Fernando Dourado

Belgrado, Sérvia.

Tem cidades que nos marcam mais pela sensação que deixaram do que pela lembrança de monumentos e pontos de visitação. É esse seguramente o caso de Belgrado, então capital da Iugoslávia, onde estive pela primeira vez em fevereiro de 1978, numa incursão pioneira aos países do Leste. A primeira cidade que tinha visitado para lá da Cortina de Ferro tinha sido Berlim Oriental, um amontoado de construções fuliginosas onde circulavam pessoas marcadamente sinistras. A História mostraria mais tarde que do outro lado do Checkpoint Charlie, prevalecia um estado policial multi-tentacular, plotado na Stasi, responsável por tudo aquilo que então me chamou a atenção: palavras sussurradas, olhares esquivos, ansiedade de comunicar, linguagem não-verbal crispada e neurastênica, aspecto pessoal decadente e malcuidado, salsichas sebentas e intragáveis, propaganda ostensiva, cerveja morna, culto de personalidade, enfim, a não-vida. Daquele mundo não podia surgir uma pessoa sã ou saudável, pensei.

A segunda capital do périplo foi Budapeste, na Hungria, antes de chegar a Belgrado. Posso dizer que se tratava de uma reedição de Berlim às margens do Danúbio? Não. Há 40 anos, ainda tínhamos invernos rigorosos na Europa, desses em que a água empoçada logo vira uma placa deslizante, e em que grandes blocos de gelo eram arrastados pelos rios adormecidos. Cheguei lá no auge de uma onda siberiana que transformava qualquer experiência outdoors numa provação com prazo regulamentar para se esgotar. Era impossível ficar vinte minutos exposto ao relento sem recorrer ao abrigo de um raro café, de um edifício público, de uma sala calafetada. Mas contrariamente à escala anterior, havia na alma magiar alguma coisa de indomável, de irreverente, de quase alegre. Os alemães pareciam sob fortíssima sedação. Os húngaros podiam ser vivazes, como se tivessem ingerido euforizantes. Não era geral, mas é normal que nos fixemos em alguns pontos fora da curva. Um dia volto a eles.

Mas hoje falemos de Belgrado. Falar da então Iugoslávia para mim era falar do Marechal Tito. Ora, durante todo o ano que passei estudando na Alemanha, tinha conhecido alguns sérvios, um par de macedônios, um montenegrense e uma eslovena. Nas duas cidades onde morei, encontrava regularmente iugoslavos que iam no verão visitar suas famílias e que saíam do país normalmente, como se fossem quaisquer outros europeus a fazer o mesmo tais como italianos e portugueses. À frente dos líderes não-alinhados, Tito era apreciado no mundo e temido pelos russos. Seu socialismo balcanizado combinava a liberdade ocidental com os ganhos sociais atribuídos àqueles países que, embora caídos nas garras de Moscou, ainda viam no comunismo político uma forma de promover a paz, a justiça, e de combater frontalmente a hidra fascista que jogara a Europa numa imensa guerra, poucas décadas atrás. Foi, portanto, com disposição positiva que desembarquei naquela cidade luminosa, onde o Oriente parecia querer começar.

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A visão de minaretes e pequenas mesquitas não me era estranha. Para quem vinha de uma experiência em Israel dois anos antes, e se extasiara com a vida muçulmana de Nablus, Hebron, Acco ou Nazaré, o que se via em Belgrado não era digno de nota. Mas de alguma forma, criava uma impressão positiva. Primeiro porque denotava diversidade cultural. Segundo porque era indicativa de liberdade de culto. Bem perto da pensão onde fiquei, tinha uma pequena mesquita. O chamado dos muezim não era tão evidente quanto os que eu conhecera, mas existia. Não era na garganta, parecia ser gravado, mas menos mal. Ver muçulmanos ao lado de cristãos ortodoxos, por discretos que estes fossem, era sim um ganho civilizacional. À direita de minha janela, via os domos quadriculados do mercado de Zeleni Venac, inaugurado depois da Primeira Guerra, que mais lembravam aquele xadrez da cabeceira dos aeroportos de todo o mundo. No ar, pairava o aroma dos cevapcici, os espetinhos de carne na brasa com cebola.

