Tarcisio Patrício de Araújo (*)

Ilustração do Livro de George Orwell A Revolução dos Bichos.

Ilustração do Livro de George Orwell A Revolução dos Bichos.

É frequente – até mesmo entre economistas bem informados – dar-se eco ao preceito de que governos do PT, particularmente no mandato 1º  de Lula (2003 a 2006), foram  pioneiramente “pró-pobre”, com redução de pobreza e de desigualdade de renda, sob o império de políticas sociais de emprego (e de renda). Como se o que até então se havia experimentado em termos de avanços sociais houvesse sido inaugurado em 2003. Até mesmo a política de valorização do salário mínimo entra nessa indigesta malversação ideológica. Contribuir para desmonte de tal visão tosca e eleitoreira é objetivo do presente artigo – centrado no salário mínimo – e de outros que se seguirão.

A partir de cálculos simples, envolvendo séries históricas do salário mínimo (nominal e real, tratadas pelo INPC, Índice Nacional de Preços ao Consumidor – www.ipeadata.gov.br), pode-se verificar o seguinte:

  1. O início da série de ajustes anuais do salário mínimo  deu-se em maio de 1995, governo FHC, quando o SM nominal foi reajustado de R$ 70 para R$ 100, possivelmente atendendo a pressões político-eleitorais (1994) que haviam gerado demanda social por um valor equivalente a US$ 100, ao câmbio da época. De fato, o salário pré-existente era extremamente baixo.
  2. Tomando-se o SM real de abril 1995 como base 100 e acumulando-se os índices de variação anual, o acréscimo total – nos primeiros 08 anos, governo FHC – alcança 67% (índice de 167,0).
  3. Nos oito anos seguintes, governos Lula (em que tal política foi mantida), o índice acumulado vai a 256,1 – totalizando acréscimo (relativamente a abril 1995), na data do último ajuste (01/01/2010) de 156,1% (adicional de 53,4%  no período Lula).
  4. No período Dilma, o último ajuste (janeiro 2016) compõe um acréscimo real de 14,6% em relação ao patamar definido no último mandato Lula (janeiro 2010). Como, desde 2011, o critério de ajuste – estabelecido em lei – se compõe de variação do PIB dois anos antes da data de ajuste, acrescida de inflação dos últimos 12 meses, o ajuste a ser dado em janeiro 2017 deverá ser apenas o correspondente à inflação do corrente ano (algo entre 7% e 8%), já que o PIB de 2015 teve variação negativa (-3,8%). Seria a consumação de reajustes reais bem inferiores aos concedidos nos 16 anos anteriores.

Note-se que, quando do ajuste do SM nominal em 01/01/2016 (de R$ 788 para R$ 880), o ganho real (contra inflação de 10,67% em 2015) foi de apenas 0,9% – considerado um crescimento do PIB (então esperado para 2014) próximo de 1,0%. Mas veio a ocorrer crescimento (do produto) de apenas 0,1% naquele ano, por conta de uma home-made crise cuja causa primária remonta ao segundo governo Lula, com a chamada “nova matriz” da política macroeconômica, que gerou – inclusive – a renitente inflação que vem sendo reduzida muito lentamente.

Portanto, considerada a limitada régua de comparação de valores reais do SM nas datas de ajuste anual, foi em governos do PT que, via imprudente política fiscal e leniência com inflação, os ganhos reais do salário-base da economia vieram a minguar – particularmente no período Dilma¹.

Necessário atentar-se para o que de fato interessa: a inflação manter-se em nível mínimo. Quanto mais se acelera ou permanece em patamar alto, como desde 2010 (próxima de 6% ao ano), aproximando-se de 11% em 2015, maior o desgaste – mês a mês, dia a dia – do valor real do salário. O ajuste anual torna-se, quanto maior a inflação, mero alívio em um momento pontual.

Os números revelam, portanto, que valorização do SM – como proposição governamental – não é apanágio de governos petistas, como alardeado via criminoso marketing eleitoral. Assim como a redução de desigualdade que se observa no Brasil, desde 1993-1995  (coeficiente de Gini), não pode ser atribuída unicamente a governos pós-1994.

Na verdade, benefícios de esforços para obtenção de ganhos sociais (em educação e saúde, e em redução de desigualdade – por exemplo) tendem a materializar-se em período que vai além daquele em que tais esforços são empreendidos. Ademais – obviamente reconhecida a essencialidade de políticas sociais – ganhos distributivos e de redução de pobreza têm bastante a ver com fatores demográficos, bem mais do que o percebido por vasto contingente de economistas e políticos. Portanto, associação linear entre determinados ganhos sociais e governo do momento é nuvem que só desserve ao que deveria ser uma boa análise crítica.

Resta, no que respeita ao salário mínimo, o que fazer agora em contexto de enorme déficit fiscal do setor público (federal, estadual, municipal), quando uma boa recuperação da economia – elemento básico para resolver a questão fiscal – vai depender de arte (na política macroeconômica) e de sorte. Não se deve esquecer da imperativa necessidade de a economia vir a ter um adequado nível de produtividade, que atualmente e – já por longo tempo – está aquém do desejado, como registrado na literatura econômica.

Quem souber rezar – e nisso acredite –, reze. Melhor seria se importantes segmentos da sociedade civil buscassem ter participação mais ativa no processo político. Vamos precisar bastante de consciência e de atuação críticas até 2018, e além. Tudo leva a crer que no pós-impeachment materializar-se-á um inédito período de transformação econômica e social e de grandes percalços. Se a sociedade não ficar alerta, a solução pode vir pela via do atraso: preservação de interesses oligárquicos e corporativos, perpetuação de mecanismos socialmente regressivos, manutenção – e até agravamento – de desigualdades sociais.

(*) Professor do Departamento de Economia, Universidade Federal de Pernambuco.

¹Novamente, e não por acaso, o período mais recente pode ser usado como exemplo: os dois últimos anos foram iniciados com forte aceleração inflacionária, nos primeiros quatro meses – variações do INPC acima ou próximas de 1%. O resultado foi expressiva corrosão, relativamente ao mês de janeiro de cada ano, do valor real do SM: em julho 2015, o SM real já havia DECRESCIDO 5,5% contra o valor do primeiro mês daquele ano; em 2016, similar contraponto revela DECRÉSCIMO superior a 4%. Isso certamente explica boa parte da queda de popularidade do governo, principalmente no âmbito de estratos sociais de menor renda.