Paulo Gustavo

João Pessoa – Anos 50.

Em saborosa crônica da já remota década de 1980*, nosso já falecido amigo o sociólogo Sebastião Vila Nova registra memorável caso passado entre o governador do Estado da Paraíba, na época João Agripino, e um excêntrico tipo popular de alcunha Mocidade, protegido daquele líder político.

Não se sabe bem por quê, mas o dito Mocidade começou a se exceder mais que o de costume, dando pra falar mal de ninguém menos do que seu maior protetor: o próprio João Agripino. Nas esquinas, nos bares, nas praças, lá estava ele a falar mal do governo sem qualquer pudor ou contenção verbal, subitamente esquecido da mais tenra e elementar gratidão.

Não tardaram a chegar aos ouvidos do governador as “catilinárias do ingrato afilhado”, como diz Mestre Vila Nova. Mais e mais amigos e funcionários vinham dizer ao chefe do Executivo paraibano dos destemperos verbais e das inconveniências de Mocidade. Chateado, mas não enraivecido, o governador, já no limite de sua paciência, resolve chamar a palácio o seu agora impertinente afilhado.

Passa-se uma deliciosa conversa. A certa altura, diz o governador: “E, então, meu amigo, você acha que é certo o que anda fazendo por aí? E onde fica a nossa amizade?”. Mocidade não se dá por achado: “Mas, doutor João, e o senhor não é governo?”. “Sim. E daí?”, rebate Agripino. E Mocidade altivo e conclusivo: “Pois então! Governo é pra sofrer!”.

À parte o bom humor do caso, a loucura de Mocidade acertava na lucidez de se separar a amizade da política, apontando para o ônus (pouco lembrado) de que todo governo é de fato “vidraça” e, como tal, sempre exposto a críticas e cobranças. Mocidade rebelava-se contra a vassalagem e a troca de favores tão frequentes na cena política brasileira.

Como um maravilhoso e razoável louco dos contos de Guimarães Rosa, o excêntrico paraibano transfigurou-se num sábio e conciso analista político, ao lembrar ao governador o que nem sempre lembram os políticos nacionais sobre si mesmos: que a política não é apenas cargo, mas encargo; que não é apenas o bônus do mando, mas o ônus do comando. O dilema de Mocidade é o de sempre: o de estar entre a lealdade e as conveniências, de um lado, e o de expressar rasgadamente a verdade, por outro. Sua inesperada rebeldia surge como um raio da razão adormecida e vence o duelo titânico que provavelmente recalcava dentro de si.

De nossa parte, só podemos fazer eco a Mocidade. É inerente aos políticos o “sofrimento” da crítica e o contraponto do contraditório. É uma platitude de todos conhecida o se dizer que os políticos, sobretudo os mais poderosos, se cercam de áulicos que apenas lhes dizem coisas agradáveis de serem ouvidas. Daí a não menos conhecida “solidão do poder”, tão distante do poder da solidão. É de acacianamente se dizer que quanto mais autoritários, menos inclinados são os políticos a ouvirem vozes dissonantes. Não importa, a democracia reclama que as críticas sejam protagonistas do discurso e que o próprio discurso englobe uma pluralidade de vozes e de conflitos. Como disse há dias o ministro Luís Roberto Barroso, “O Brasil não aceitará regime autoritário e não democrático”.

Enfim, a democracia tem suas dores, e as dores, como diria Machado de Assis, também têm suas volúpias. Melhor do que muita gente douta por aí, o nosso exato Mocidade, tão convivente das ruas e das praças, sabia muito bem que os governos e governantes precisam, sim, sofrer para que, por outro lado, os governados possam diminuir suas próprias dores.

Paulo Gustavo

*A crônica se encontra no livro A volta do cigano, por nós organizado e publicado pela Editora Massangana, da Fundação Joaquim Nabuco, em 2017.