Sérgio C. Buarque

O PT-Partido dos Trabalhadores e o seu líder máximo, o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, têm demonstrado uma especial e insuperável capacidade para fabricar mitos utilizando com maestria imagens e símbolos em narrativa fantasiosas, exageradas e distorcidas de eventos e fatos reais. Mito é a imagem simplificada, exagerada e ilusória dos fatos que, sendo aceita pelos grupos humanos, passa a constituir explicação da realidade (segundo Aurélio Buarque de Holanda). Como tal, os mitos resistem aos fatos, aos dados empíricos das estatísticas oficiais e mesmo aos argumentos consistentes e relevantes.

Na história recente do Brasil, alguns mitos fabricados pelo PT passaram a constituir verdades definitivas e indiscutíveis para seus militantes e simpatizantes, para algumas organizações sociais e para parcela não desprezível da população (e mesmo para parte da imprensa internacional e alguns intelectuais estrangeiros), apesar dos fatos, dados e análises que vêm demonstrando, nos últimos anos, o evidente fracasso do governo petista e a desmoralização ética do partido e seus principais líderes. Para maioria da população, parte significativa dos que votaram no PT iludidos por estes mitos, estas narrativas fantasiosas estão desmoronando, mas ainda resistem fortemente arraigados em parte da opinião pública, mas não sobrevivem às evidências e aos fatos da história. A fábrica de mitos do PT está na iminência de fechar as portas por falta de suprimento e desmoralização no mercado das ideias.

Os mitos confundem e poluem o debate político, criam fanatismos e comportamentos irracionais que podem levar à violência e, no mínimo, a narrativas irreais que alimentam decisões equivocadas e perigosas. Desfazer mitos políticos é tão importante quanto difícil na medida em que deve enfrentar imagens e narrativas simples e ilusórias ainda pouco permeáveis a fatos reais e argumentos consistentes. Mas, esta crítica dos mitos políticos é uma tarefa fundamental para orientar um debate, para conhecer melhor a realidade e, desta forma, contribuir para interpretação da realidade e para despoluir os debates e os processos decisórios que decidem o presente e o futuro do Brasil.

Primeiro mito

As políticas sociais dos governos do PT, especialmente a distribuição de renda do “Bolsa Família”, promoveram uma drástica redução da pobreza e desconcentração de renda, tirando milhões de brasileiros da condição de miséria. Os governos do PT realizaram a maior redistribuição de renda da história mundial. 

Não se pode negar que, efetivamente, tem havido no Brasil uma redução forte da pobreza e das desigualdades nas últimas décadas, confirmados pelos dados e análises dos especialistas. Na verdade, quase todos os indicadores sociais, incluindo pobreza e desigualdades sociais, vêm melhorando continuamente, desde a década de 80, mesmo sem qualquer política explicita e ainda em momentos de alta inflação e baixo crescimento, quase como um processo inercial. A redução da pobreza ganhou força a partir de 1993 pelo efeito combinado de três fatores: queda da inflação que corroía a renda da população pobre, moderado crescimento da economia a partir de 2004, e mudança demográfica com redução do tamanho médio das famílias.

A primeira grande queda da pobreza e das desigualdades no Brasil ocorreu bem antes do governo do PT, com o plano Real, por conta da redução drástica da inflação, melhoria decorrente, portanto, do comportamento da economia e não de políticas sociais, mesmo que não se possa ignorar iniciativas de formação de uma rede de proteção social pelo governo de Fernando Henrique Cardoso. A taxa de pobreza extrema no Brasil caiu em torno de 4,41% ao ano de 1993 a 2002 (período de maturação do Plano Real) e a desigualdade social também declinou lenta mas continuamente de 1993 a 2002.

No governo Lula, a melhoria dos indicadores sociais, principalmente a redução da pobreza, também tem mais a ver com a economia que com políticas de assistência social como o Bolsa Família. A continuidade da política macroeconômica pelo presidente Lula, operando com um superávit fiscal maior do que no governo anterior, manteve a inflação em patamares baixos e criou as bases para um crescimento econômico médio. Os seis primeiros anos da gestão petista contaram com excepcionais condições externas de acelerado crescimento econômico, fluxo amplo de capital e elevada demanda de commodities.

