Aécio Gomes de Matos >

A caminho de Machu Picchu – foto by joaorego.com

A caminho de Machu Picchu – foto by joaorego.com

Estive há poucos dias em visita ao Peru, a Lima, Cuzco, Vale Sagrado e Machu Pichu. Não posso dizer que conheci o País, mas o que vi me deixou impressionado. Não apenas com os registros históricos da civilização INCA que, por si, atraem grande diversidade de turistas de várias partes do mundo. Orientais, americanos, franceses, ibéricos, nórdicos; todos parecendo mais sociáveis do que os conheci em suas próprias terras. O clima social era diferente, dava a impressão que estávamos entre conhecidos. Mesmo nas relações comerciais dos peruanos, com os turistas, a simpatia não tem aquele servilismo que se observa em muitos lugares, particularmente nas regiões mais pobres.

O prazer de estar vivendo esse clima comunitário só aumentou minha curiosidade. Essa sociabilidade diferenciada não estaria relacionada à singularidade da forma de vida dos próprios peruanos? Como se mantem convivências comunitárias em centros urbanos com cerca de 10 milhões de habitantes, como é o caso de Lima? Nos restaurantes, nas lojas, nas praças, nas ruas; apesar das diferenças étnicas, os estrangeiros se confundiam com a população local. Sentíamo-nos confortáveis; acolhidos, integrados. O turismo não parecia apenas um negócio. O artesanato é uma expressão viva da cultura cotidiana. A arqueologia é, antes de tudo, motivo de orgulho de uma nação diferenciada, tanto pelas raízes pré-colombianas da cultura INCA, como pelos dez mil anos da Huaca Pucllana, seis hectares preservados contra a especulação imobiliária no coração de Lima.

Por um lado, comparado com o Brasil, o Peru é um País pobre. Tem pouco mais de 10% do nosso PIB, menos da metade do PIB per capita. Números que podem indicar um padrão de desenvolvimento mais atrasado, menos industrializado; mais primitivo que o nosso. Na prática, no entanto, a população parece viver melhor, com uma renda per capita quase igual à brasileira e a população com a mesma média de anos de estudo (7,2 anos). Por outro lado, aquele país tem 8 posições na nossa frente no ranking do IDH e uma expectativa de vida de 74,2 anos, pouco superior à nossa. Na prática, nada disso parece determinar a qualidade de vida e a sociabilidade nas cidades ou nas pequenas propriedades rurais por onde passamos, sempre rodando em estradas com excelente pavimentação.

Embora alertados no Guia Visual (Peru) da Folha de São Paulo, não vimos no centro de Lima, nem nos bairros mais modestos ou nas cidades menores, populações indigentes ou grupos de marginais e drogados ameaçando o ir e vir das pessoas, inclusive dos turistas. Só isso já é um diferencial importante, se comparado com o que se pode ver com facilidade nas grandes cidades brasileiras.

Finalmente, depois de muito observar e refletir com o meu grupo de viagem, comecei a pensar que a origem do diferencial da sociabilidade vivida no Peru poderia ser a cidade; a qualidade das cidades. De fato, havia um diferencial em todas as cidades que visitamos, inclusive na pequena Aguas Callientes. Calçadas para todos, pedestres e cadeirantes. Nunca tinha visto tanta cadeira de rodas se deslocando numa cidade; nem em Berlim. Calçadas largas com piso regular, quase padronizado. Anda-se muito a pé, aparentemente sem muita pressa, conversando; um hábito incorporado pelos habitantes e pelos turistas. Há bancos para sentar, praças para crianças, adolescentes, namorados. Mulheres e homens parecem muito à vontade na rua. Há sempre gente circulando. Pessoas se reconhecendo como gente; gente que fala, que pergunta, que responde, sempre com cortesia. Certa noite, passando numa dessas praças vimos um grupo de pessoas de todas as idades recitando poesias, se alternando, sem inscrições prévias, bastava tomar a iniciativa e falar cinco, dez minutos. Todos ouvindo e aplaudindo. Umas cinquenta pessoas. Parecia ser um hábito do lugar. Sem publicidade, diga-se de passagem. Vimos também neste mesmo clima de convivência social crianças e adolescentes com fardas indo a pé para as escolas ou nas praças, sem a tutela de adultos, brincando em pequenos grupos.

Tudo isso, apesar de um trânsito quase caótico, cada um conduzindo carros, ônibus, motos, bicicletas, pautados mais pela interação entre os condutores do que pelas leis de trânsito. Mas, acreditem, as passagens de pedestres são respeitadas. Há também ciclovias protegidas e o hábito de transformar as ruas em áreas de lazer nos finais de semana. Os taxis não têm taxímetro, o valor da viagem se negocia na hora: – quanto para irmos ao centro? – 12 Soles. Sempre um preço razoável: não te exploram por parecer estrangeiro.

Chamou-nos a atenção, ainda, a limpeza das cidades, nas ruas, nas praças, nas calçadas, inclusive em áreas de comércio. Não percebi pessoas jogando lixo ou mesmo restos de embalagens na rua. Há depósitos de lixo em lugares de fácil acesso, mas vi também muitos varredores fardados nas praças e nas ruas, no cotidiano ou nos momentos de festas. Orquestra, dançarinos e varredores.

Um amigo que conheceu Lima há pouco mais de uma década ficou encantado com as transformações que pode ver há um ano. O que poderia ter mudando tanto numa cidade, eu me perguntei. Novos projetos urbanísticos? As calçadas, o pavimento das ruas, os serviços de conservação? É possível que tudo isso tenha contribuído, mas fica o sentimento de que o efeito objetivo de todos esses investimentos públicos não resultaria na qualidade de vida das cidades que conheci no Peru, sem o padrão de dignidade que caracteriza o povo Peruano. Uma dignidade historicamente construída, cotidianamente renovada.

Finalmente, de volta à casa vem a velha questão: e entre nós, …o que fazer? Mudar a cidade? Mudar a cultura da gente? Para mudar a cidade, não há falta de projetos. Vejam-se, por exemplo, as alternativas do livro recém-lançado por Cesar Barros, Recife Enxerido. Ideias ousadas para humanizar nossa cidade. Para mudar a cultura, há que se resgatar a dignidade que está na base de nossa história tão pouco considerada pelos nossos governantes.  Como tratar os interesses imobiliários, do domínio do automóvel, o sistema de transporte coletivo, do imobilismo das instituições, da política partidária, do individualismo dominante em nossa sociedade? Se há uma chance, está na dignidade das redes sociais. Vamos à luta.