Fernando Dourado

Sérgio C. Buarque, Fernando Dourado e Clemente Rosas.

Sérgio C. Buarque, Fernando Dourado e Clemente Rosas.

O mundo contemporâneo é cheio de estímulos. Que ninguém se iluda, já não somos donos da moldura em que se esvai o tempo nosso de cada dia. No mais das vezes, o caráter líquido da vida nos empurra de ralo adentro. Daí termos a sensação de estar a bordo de um caminhão cujos freios estão no limite da vida útil. Assim, dada a razão de descida, só nos resta atentar para não subir calçadas nem atropelar os passantes. Mas certo mesmo é que trafegamos sem ao menos vê-los nem lhes distinguir as feições. Sintomaticamente, é como se fossemos balizados por uma TL dos moldes do Facebook, ou seja, por uma raia única. Quanto aos passantes referidos, eles, a seu turno, permanecem indiferentes à sorte do veículo aterrador. Se colidir, ora, que se internem – ou enterrem – os passageiros e tudo seguirá como dantes.

Onde fica o espaço para a reflexão? Não fica. Numa hipótese boa, o sujeito sai da cama e ainda descola uma hora de caminhada no parque da Jaqueira ou no Ibirapuera, segundo o domicílio. Invariavelmente, enquanto faz um cafezinho de máquina para despertar de vez, já ouviu um mínimo de noticiário, verificou as ocorrências lavradas em redes sociais, teclou respostas anódinas para distribuir afagos e, enquanto caminhava, meditabundo, passou cabisbaixo por dois ou três conhecidos que mal cumprimentou pela boa razão de que precisava tomar uma posição sobre pautas políticas e organizar a cabeça à luz das manchetes matinais.

Chegando em casa, banhado de suor, é hora de uma chuveirada, da postagem de uma posição e de atender as demandas triviais da vida prática. Não há sequer como escapar porque um telefone dito inteligente – para quem? – lhe fará as vezes de secretária e confidente, e a toda hora o dirigirá para o cumprimento de uma agenda de que ele próprio o encarregou. A horizontalidade das experiências anestesia a um ponto tal que achamos ter feito alguma coisa ao recostar a cabeça no travesseiro, tomar os remédios e trocar rara palavra com quem dorme ao lado, geralmente em estado também cataléptico.

E assim se passam os dias, as semanas e os anos. Pausa mesmo só em raras férias, que dificilmente sobrevivem aos imperativos do ramerrão acima descrito, e, é claro, quando temos que velar um amigo de geração que jaz no centro de uma salinha mal iluminada, com tufos de algodão dentro das narinas e um ar de quem, apesar do vigor ostentado na semana anterior, parece mesmo que já não pertencia a esse mundo há bom tempo. Sequer o desaparecimento de grandes ícones da televisão, de cuja companhia privamos de soslaio durante certo tempo, não mais é pranteado como foram Chico Alves, Gardel ou o velho Getúlio. Morrer nunca foi negócio tão ingrato porque o encurtamento do luto é inexorável e a marcha da vida segue célere.

Mas um dia você depara com a possibilidade de colaborar com uma revista como Será?, e alguma coisa muda nesse diapasão. Foi um pouco isso o que aconteceu comigo. Colhido na Dinamarca pela brutalidade dos crimes perpetrados na redação do Charlie Hebdo, em Paris, me animei a esboçar uma reflexão mais prolongada sobre o episódio. Ora, como já vinha flertando com a revista eletrônica há algum tempo, achei que ela poderia ser o veículo certo para vocalizar a pensata. Sem grande exposição ao mundo digital, me empolguei com a acolhida que recebi da redação e, conquanto vivêssemos as desventuras da política e suas injunções econômicas, algo me disse que teríamos todos algo a ganhar se eu me tornasse um colaborador da publicação longeva, editada com visível carinho. De minha parte, a tarefa de estruturar o tempo fugiria do rama-rame diário e, a cada duas semanas, eu me obrigaria a correr numa raia própria.

Assim sendo, a despeito da necessidade de ser mais contido e menos caudaloso em meus textos, Será? me deu inusitada oportunidade de incursionar pelo memorialismo, reminiscências, contos curtos e quaisquer outras formas que me aprouvessem de contar uma história. A interação até então inédita com o público leitor, quase em tempo real, me motivou a dar o que tivesse de melhor nesses diferentes formatos. E assim cheguei a mais de cinquenta textos num período de 20 meses, um feito e tanto para quem só escrevia crônicas para jornais e uma ou outra reflexão para a revista Amanhã, do Rio Grande do Sul, da qual sou o decano dos articulistas.

Foi nesse contexto que, não faz muito tempo, me ocorreu a ideia de separar parte do que escrevera para Será? e lhe dar formato de livro. E, se fosse para publicá-lo, que o fizesse pelos bons ofícios de uma editora que oferecesse uma perspectiva – mínima que fosse – de me lançar em novas plataformas digitais e, eventualmente, traduzir o trabalho para outras línguas.

Então, apareceu a Chiado, a quem apresentei onze histórias que adaptei ao que me parecia ser o formato mais adequado. A entrelaçá-las, um estranho fio condutor: as almas errantes que desconhecem as fronteiras e se perguntam diuturnamente a que mundo, afinal, pertencem. Pessoas atormentadas que, como eu, partiram cedo para a descoberta de plagas distantes e cuja sede jamais foi saciada, se é que será um dia.

É dispensável dizer que muitos colaboradores de Será? teriam mais estofo do que eu para reunir um acervo e publicá-lo em forma de livro. Já nem cito nomes porque incorreria fatalmente em injustiças. Pois bem, o caminho está aberto mais do que nunca com meu modesto precedente. “Nos passos de Fiszel Czeresnia e outras estórias” é um produto genuinamente calcado nessas contribuições quinzenais que, sendo vez por outra heterodoxas, sempre receberam acolhida cúmplice e generosa do conselho editorial.

O resultado está aqui e atesta que um pouco de ousadia não faz mal a ninguém. Agradecer a Será? é, portanto, redundante já que o faço à minha maneira desde a publicação do primeiro ensaio. Espero, assim, que a este livro se sigam outros e que continuemos a desfraldar a bandeira de pluralismo, tolerância e diversidade temática que integra o estatuto de nosso agradável convívio.

Um obrigado muito especial a Teresa Sales, Sérgio Buarque, João Rego e Clemente Rosas. Foi graças à palavra amiga de cada um que ontem, 06 de outubro, esgotamos os 150 exemplares que a Livraria Cultura previra vender no lançamento do Recife. Que os próximos já programados – Paris, Lisboa e o Porto – conheçam o mesmo sucesso. Ele será o de todos nós.