Daqueles dias, lembro das partidas de xadrez que os velhos jogavam perto do chafariz da rua Mihajlovska, tomando café turco. Um dos tabuleiros era gigantesco e as peças tinham o tamanho de pessoas pequenas. Ora, como ali todo mundo era muito alto e forte, ocasionalmente também belo, ninguém precisava de ajuda para mover em “ele” um cavalo de dez quilos ou um peão de oito. Quanto pesaria o rei? Talvez doze. A vestimenta tinha o padrão de sobriedade que mais do que o de lá, era o europeu nos meses de inverno em que se viam poucas cores e muito cinza, grafite, marinho e preto. Lembro de ter abordado mulheres para conversar, mas o que de melhor sucedeu nesse terreno veio por iniciativa de uma sérvio-alemã rechonchuda que parecia muito à vontade na vida e que me levou para uma sessão de afagos no primeiro andar de uma galeria perto da estação, e me dispensou de forma pouco romântica tão logo voltamos à calçada. Até então ninguém tinha se despedido de mim sem olhar para trás.

Nas décadas seguintes, a Iugoslávia se desfez. E meus contatos com Belgrado se cingiram a uma ou duas reuniões pontuais para articular nossa defesa comum – eu representando a CNQB do Brasil, e um time de três homens opacos falando pela Miloje Blagojevic -, já que ambos tínhamos sido processados pela Hercules, dos EUA, por alegada prática de dumping nos preços de nitrocelulose que então praticávamos. Não sendo aquela a Belgrado que eu queria rever,  devo ter voltado no mesmo dia para Milão. E conquanto tenha visitado mais tarde todas as capitais das cinco demais repúblicas que integravam a finada Iugoslávia – Sarajevo, Zagreb, Podogorica, Liubliana, Escopia -, ademais de Pristina, no Kosovo, Belgrado tinha ficado de lado. Mas ora, como restam a visitar poucos dos lugares onde estive na juventude, a hoje capital da Sérvia vinha me atraindo já há alguns anos e eu sabia que logo ela voltaria a cintilar no meu radar. Foi por vias tortas que, bem ou mal, lá cheguei em janeiro de 2020.

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Fazia 3 graus negativos quando cheguei ao aeroporto, quase três horas depois de sair de Barcelona. Imagino que a tripulação tenha encontrado alguma dificuldade de aterrissar, apesar dos bons equipamentos de terra e de bordo. Percebendo que o avião voava meio travado, como um carro em marcha lenta, só me dei conta de que a visibilidade era próxima do zero quando tocamos a pista. O terminal modesto embora moderno, cheirava a nicotina e de pronto me senti de volta a Nils, Sérvia, onde estivera há três anos. Tudo ao redor era nevoeiro espesso. Tirei alguns dinares no caixa eletrônico e viajamos por quase meia hora a boa velocidade para chegarmos à praça da República. O motorista pegou meus 1800 dinares, apontou uma construção sem nenhum letreiro de identificação à porta e disse que era ali. Que fizesse o faltante à pé porque era zona de pedestre. Lembrei do teatro nacional, à direita, e tentei localizar na memória a estátua do príncipe Mihailo a enxotar os turcos, mas não consegui enxergá-la com nitidez.

Quem viaja pelo Leste em especial, sabe que por relativamente pouco dinheiro é possível ficar bem instalado. A questão fundamental é o estupor que deriva do primeiro contato com o imóvel propriamente dito. Dos 12 andares daquele edifício que seria minha casa por uma semana, apenas dois passaram por um severo retrofitting que deixou os apartamentos à altura dos melhores que se possam encontrar na Europa ocidental, sendo que a quatro vezes a tarifa destes. Ora, sendo o térreo e os elevadores áreas comuns incontornáveis, choca ver guimbas de cigarro em meio de garrafas de rakia espalhadas pelo chão. Os elevadores são lentos e temperamentais, sujeitos a paradas a meio caminho, e mantidos dentro de padrão precário. Se assim não fosse, por que não apagar aquelas indecências de apelo universal garatujadas nas paredes? É inevitável que os desavisados digam para si mesmos que trocarão de hotel já no dia seguinte, mas que depois desistam porque nos acostumamos a tudo, e os quartos são bons, limpos e seguros.

