Entardecer em Lublin

Fernando Dourado

Cmentarz Zydowski.

Márcia Diamond me perguntou ao telefone que cara tem a cidade de Lublin. Normalmente desinteressada por tudo o mais que não seja o universo lúdico de seus cães de estimação, por uma vez me surpreendi com a curiosidade dela por essas bandas do mundo. Isso se explica porque parte da família Diamond, a paterna, e também dos Eisner, a linhagem materna, veio dos distritos dessa simpática cidade do oeste da Polônia. Mais precisamente de Jakubowice, Murowane, Zamosc e Wrotków – nomes de lugares que ela passou por e-mail tão logo soube que eu estava aqui. Disse em tom de lamento que já tivera tanta oportunidade de visitar essas paragens, mas alguma coisa a impedira ano após ano. Acho que lhe entendo as razões. Nessas ocasiões, sempre digo que é uma pena. Sei que não se apagam os rastros da miséria humana só com paisagens. E tampouco a natureza tem o poder cicatrizante que lhe atribuem. Pelo contrário, acho que ela desnuda mais do que agasalha. Mesmo quando até as pedras falam iídiche.

O que dizer, então, sobre Lublin à senhorita Diamond? Ora, o entardecer no leste da Europa, especialmente nas meias estações, traz algum elemento dramático nas cores que pinta no céu. A tarde de hoje estava fria, daí tão agradável. O ar estava cheio de pólen e reinava primavera nos muros fortificados da Cidade Velha. Foi quando fiz uma longa caminhada até a estação de ônibus, entrei em duas galerias de arte e, achando que já dera minha cota de homenagens aos movimentos do corpo, jantei cedo no excelente Zapraszamy, pertinho do hotel, em pleno bulício da rua Bramowa. Em nenhuma parte do Brasil, aliás, tomaria uma sopa de tomate semelhante. Do resto do cardápio, falarei outra hora. Fato é que quando saí do restaurante, o céu estava transformado. Na falta de saber fotografar – trata-se de uma resistência antiga, parte do pacote da fobia à tecnologia -, sentei num banco de praça e acompanhei a transformação lenta no horizonte, no fundo de árvores ainda desfolhadas, com vestígios de ninhos de cegonha na ramagem.

Como pode um homem de meia-idade se comprazer tanto na companhia de si mesmo? O que foi que lhe aconteceu à vida a ponto de viver como se os semelhantes fossem vagos pontos de referência num mar que se revolve, e em que ele vive segundo suas próprias leis e caprichos? O céu tinha, pois, uma imensa tarja vermelha e vários matizes de rosa até chegar ao que restou da faixa azul. Jatos em altitude de cruzeiro riscavam o firmamento acetinado, desenhando losangos imperfeitos, mas lógicos. Por certo voavam de Varsóvia para Kiev; de Odessa até Berlim. São tantas as rotas. Cá embaixo, a natureza em festa me fez lembrar que amanhã tem início a Páscoa judaica. Por um momento, tentei imaginar Lublin há um século em dia semelhante. Imaginei as casinhas de madeira areadas e depuradas de qualquer vestígio de trigo. Fechei os olhos e vi os trajes novos prontos para o primeiro seder e as emanações deliciosas da cozinha em preparativos para a festa que muitos consideram a mais nobre do calendário judaico. E eu, o que farei amanhã? Acho que já sei.

Pessach

Não sei mais a essa altura da vida o que atribuir ao acaso depois do tanto que vivi. É difícil, quase ingênuo, acreditar em coincidências fortuitas. Digo isso porque há décadas o nome luminoso da cidade de Lublin ressoa como uma referência simpática em meu imaginário. Talvez por conta do conto O mágico de Lublin, de Isaac Singer. Nele, o grande escritor fala de um homem chamado Yasha Mazur que passava a maior do tempo em viagem, se apresentando em várias cidades entre a Galícia e a Lituânia. Como toda alma errante, ele tinha enorme prazer em voltar para casa e reencontrar a mulher. Ao chegar, mandava alimentar os cavalos Vento e Poeira e ele próprio ficava dois dias na cama, conversando com o papagaio Yakutiel, como forma de se recuperar da longa jornada. Não tardaria muito a voltar à estrada. Como esse sentimento sempre me foi familiar, eu adorava a história, a riqueza do personagem e, indiretamente, o lugar que não conhecia. Pois eis que calhou de estar aqui na noite do primeiro seder de Pessach, sob céu ainda claro e a temperatura do paraíso.

