Fernando da Mota Lima

Torre de Babel - autor ainda não identificado.

Torre de Babel – autor ainda não identificado.

Embora há muito desejasse expressar pública e livremente minha opinião, somente há uns cinco anos, graças à generosa acolhida de dois ou três editores de blogues e revistas eletrônicas, passei a fazê-lo com alguma regularidade. O fato cuja manifestação individual represento é uma das muitas consequências da democratização gerada pela internet. Durante muito tempo o exercício da opinião pública, também do debate e do confronto ideológico, foi privilégio dos poucos que praticavam o jornalismo impresso. Essa restrição tinha a virtude de funcionar como conduto seletivo. Apesar dos desníveis e privilégios de praxe, a hegemonia ou o prestígio da opinião refletia, no geral, os méritos e virtudes dos autores. Ficando no exemplo do Brasil, foi assim que se consolidou uma tradição de excelência na crítica de rodapé testemunhada por gente como Alceu Amoroso Lima, Mário de Andrade, Sérgio Buarque de Holanda, Álvaro Lins, Otto Maria Carpeaux, Antonio Candido e muitos outros.

O advento da televisão, que logo se tornaria veículo de comunicação supremo, notadamente num pais ainda assolado pelo analfabetismo, não abalou de imediato esse quadro. Pelo contrário, no curso dos anos 1950 e 1960 emergiram figuras que muitas vezes ditavam os padrões de opinião cultural: Millôr Fernandes e Nelson Rodrigues, estes vieram antes, Paulo Francis, Glauber Rocha, Merquior, Sérgio Augusto, José Lino Grunewald, Ruy Castro, O Pasquim, e o ainda onipresente Otto Maria Carpeaux pairando acima de todos com sua erudição estonteante. Notem que no geral limito minhas referências àqueles que praticam o que correntemente designamos como jornalismo cultural. Mas logo a massificação provocada pela televisão acelerou-se, fruto imediato do capitalismo imposto pela ditadura, e logo em seguida a privatização do exercício do jornalismo. Noutras palavras, salvo as exceções de praxe, o exercício do jornalismo tornou-se direito e privilégio dos diplomados em jornalismo. Um dos problemas decorrentes da restrição imposta por essa lei corporativa reside no fato de que muita gente de talento comprovado, quando não superior, é impedida de escrever, de opinar em termos correspondentes ao do jornalista de ofício simplesmente por não ter um diploma. Ensinei sociologia da comunicação durante muitos anos na Universidade Federal de Pernambuco a alunos incapazes de escrever um parágrafo correto e legível. Mas um dia punham o diploma debaixo do braço e através de muitas vias, não poucas tortas, acabavam ditando opinião na mídia.

Por fim sobreveio a internet, a mais extraordinária revolução já ocorrida na história da comunicação humana. Sua força de difusão e desestabilização dos controles tradicionais é tão extraordinária que está arruinando jornais e veículos impressos de grande poder, assim como símbolos de autoridade intelectual, política, religiosa, moral… No caso, falar em revolução não é banalizar um termo já tão banalizado e desacreditado na história humana. A internet gerou condições objetivas para a generalização de processos democráticos sem precedentes. Como tudo, há aí muito de bom e de ruim, se me perdoam o lugar comum. Ressaltarei apenas uns poucos pontos que me parecem importantes.

Sartre observou certa vez que estávamos vivendo numa época em que se sabia de tudo, ou em que já não era possível esconder mais nada. E notem que o disse antes da internet. O que dizer hoje? De fato, hoje sabemos de tudo, pelo menos teoricamente. Escrevo nestes termos por considerar que é impossível um indivíduo saber de tudo. Mais grave ainda, há muitos que preferem não saber sequer o pouco que poderiam, pois acomodam-se na estupidez que tudo ignora e assim tudo aceita e todas as noites dormem em paz o sono alienado do gado tangido pelos donos da vida, como há muito dizia Mário de Andrade.

Outra coisa: a universalização da democracia midiática produziu inevitavelmente a babel das opiniões e dos costumes. Hoje todo mundo tem umas e outros e todos se sentem investidos do direito de exercê-los. Nada contra, pois continuo acreditando que a democracia é o menor dos males e o mundo, salvo o engano renitente dos otimistas, que não passam de pessimistas mal informados, é um mal sem conserto. Tudo que podemos e devemos fazer é torná-lo menos ruim.

A universalização da democracia internética, e portanto da opinião, acaba convertendo o cenário cultural num vale-tudo, ou terra de ninguém. Se todos têm direito à opinião, logo parece justo que todos opinem e todas as opiniões valham a mesma moeda. É aí que o cano estoura e a água suja, também a limpa, vaza por todos os espaços, que vão do megashow à universidade, dos salões supostamente educados ao bate-boca de botequim. Um pouco dessa água vaza, por exemplo, nas páginas da revista Será?. Mesmo eu, que raramente me pronuncio sobre temas polêmicos em tom idem, já saí de roupa suja na página de comentários onde o leitor exerce seu direito de opinar.

