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João Rego

Mantinha permanentemente pendurados por um cordão, pedaços de carne seca e toicinho. Quando ia cozinhar o feijão, com engenhoso gesto soltava o barbante, que deslizava pelos esfumaçados caibros rústicos do teto da sua cozinha, até chegar com aquela “toiceira” de carne defumada na panela. Após cumprida a missão de liberar seus sabores no feijão daquele dia, puxava liturgicamente o barbante e tudo subia e ficava pendurado, qual uma carcaça de caça, para ser usado em outras oportunidades. Durava semanas.

Segundo Jacqueline, minha irmã, este era o segredo de Seu Ireno para que o feijão ficasse delicioso.

Ele era um dos moradores da Vazante, figura atípica naquela região, pela delicadeza no falar e que, sozinho — não sei se fora abandonado pela mulher ou se era viúvo— criava seus três filhos: dois rapazes e uma menina. Lembro-me que o mais novo chamava-se Nildinho, era meu companheiro de aventuras e de Eleusina, sua irmã mais nova. Era nesta mesma cozinha que assávamos os preás e passarinhos, frutos da nossa caça. Lembro de um latão cheio de sardinhas preservadas em uma densa camada de gordura. Doação da Aliança para o Progresso, programa assistencialista do Governo de John Kennedy para a América Latina. O cheiro da lenha queimando impregnava toda a casa espalhando fumaça pela vizinhança. Ao lado da casa, que era a mais próxima da Casa da Fazenda, havia um enorme Pé de Umbú, aliás, parece que a frondosa sombra desta árvore era a principal referência para se construírem as casas dos moradores da fazenda.

À frente da casa, que ficava num recuo da estrada, havia um terreno com vários leeiros de alface, coentro, cebolinho e quiabo que terminava no Rio Ipojuca. Era um dos nossos pontos de pesca.

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Cordeirito, Seu Luiz Monteiro e Tio Murilo eram pescadores assíduos. Pescavam a traíra, uma espécie arisca de peixe carnívoro abundante naquela região. Nós, que não tínhamos experiência, pescávamos apenas piaba e outros peixes menores. Nunca entendi direito como eles tinham tanta paciência de ficarem sentados, por horas, em uma pedra na beira do rio a espera de uma mordida na isca. Muitas vezes saiam sem nada nas mãos, mas felizes. Era uma prática zen; pouca conversa, muita amizade e tempo para ficar pensando nas coisas da vida — enquanto esse passava languidamente, carregado pelas águas do Rio Ipojuca.

Certa vez, eu e Mano, filho de Seu Luiz Monteiro, decidimos imitá-los. Era preciso chegar bem cedo no rio, pois, segundo Mano, era o momento ideal para se pegar as traíras. Despertador ajustado para às quatro da madrugada; varas, iscas e anzóis preparados. Acordamos e partimos com a sensação de que estávamos vivendo uma aventura de gente grande. Piaba? Era prá pirralhos! As iscas, me lembro bem, eram pequenas piabas enfiadas cuidadosamente nos grandes anzóis. Calados — o silencio era nossa principal arma contra o inimigo. Entretanto, o sono, a fome e a impaciência foram, aos poucos, interrompendo nosso rito de passagem da infância para adolescência. Voltamos frustrados, talvez pensando que ainda tivéssemos que pescar muitas piabas antes de chegar à traíra.

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Sofia Loren, com seus óculos Ray-Ban e suas curvas voluptuosas era o padrão de beleza e sensualidade dos anos sessenta. Lembro de mamãe, muito bonita, com estes óculos e lenço na cabeça, certamente inspirada nestes padrões da famosa atriz. Na Vazante, que não era nenhuma Riviera Francesa, havia um curral abandonado com uma cocheira de cimento no meio. Ficava ao lado da Casa da Fazenda. Mamãe e Tia Rosilda, com óculos escuros e maiôs, tendo passado o “óleo de bronzear”, deitavam naquela cocheira com a classe e o estilo de atrizes europeias. E, creio, assim se sentiam, mesmo sem estarem cercadas de paparazzis ou de um público sofisticado do high societey. À sombra da cerca de aveloz, em um terreno cheio de bosta seca de boi, um vira lata sonolento observava a cena— com total desinteresse.

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Setembro, 2014.