O crescimento da economia brasileira, nenhum milagre econômico, diga-se de passagem (taxa média anual de 4% de 2002 a 2010), coincidiu com o aprofundamento de importantes mudanças demográficas: baixa elevação da População em Idade Ativa e queda significativa do tamanho médio das famílias.

Desde 1991, a PIA-População em Idade Ativa no Brasil (acima de 15 e a abaixo de 65 anos) vem crescendo a taxas fortemente declinantes: de 2,6% ao ano (de 1991 a 2000), caiu para 1,9% nos cinco anos seguintes (2000/2005) e para apenas 1,2%, de 2005 a 2010. Mesmo considerando que parte desta população apta para o trabalho não busca emprego (cerca de 50% da PIA busca trabalho, ou seja, constitui a PEA-População Economicamente Ativa) é deste segmento etário que emerge a oferta de mão de obra no país. Tamanha redução no ritmo de expansão da PIA explica o aparente mistério de queda do desemprego em um período de crescimento mesmo moderado da economia (4% no mesmo período): a oferta de mão de obra cresce bem menos que a demanda, o que promove também o aumento do salário real do trabalhador. O “exército industrial de reserva” destacado por Marx no século XIX vem declinando de forma acelerada no Brasil, retirando a pressão para baixo que exerce na formação dos salários.

Ao longo do período (1991/2010), enquanto a população apta para o trabalho crescia cada vez menos, a economia melhorava aos poucos o seu desempenho. E como a produtividade do trabalho praticamente estacionou no Brasil, o desemprego caiu e os salários reais cresceram pelo jogo do mercado de trabalho de forma completamente independente de políticas.

A esta alteração na estrutura etária da população do Brasil corresponde uma drástica diminuição da fecundidade (número muito menor de filhos) e, como decorrência, do tamanho médio das famílias brasileiras. Em 1991, as famílias brasileiras tinham, em média, 2,9 filhos (eram 5,3, em 1970), declinando para 2,4 em 2000, e apenas 1,9 filhos, em 2010, o que corresponde a famílias com média de apenas 3,3 membros. Nestas últimas décadas, segundo o demógrafo mineiro José Alberto Magno de Carvalho (matéria da Piauí nº 80), a redução da fecundidade e do tamanho das famílias foi mais acentuada na população pobre, mesmo porque este movimento já tinha ocorrido antes entre os mais ricos. De modo que a renda domiciliar per capita entre os pobres cresceu mais que na média da população, na medida em que o denominador da relação – tamanho da família – despencou ao mesmo tempo em que o salário real também cresceu.

Como resultado destes dois movimentos – aumento do salário real e redução do tamanho das famílias – a renda domiciliar per capita cresceu bastante (maior renda para menos pessoas na família), levando ao declínio da pobreza e das desigualdades de renda. Conclusão: o silencioso processo de mudança demográfica levou à melhoria dos indicadores sociais independente das políticas sociais. O problema é que esta mudança não aparece visível nem é propagada pela máquina de construir mitos dos governos que insiste em dizer que o milagre está no programa Bolsa Família e nas transferências de renda. E como o fenômeno demográfico não é perceptível pela opinião pública, tornou convincente o mito do “milagre” dos governos petistas Tanto é assim que, nestes últimos dois anos, a recessão econômica (estagnação em 2014 e queda de 3,8% do PIB em 2015) jogou no desemprego cerca de 10 milhões de pessoas, o nível médio da renda caiu e a inflação cresceu, corroendo a renda da população.

Segundo mito

O Nordeste foi a região que mais se beneficiou das políticas sociais dos governos do PT, registrando maior crescimento econômico, recebendo mais assistência social que teria promovido a redução da pobreza nordestina. 