O livre exercício da opinião, que em princípio anula o princípio da autoridade, induz muitos ingênuos a suporem que agora fazemos o que queremos e pensamos o que nos convém. Os donos da vida, à falta de expressão menos imprópria, são os primeiros a difundir essa ilusão lucrativa para o balanço das suas empresas e a elevação das ações que negociam no mercado financeiro. Não se enganem. O espectro da informação, do intercâmbio e da circulação de ideias e mudanças sem dúvida alargou-se de modo inusitado, já o observei. Daí a concluir que agora somos todos iguais e que tudo vale tudo no reino da desigualdade e do privilégio, daí a passada é bem mais longa que a perna. É ilusório, por exemplo, supor que as figuras de autoridade social e cultural foram abolidas. O que mudou foi seu modo de ação, agora despersonalizado. É isso o que explica a perda de poder das figuras de autoridade tradicionais como os pais e professores, além das prescrições antes impostas por instituições como a religião, a tradição, os agentes diferenciados pela idade ou o saber reconhecido dentro de determinados grupos. Reafirmo: não se iludam, pois a autoridade e seus artifícios de controle e poder mudaram de mão e de forma, mas continuam sendo autoridade, controle e poder. O problema é que se tornaram quase sempre invisíveis. Nessa medida, torna-se bem mais difícil identificá-la, a autoridade, para assim melhor combatê-la. Fomos liberados da autoridade doméstica e escolar, mas caímos nas mãos invisíveis e muito mais nefastas do publicitário e do formador de opinião, do pastor de auditório e do especialista armado com uma máquina de calcular e as infinitas artimanhas da manipulação ideológica.

Na babel em que vivemos e passamos a atuar culturalmente, o nó cego está na opinião relativa às artes e às ciências humanas, notadamente na esfera da opinião política, solo inteiramente minado pelos interesses e paixões ideológicas. Como no caso somos sujeito e objeto, todo mundo sente-se à vontade para opinar sobre tudo. Explicando melhor, o objeto de saber do psicólogo, do sociólogo, do cientista político, do economista etc, é parte íntima e corrente da nossa experiência social. É por isso que todo mundo supostamente tem opinião pronta sobre qualquer questão religiosa, política, moral, estética… Não raro, um simples exame demonstra que muitas dessas opiniões não passam de preconceito grosseiro ou crendice assimilada de modo inconsciente no meio em que nos formamos. Uma das funções do saber crítico compreendido em sentido amplo é precisamente partir da varredura dessa névoa de lugares comuns que embaçam nossa percepção da realidade. O exemplo mais antigo e notório dessa saudável pedagogia é a chamada maiêutica socrática. Noutros termos, era o procedimento dialético adotado por Sócrates nos lugares públicos de Atenas onde sem reservas abordava alguém com quem iniciava um processo de perguntas e respostas que ia gradualmente expondo, sob a pele da suposta opinião refletida, os preconceitos e ideias feitas que entulham nossa consciência da realidade. Mas isso foi há muito, muito tempo, e já não se punem seres perigosos como Sócrates com uma dose letal de cicuta. Saltando de volta para o presente, o limite irônico da nossa liberdade está no fato de repetirmos o publicitário que nos ensina a dizer: seja você mesmo, beba coca-cola.

No reino da democracia internética, todo mundo tem opinião ou assim supõe e assim se sente prontamente qualificado para exercê-la. É a nossa babel cultural, como antes salientei. Se Deus, segundo a tradição bíblica, não criou uma linguagem universal passível de forjar a concordância substantiva entre os seres humanos, o que dizer de mim? Diante disso, prefiro humildemente rematar o artigo propondo algumas perguntas cuja resposta deixo a critério do leitor. Quem discordaria de mim se eu afirmasse que Pelé é o melhor jogador de futebol do mundo? Quem afirmaria que a seleção brasileira tem algum perna de pau, mesmo quando a seleção é desclassificada? E mais: quantas pedras cairão sobre a minha cabeça se eu disser que Wave, Águas de Março ou Corcovado valem todo o rock do mundo? O que dirão certos leitores se eu afirmar que esse ruído repetitivo e grosseiro que sou forçado a ouvir nas rádios, ruas, supermercados etc nada tem a ver com música? O que dirá o leitor apaixonado por Paulo Coelho se eu disser que perto de Machado de Assis ele é apenas um escrevinhador de livros baratos que logo desaparecerão como desapareceram tantos best-sellers celebrados pela mídia, o mercado e o público desprovido de cultura literária? O que dirão os militantes dogmáticos do PT e do PSDB se eu sustentar que não são antagônicos como se pinta? Que na verdade são mais convergentes do que divergentes? Pedras e tijoladas para a redação, por favor.