos da moral corrente. Junto com Don Giovanni, Violetta Valéry, Manon Lescaut, Salomé, Lulu, faz parte daquela galeria de personagens que não se sentem culpadas por terem um comportamento que os padrões morais vigentes consideram “irregular”. Sim, isso era demais para o público de 1875… A cigana é uma fascinante mistura de sensualidade, alegria de viver, destemor, fatalismo, mas também de uma grande capacidade de ternura. Alguns autores consideram Carmen como a primeira ópera feminista da história por seu caráter transgressor em um mundo governado por homens. Não é à toa, assim, que a obra foi alvo de severas críticas em sua estreia.

A ópera se passa em Sevilha, Espanha, no início do séc. XIX. Na praça cheia de soldados, uma camponesa procura em vão o cabo Don José. Ele chega depois, adivinhando que a jovem é Micaela. Enquanto isso, o capitão Zuniga, recém-chegado à cidade, fica sabendo que centenas de mulheres trabalham na fábrica de cigarros. Ao toque de um sino, elas saem com muito barulho, enquanto Carmen canta o amor livre:

Ela atira uma flor para Don José. Sua mãe diz que é hora de casar e sugere que tome Micaela como noiva. De repente, irrompe uma briga na fábrica, e Carmen é acusada. Zuniga ordena que ela tenha as mãos atadas, e ela flerta com Don José, propondo um encontro e convencendo-o a soltar-lhe as amarras. Ao ser conduzida para fora dali, ela foge. Dois meses depois, Carmen entretém oficiais numa taberna e descobre que Don José cumpriu pena de prisão por tê-la libertado. Chega Escamillo, o toureiro, enaltecendo seus feitos:

Escamillo tenta conquistar Carmen, mas ela o rechaça. Quando o local esvazia, contrabandistas buscam ajuda para enganar os guardas na fronteira. Carmen se recusa, dizendo-se apaixonada. Chega Don José, e ela dança para ele. Mas ele ouve cornetas convocando-o ao quartel, e ela zomba dele. Para provar seu amor, ele mostra a flor que ela lhe atirou. Zuniga vem cortejar Carmen e é desarmado. Don José se dá conta de que deve fugir.

No esconderijo dos contrabandistas, Carmen já perde o interesse por Don José. Ele fica montando guarda. Aparece Escamillo, em busca de Carmen. Don José o desafia. O toureiro de início se sai melhor, mas tomba. Carmen salva sua vida, e ele a convida para sua próxima tourada. Don José fica furioso, mas, informado por Micaela de que sua mãe está morrendo, parte, jurando voltar a encontrar Carmen. Em frente à praça de touros, crianças saúdam Escamillo, acompanhado por Carmen:

Carmen é advertida pelas amigas de que Don José também está presente. Ao encontrá-la, Don José implora que volte para ele, insistindo que a ama. Ela o rejeita, declarando que nasceu livre. Ele a apunhala. Ao surgir o triunfante Escamillo, Don José confessa em prantos ter matado sua amada Carmen, quando fecham as cortinas e a ópera termina:

O que faz Carmen ser tão brilhante, adaptável, tão versátil? Tem como vantagem uma história não afetada na qual a anti-heroína é tão corajosa quanto despreocupada quanto a papéis sociais convencionais. Nesse sentido, e em termos de sua tremenda energia musical, a personagem Carmen é uma versão feminina do Don Giovanni de Mozart. O enredo divide o mundo, como diz a própria Carmen, nos lobos e os outros. Mas os dóceis e domésticos tipos – em especial Micaela, que tem duas aparições como a mensageira do lar e é um ponto de estabilidade no mundo em desmoronamento de Don José – não são menos simpáticos do que os personagens lobos, Carmen e Escamillo.

O grande talento de Bizet foi imaginar a música para cada elemento do enredo com igual seriedade: os personagens triviais, ornamentais, o trágico soldado proletário, os contrabandistas a cantar em estrita harmonia, o exibicionista fanfarrão, os papeis de apoio genéricos; ele dá minuciosa atenção a todos e a cada um deles. Como era usual por volta da década de 1870, toda ópera que tinha temas musicais recorrentes – em Carmen há alguns – era tida como wagneriana. Mas em termos de formato não há nada de radical. É uma obra criada a partir de um tecido convencional, com árias bem-comportadas, duetos e conjuntos devidamente separados por trechos de diálogo falados (o que a classifica formalmente como opéra comique).

O que é incomum é que uma proporção muito grande da música é realística, no sentido de ser um canto real dentro do mundo encenado. A ópera está cheia de canções, danças, fanfarras militares, coros ao ar livre e desfiles. A preponderância de tais ocasiões permitiu a Bizet fazer experimentos com sons exóticos, e como a história se passa na Espanha, entre ciganos, muitos desses sons se referem a ritmos e modos espanhóis e mouros. Do ponto de vista da evolução musical, cada situação em Carmen é expressa com uma invenção melódica estupenda, que torna cada um de seus temas inesquecível; e com uma absoluta concisão e senso de timing, aspectos atribuídos, entre as forças que agiram na formação de Bizet, à influência de Verdi. Carmen insere-se na moda do espanholismo, introduzida na França pela imperatriz Eugênia de Montijo, mulher de Napoleão III. De seu país ela trouxe ritmos de dança, tipos de roupa e costumes culinários que a corte se apressou em adotar.

Os episódios de desempenho real concentram-se particularmente em Carmen: fazer música é parte de sua persona. Ela gosta de cantar e de dançar, e usa o canto e a dança para convencer e seduzir. Quando Don José a vê pela primeira vez e fica instantaneamente encantando por ela, Carmen está se apresentando para uma multidão. Isso é significativo: Carmen e Don José são tão inadequados um para o outro não por uma ser uma cigana e o outro um soldado pequeno-burguês, mas porque uma é uma pessoa extravagante que se exibe sem inibições e o outro é um intenso e tímido expectador.

A música de Carmen oferece grandes inovações. Sua estrutura de opéra comique faz dela, necessariamente, uma ópera de números distintos; mas há nela a fusão muito feliz de vários estilos prévios. Só a Flauta Mágica, de Mozart, consegue trabalhar com tantos materiais diversos, obtendo igual união perfeita de contrários. Para criar cor local, Bizet usa melodias e ritmos de inspiração hispânica: a Habanera, a Seguidilha, a Canção do Toureador, a música da Plaza de Toros, cujo tema excitante estoura desde os primeiros compassos da abertura. O quinteto dos contrabandistas e o final do ato II são típicos da opereta. Todos os trechos ligados a Micaela têm o estilo sentimental da comédie larmoyante. São do domínio da tragédie lyrique a cena das cartas, a do duelo de Don José com Escamillo e a cena final. Quanto às movimentadas sequências de rua, no ato I, elas remetem ao gosto da grand opéra pela recriação da cor local e o deslocamento das grandes massas de coro e de figurantes. E as sequências com os contrabandistas, nas montanhas, durante o ato III, pertencem ao clima das óperas de aventura, comuns no início do século XIX. Essa variedade de tons e de estilos não é gratuita. Carmen reflete uma visão complexa e profunda dos contrastes internos da própria vida.

O próximo artigo traz Eugênio Oneguin de Tchaikovsky, a mais popular ópera russa. É em essência uma ópera intimista, com suas várias árias introspectivas, e também uma história de amor marcada pela tragédia e sem final feliz – estamos em pleno Romantismo. Composta em meio à conturbada vida íntima do compositor, Eugênio Oneguin é considerada por críticos e especialistas o início da grandeza da língua russa.