O PIB-Produto Interno Bruto do Nordeste vem se mantendo, ao longo das décadas, inclusive nos governos do PT em torno de 13% do PIB nacional (chegou a 13,6% em 2012); e como a população nordestina cresce mais que a média do Brasil, o PIB per capita regional continua representando menos da metade do PIB per capita brasileiro. Evidente que uma mudança de peso nesta posição relativa do Nordeste na economia e no PIB per capita do Brasil demanda muito mais tempo que os 12 anos do governo do PT.

Durante as últimas décadas, incluindo o período dos governos do PT, a pobreza vem caindo no Nordeste acompanhando de perto o declínio no país e em todas as outras macrorregiões. Ocorre, contudo, que apesar do Nordeste ter recebido bem metade dos benefícios do Bolsa Família, até porque tem a metade da população pobre, a pobreza nordestina caiu menos que a média do Brasil e mesmo das outras macrorregiões, excetuando a Região Norte que teve o pior desempenho. Com efeito, de 2004 a 2014, o percentual de famílias pobres no Brasil caiu cerca de 8,7% ao ano mas no Nordeste a redução foi levemente inferior (8,3% ao ano). Quando se compara com outras regiões, o mito do PT desmorona: a redução da pobreza na região Sul foi da ordem de 12,1% ao ano, no Sudeste a queda foi de 10,9% ao ano, e o Centro-oeste registrou um declínio de 14,2% ao ano.

Terceiro mito 

O crescimento econômico brasileiro de 2003 a 2010 foi resultado da política do presidente Lula sem qualquer relação com o que foi implementado no governo anterior e independente do grande boom da economia internacional até 2008. E o Brasil soube lidar bem com a crise internacional iniciada em 2008 graças à política anticíclica de estímulo ao consumo da população e da ampliação do crédito. Entretanto, segundo o mito, as dificuldades econômicas do governo Dilma são totalmente decorrentes da crise externa. 

Para o mito que mostra o PT grande gestor da macroeconomia, a economia externa não teve nenhuma relevância no sucesso econômico de 2004 a 2010, mas passou a ser determinante na crise e no desmantelo da economia brasileira nos anos recentes. Na verdade, o desempenho da economia mundial condicionou decisivamente o crescimento da economia brasileira na primeira década do século como está influenciando a crise brasileira atual, embora a evolução da economia (pra melhor ou pior) tenha sido resultado também das condições endógenas.

O desempenho positivo no governo de Lula só foi possível pela sua decisão correta e corajosa, considerando o discurso expansionista e estatizante dominante no PT, de manutenção da política macroeconômica – superávit fiscal, regime de metas de inflação, e câmbio livre – e das mudanças institucionais realizadas antes – privatização, agências reguladoras, e lei de responsabilidade fiscal – fatores determinantes da estabilidade econômica e da confiança aos agentes econômicos. A manutenção das políticas e a maturação destas ao longo de mais dez anos criaram o ambiente macro e microeconômico interno para aproveitamento das condições excepcionais da economia mundial: alta liquidez, elevada demanda de commodities, termos de troca muito favoráveis ao Brasil e entrada líquida de capital.

Nos dois primeiros anos da crise, o Brasil reagiu bem e não afundou na crise mundial, teve uma pequena queda do PIB em 2009 e uma recuperação forte em 2010 mas iniciou desde 2011 um ciclo de retração que se aguçou em 2014 e 2015. O Brasil conseguiu moderar o impacto da crise global nos primeiros anos graças a dois fatores combinados: os fundamentos macroeconômicos, e a liquidez do sistema bancário e financeiro do Brasil. Este último aspecto – liquidez do sistema bancário e financeiro do Brasil – foi obtido, lá atrás, pelo PROER-Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional (duramente criticado pelo PT no governo de Fernando Henrique Cardoso), fundamental para moderar o impacto da crise externa, considerando que o desequilíbrio mundial teve origem na completa desorganização do sistema financeiro.