Em 1978, Belgrado me pareceu simpática e luminosa. Em 2020 tive a impressão de se tratar de uma cidade de poucos sorrisos. O canto dos estudantes nas bebedeiras noturnas soa agressivo e brutal. Embora não lhes entendamos a língua, há no não-verbal um subtom de acinte e belicosidade. É inevitável pensar naqueles jovens como filhos da geração da Guerra dos Bálcãs, que grassou nos anos 1990. É a geração anti-OTAN, sigla esta demonizada unanimemente. De conversa em conversa, depreende-se que ela significa o pior do Ocidente. “Eles passaram por cima de nossa soberania. O Kosovo é Sérvia, como você deve saber. Os albaneses que lá estão são traficantes da pior espécie. O que aconteceu aqui foi um ataque à Igreja Ortodoxa, e terminamos pagando pelos russos. Não há família, aliás, que não tenha perdido um parente nas mãos dos croatas. Estes sim, são joguetes alemães desde a Guerra, quando os fascistas locais massacraram as minorias.” E isso pode ser só o começo.

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Muitos anos de convívio com os judeus me ensinaram que o fim das tardes das sextas-feiras combina com uma ida à sinagoga local de uma cidade desconhecida. Em torno do rito simples de celebração do Shabat, trocam-se olhares com pessoas curiosas e interessantes que, terminada a cerimônia, não se pouparão à hora de indicar um restaurante, um programa musical, um evento imperdível – que os judeus, talvez mais do que qualquer povo, mantêm no radar. Estando no Leste em especial, região em que muitas das comunidades foram deportadas e dizimadas, encaro esse rito quase como obrigação, como se ao fechar os olhos e ouvir os cânticos, entrasse em comunhão espiritual com aquela gente quase desavisada que, mês após mês, viu que o pior chegava, que era irreversível e insaciável. Da sinagoga Sukkat Shalom, voltei pela primeira vez em 40 anos ao mercado de Zeleni Venac, onde já não vi as expressões de alegria de 1978, senão um comércio menos vibrante, quase apático, incomum aos feirantes.

Tipos raros me chamaram a atenção. Para começar, o mendigo de padrão eslavo, bem nos moldes de Dostoiévski, portador de uma narrativa patética: “Sou um homem bom. Não me poupo para ajudar os outros, mas ninguém se importa comigo. Pode o senhor imaginar que eu esteja dormindo num parque em pleno inverno? Estou desempregado e digo aos agentes do Estado que eles são os grandes culpados. Dê-me 500 dinares. Não lhe farão falta e me ajudarão a comer para aguentar o dia. Não me recuso a trabalhar, contanto que deem algo à minha altura.” O vendedor de echarpes de lã procede de forma original. Tocaia a mercadoria de dentro de um café onde fuma um cigarro atrás do outro. Quando um interessado aparece, ela vai até lá. Mas na maioria das vezes, o cliente já desistiu e ele volta enfurecido, amaldiçoando a impaciência dos passantes e o destino. Acende, então, aliviado, outro cigarro. Sobre Tito, me diz o garçom: “No fundo, era um croata que detestava os sérvios. Se você for ver, sempre foi um agente austríaco. Para nós ele só tem fama.”