Deambulando pelo centro velho, deparei com o Mandragora, um restaurante de culinária judaica e que meu faro detectou como para lá de razoável. Conversa vai, conversa vem, o jovem gerente afirmou que a casa estava cheia para a noite em função da data, mas que eu seria bem-vindo outro dia. Ah, como essa juventude acha que as palavras conseguem tudo. Eu só precisei dizer que estava ali precisamente por causa da celebração. Ele percebeu que não me dissuadiria facilmente. Foi assim que sentei no meio de dois casais e, às sete e trinta, teve início o serviço. Do ponto de vista gastronômico, nenhum reparo. Do caldo ao cordeiro, passando pelos bolinhos de peixe, ditos gefilte fish, tudo estava impecável. O mais interessante, contudo, é que éramos umas quarenta pessoas no recinto e o restaurante convidou uma professora de Varsóvia que, em polonês autoritário, explicava as etapas da cerimônia à audiência, cada comensal com uma Hagadá ilustrada de criança em mãos. As pessoas se deliciaram entoando Belaila Haze Dayenu. Discretamente, como convém aos começos, mas com crescente entusiasmo.

Passada uma hora do início, a tal mulher foi para uma pianola. Um homem corpulento que mais parecia o maestro Daniel Barenboim quando jovem, e uma mulher com os ares da Yaffa Yarconi dos anos 1970, empunharam o microfone e, então, começou uma verdadeira festa. Isso com música klezmer, num iídiche divertido e simplesmente delicioso para quem fala alemão, capaz de entender quase tudo. Foi então que muitos dos presentes, para minha surpresa, começaram a cantar juntos palavra por palavra. Ou seja, eram judeus em alguma medida que ali resgatavam a memória afetiva. Ele ou ela. Em raros casos, ambos. E apesar de meio principiantes com a cerimônia, o iídiche lhes era zona de afeto. Uma ou outra mulher sacou um lenço e enxugou as lágrimas. Então me senti totalmente em casa. Onde já se viu uma festa judaica sem que as damas chorem? Pouco importou ao grupo que um americano de quipá em crochê tenha se retirado indignado. Já passava das onze horas quando caminhei para o hotel. Sentimentos se misturavam e uma polaca me abordou no calçadão para ver um strip-tease. Agradeci. Ora, minha alma estava devidamente nua.

A fonteira leste

Passei os últimos dois dias zanzando pela região de Lublin. Primeiro, fui ao campo de concentração de Majdanek e, mais uma vez, me deixei envolver pela atmosfera pesada. Nunca visitei um desses lugares sem que o dia estivesse usualmente frio, nublado, chuvoso, quando não atapetado de uma neve que ali fica lúgubre e nada romântica. Nessa região, por menos que se queira, é quase inevitável deparar com eles. Sendo que o aludido é dentro da cidade de Lublin, praticamente. Tal como Dachau está para Munique. Já Belzec, Sobibor e Treblinka bordejam a fronteira rumo ao norte. Bem mais agradável foi conhecer Bilgorai e Zamoscz. A primeira, visitei mais por razões afetivas. Já a segunda tem um conjunto arquitetônico considerado modelo na Polônia. Francamente, perde de longe para Gdansk ou para a Cracóvia. Ademais, a pracinha central estava sediando um encontro de motociclistas – tribo que, para minha compreensão binária, parece infantil. Não me demorei muito. Mesmo porque, no dia seguinte, tomaria uma lotação para Bialystock, palco importante da Segunda Guerra e de outras referências.

Uma vez na estrada, sobreveio o sentimento que me assalta sempre que viajo pela Polônia, da fronteira com a Eslováquia para cima, rumo aos estados bálticos. Como tudo aqui é plano. Mais parece que estamos na Bélgica. Que país propício para uma invasão. Quanta dificuldade teria um pistoleiro de emboscar um alvo, penso eu. Isso porque, a muitos quilômetros de distância, já se vislumbra a aproximação de alguém. Ou de qualquer coisa que se eleve a dois metros do solo cultivado. Não se vê gado, praticamente. Mas são muitos os arados puxados a trator, seguidos de uma nuvem de pássaros brancos a bicar as sementes. Atravessamos cidades pequenas. A lotação faz um trajeto longo para deixar um passageiro e pegar outro que se habilitou por telefone. Mas não me queixei, não tinha pressa de chegar. A cada quilômetro, um pequeno oratório na intenção de algum morto naquele ponto. De vez em quando, deparamos com imensos cemitérios. Alguns têm uma ala de honra para militares. Todos, invariavelmente, têm muros baixos e uma criança de cinco anos poderia perfeitamente pulá-los. Os túmulos têm flores, mas muitas são artificiais. À noite, uma infinidade de velas votivas cintilam.

Nessas horas, o que menos me preocupa é chegar. A estrada se torna um fim em si própria. Tempo desses, li que numa floresta próxima daqui, mais precisamente em Bielski, um caçador saiu à procura de um bom javali. Então encontrou um capacete antigo, provavelmente do tempo da Guerra. Pegou-o, excitado, e viu que ele estava furado a bala na altura de têmpora. Então, tomado de um medo reverente, colocou-o no mesmo lugar onde o achara e seguiu caminho. O corpo todo tremia. São essas as divagações que ocorrem enquanto a paisagem desfila pela janela da lotação. Em dado momento me pergunto: o que faço aqui? Não teria obrigações práticas mais prementes? O que fariam os homens de responsabilidade numa hora dessas? Não deveriam estar preocupados em colocar pão na mesa e ganhar algum dinheiro para garantir uma velhice menos melancólica? Com que direito me dou ao desfrute de passar um dia sacudindo pelas estradas da Polônia, às voltas com reminiscências vagas e dissociadas da vida prática? Não sei, mas comigo a escrita não poderia ser muito diferente. A vida é a ficção que nos convém criar. Basta acreditar e embarcar.