Depois de atravessar os primeiros anos da crise mundial com relativa estabilidade e mesmo crescimento, a partir de 2011 a economia brasileira iniciou um processo de deterioração e retração. Precisamente quando começava uma recuperação da economia global, o Brasil afundava; em 2015 a economia brasileira foi uma das poucas com crescimento negativo na lamentável companhia da Venezuela. Embora as condições externas não sejam tão favoráveis quanto na primeira década, o desempenho brasileiro vai na direção contrária da economia mundial. A crise atual da economia brasileira decorre diretamente dos equívocos e voluntarismos da chamada “nova matriz econômica” com expansão do gasto, promoção de mais consumo, descontrole e leniência com o déficit público, manipulação de tarifas e represamento artificial da inflação.

Quarto mito 

O PT e os seus governos são representantes da esquerda e, sendo esquerda é bom, e todos que criticam e se opõem às suas políticas são de direita e, sendo direita são representantes do mal. 

O recorrente discurso “Nós e Eles”, utilizado à exaustão pelas lideranças petistas e seus aliados, carrega um maniqueísmo simplista e autorreferente na medida em que tentam demonizar seus adversários com a divisão dos brasileiros entre os bons e os perversos. Além de tentar diluir as enormes nuances de visão de mundo, interesses e posturas políticas na população brasileira e nos políticos, este discurso mistifica o PT com destaque para o seu líder messiânico. Apresentados como os representantes do bem e da ética, os fatos recentes desmoralizaram o mito do PT que se limita agora a reclamar que não são os únicos corruptos do Brasil.

A diferença esquerda-direita não parece muito pouco apropriada para analisar o espectro político-ideológico do Brasil contemporâneo. Quem é esquerda neste momento no Brasil? Pode ser dito, genericamente que esquerda é a tendência política comprometida com a redução das desigualdades sociais. Além de muito pouco, o conceito deixa de considerar a diferença entre os fins – redução das desigualdades sociais – e os meios, medidas e programas que promovam mudança relevante e consistente na sociedade. A prática dos governos do PT, centrada nas políticas de distribuição de renda, está muito longe de atacar as causas estruturais das desigualdades e da pobreza. Os seus programas, principalmente o “Bolsa Família”, atuam nos efeitos e não nas causas e, desta forma, não garantem a superação da pobreza e das desigualdades.

A desigualdade de renda não é causa e sim a consequência de uma desastrosa disparidade de oportunidades na sociedade. A fonte primária das desigualdades no Brasil reside no abismo que separa a qualidade das escolas públicas, frequentadas pela maioria esmagadora da população, das escolas particulares. Os que não podem frequentar uma escola particular de qualidade estão condenados à vulnerabilidade e deficiência de formação profissional, desenvolvimento dos seus talentos e vocações e da construção de uma vida digna e confortável.

O fundamental da perspectiva de um novo socialismo (nova esquerda) é a eliminação, no longo prazo, das desigualdades de oportunidades na sociedade e não apenas a “redução das desigualdades de renda”. A diferença entre esquerda e o populismo assistencialista do PT reside nos meios para eliminação (e não apenas redução) das desigualdades de oportunidades na sociedade. A sociedade desejada é aquela na qual os cidadãos, desde o nascimento, possam ter acesso igualitário ao desenvolvimento das suas potencialidades, o que significa, em primeira linha, acesso à educação pública igualitária de qualidade. A igualdade de oportunidades não significa igualdade de renda e sim igualdade de condições sociais que permitam explorar suas capacidades para a sua formação como cidadão, o desenvolvimento dos seus talentos e vocações e a construção de uma vida digna e confortável.

Para isso, são necessárias mudanças estruturais e radical orientação dos recursos públicos em larga escala para a redistribuição de ativos sociais que promovam a igualdade de oportunidades: Educação pública de qualidade (ativo conhecimento), Qualificação profissional (ativo tecnológico) e Saneamento básico (ativo sanitário). Distribuição de renda com os pobres, como o “Bolsa Família”, mesmo que possa ser aceitável como pequeno e transitório alívio da pobreza, não promove nenhuma transformação efetiva da realidade social e econômica capaz de eliminar esta condição indigna de milhões de brasileiros. Na verdade, estes programas compensatórios perpetuam a pobreza e as desigualdades sob o mito da generosidade de esquerda que termina contribuindo para o populismo que propaga a figura de Lula como o “pai dos pobres” no velho estilo messiânico.

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