Poucas perguntas podem irritá-los tanto quanto as razões pelas quais grassa o ódio entre os povos dos Bálcãs, quando tinham vivido em harmonia aparente até as sacudidas dos anos 1990. “Os croatas sempre foram fascistas. Os bósnios são muçulmanos. Nós somos ortodoxos de vertente russa. Os croatas tiveram conduta abominável na Guerra. Sempre estiveram alinhados aos fascistas. Era como se esperássemos os acertos de contas há muito tempo.” É sintomática uma pergunta sobre Srebrenica, onde o general Ratko Mladic teria desencadeado o maior genocídio europeu desde a Segunda Guerra.: “Ninguém chega a um lugar e ordena uma chacina. Ocorre que o combate obedece a uma dinâmica peculiar. É como um experimento de laboratório que sai do controle. É má fé acusar um ou outro por esses incidentes. Mas você tem que entender que eles eram muçulmanos, tinham dinheiro do Irã. Os soldados sérvios lhes vendiam munição no mercado negro para recebê-la de volta sob forma de tiros mais tarde. Quem é de fora, não entende.”

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Contratei um motorista para me levar a Timisoara. Ele não parava de falar: “Por que os outros podem ser Europa e nós não? O que têm eles de melhor do que nós? Que culpa temos se Tito dizimou nossa agricultura? Tenho 4 filhos, o sacerdote da igreja de meu bairro me deu uma condecoração. Quando pararmos vou lhe mostrar o vídeo. Quem me deu esse terno que uso foi a tenista Jelena Jankovic, ex-número 1 do mundo. Fui seu motorista durante anos. A Opel, que a patrocinava, só deixava o carro dela à disposição se eu estivesse ao volante. Era exigência do seguro. Foram bons tempos. Dirigi em Nova York. Você gosta de Novak Djokovic? Pois bem, a Sérvia aprendeu muito com a guerra. Sofremos um bocado, mas somos bons de briga. Se a polícia tratou-o mal, me avise. Tenho amigos bem colocados que gostariam de saber disso. Agora sobre Petkovic, prefiro não opinar. Sei que ele é querido no Brasil, mas aqui ele caiu em desgraça com nossos mandatários do futebol.  Aliás, é o futebol que governa a Sérvia, sabia? Grande máfia.”

A paisagem em torno da capital é desoladora. As margens do rio Sava são poluídas e mal cuidadas. Dezenas de milhares de sacos plásticos se agarram aos galhos secos das árvores e da vegetação mais rasteira, dando a impressão de integrarem uma instalação alusiva ao fim do mundo. Nosso amigo não dá trégua, agora secundado por outro passageiro. “Se os europeus querem rios limpos, que nos ajudem a limpá-los. Não temos dinheiro. A poluição que provoca a neblina vem da queima de carvão e até de pneu. Minha energia elétrica foi cortada. Que culpa tenho eu se o trabalho não me remunera à altura do que preciso para alimentar e aquecer meus filhos?” O diapasão patético ganha notas mais trágicas quando atravessamos o Danúbio: “Cada vez que cruzo as fronteiras, rezo para que quando volte, encontre um país melhor. Como viver com uma renda média de 500 euros?”  Percebendo o quanto bordeja o ridículo, resolve ser pragmático: “Cá entre nós, por 20 euros você pode sair com uma boa mulher na Romênia.”

Não vai nada bem a Sérvia. De Belgrado, contudo, levei boas lembranças. Dos cafés enfumaçados, gosto do diapasão de conversa das mulheres que parecem soldadas por vários elos de cumplicidade interpessoal. Já dos ambientes exclusivamente masculinos, melhor manter distância. O ar é carregado e um homem parece atuar para o outro. Não há espontaneidade à vista de terceiros porque o primado da força é pulsante. No geral, a rispidez perpassa o ar. Quando perguntei na farmácia se eles vendiam um antibiótico para repor meu estoque, a matrona disse que só com receita médica – o que é bem normal -, e me lançou um olhar contra quem pretendia induzi-la a delito. Testei a pergunta em outras farmácias e a reação foi parecida. Falta o sorriso das sociedades mais igualitárias. Falta ali uma componente de normalidade que custará a deitar raízes. Quem quer servir bem, se avilta, se avacalha, se deprecia, parece servil. Da altivez sobranceira, eles descem sem escala ao poço da subserviência. Tem muito ajuste a ser feito. Mas Belgrado está lá.