No cemitério judaico de Lodz

A vida é cheia de ironias. Tem vezes que achamos estar desempenhando uma grande missão, quase transcendente. Findas as contas, vemos que ela não teve impacto efetivo na existência de ninguém, sequer nas nossas. Outras vezes, uma pequena ação fortuita e despretensiosa, quase fadada ao fracasso, resulta num bem significativo para alguns. Daí você se surpreende que tanto estivesse em jogo pelo que parecia ser tão pouco. Mas é melhor irmos aos fatos sem as costumeiras delongas. Sabendo que eu estava em Lodz, na Polônia, uma amiga disse que a família dos avós vinha dessa grande cidade industrial onde tivera uma fábrica de chapéu. A bem da verdade, excetuados os que emigraram a tempo, os demais morreram em Auschwitz e outros campos. Havia, no entanto, o bisavô que falecera alguns anos antes da eclosão das perseguições aos judeus. Era possível que ele repousasse no cemitério judaico da cidade. Como é do feitio dela, não estava pedindo nada, mas para mim estava dada a senha.

Ora, o Cmentarz Zydowski é imenso. Diante da chuva forte que se armava, saltei do bonde elétrico e entrei num táxi providencial. Pilotado por uma moça ruiva e graciosa, me dei por felizardo por ela falar um inglês bastante bom e espontâneo. Disse que estudava psicologia na universidade, complementava o orçamento ao volante e já estivera no cemitério para fazer um trabalho de escola. Quando chegamos, propus que ficasse comigo. Faríamos um acerto generoso no final. Ela topou. Paguei as taxas de entrada e encomendei uma pesquisa. Será que eles tinham alguma reminiscência daquele homem que falecera aos 58 anos, minha idade atual? Passados dez minutos em que remexeram em plantas riscadas a lápis sobre imensas folhas de papel de seda, acharam o túmulo. Pedi então que fossemos até lá, mas o zelador apontou o céu nublado de onde caía a primeira grande chuva da primavera. Ora, para os chineses chuva é prenúncio de boas novas. Coloquei-lhe o braço no ombro e disse que precisávamos ir. Nada como ter na veia um pouco do autoritarismo dos que não dão escolha nem alternativa.

Foi então que nossa pequena comitiva de três – a jovem Asia veio como intérprete – chegou a uma das últimas seções, nas cercanias do muro. Apontando uma pedra tumular totalmente encardida pelo tempo, ele disse: é aqui, pan. Tirando do bolso uma folha áspera que servia de lixa, junto com uma pequena espátula, ele começou a raspar a espessa camada de limo que, com a chuva, ia ficando lodosa. De repente, apareceu o nome do bisavô de minha amiga em nítidas e graúdas letras hebraicas. Como rara vez tirei uma fotografia na vida que não fosse a pedidos, senti a força do momento e, desta feita, pedi a Asia que imortalizasse a pedra tumular. Depois, a mandaríamos por e-mail a quem de direito. Pedi ao rapaz, contudo, que fizesse o trabalho de limpeza até o fim, já que estávamos ensopados e as madeixas ruivas de Asia gotejavam. Mal sabia o Sr. K, ali enterrado, que muitos de seus descendentes são pessoas que, como gostam de dizer os judeus, “fizeram a diferença” no remoto Brasil.

Findo o serviço, coloquei duas pedras sobre a pequena lápide, dobrei a gorjeta regimental e ainda parei na sinagoga que fica próxima à casinhola de madeira onde ficava lotada a administração. Pedi à taxista que despachasse dali mesmo o e-mail. É claro que o cemitério tem forte carga emocional com suas alamedas largas e desoladas. Dá margem a todo tipo de pensamento e devaneio. A administradora falou que fora poupado de estragos maiores pelos nazistas. Alguns túmulos passaram por restauro recente, mas ainda havia muito a ser feito. Chegando ao hotel, já havia uma mensagem de minha amiga. O trecho que mais me marcou dizia: “É um passado que se torna mais real, mais palpável. De tantos que ficaram misturados às cinzas daqueles crematórios, é bem impactante dar de cara com este bisavô que teve a sorte de não ter vivido aquele inferno“. Foi só nessa hora que entendi que cumprira o propósito do dia. E diante da singeleza do depoimento dela, me subiu um nó na garganta que, estando sozinho, não precisei reprimir. Por pouco não cumprira uma missão que só a mim competia. E que ela achara difícil formular. Mal consegui dormir à noite.