Sérgio C. Buarque

A Rosa, símbolo da Social Democracia.

Nos últimos duzentos anos, o pensamento político esteve dividido em duas grandes correntes antagônicas que, com diferentes nuances, comandaram o mundo e induziram diversos experimentos políticos e sociais com alguns sucessos e dramáticos fracassos: o socialismo e o liberalismo. De forma simplificada, é possível dizer que estas correntes se diferenciavam em dois aspectos dicotômicos: direitos individuais versus direitos sociais; e mercado versus estado. Enquanto o liberalismo combinava os direitos e liberdades civís com o livre funcionamento do mercado, o socialismo defendia a atuação dominante do estado (no controle ou anulação do mercado) e os interesses coletivos (acima dos direitos individuais). No fundamental, a diferença entre liberalismo e socialismo se manifestaria também na ênfase dada à liberdade ou à igualdade, à escolha entre a competitividade econômica e a equidade social.

Parecia existir um incontornável trade off entre as duas grandes correntes de pensamento, seus princípios e seus objetivos, que obrigava a uma escolha entre liberdade e equidade ou entre mercado e Estado. O liberalismo partiria do princípio que, assegurada a liberdade dos cidadãos, caberia a cada um deles construir sua posição na sociedade. Desconsiderava que as próprias relações sociais desiguais, herdadas da riqueza e propriedade acumuladas, perpetuariam desigualdades nos próprios espaços de liberdade. A desigualdade se manifestando também na própria liberdade individual, sendo alguns mais livres que outros. No outro extremo, o socialismo poderia tolerar e aceitar restrições às liberdades e aos direitos individuais, para dizer o mínimo, desde que considerasse necessárias para promover a prometida igualdade social. Sacrificaria, assim, o direito igualitário à liberdade em nome da igualdade social que deveria ser construída de fora das relações sociais dominantes e para além das desigualdades da propriedade.

Do confronto político e ideológico dos dois polos antagónicos, construiu-se, ao longo da história, uma síntese que, além de negar a dicotomia, é melhor que cada um dos polos (tese e antítese): a social-democracia. Da combinação, resultou um sistema que, combinando elementos dos dois, não é mais nem socialismo nem liberalismo. A social-democracia se equilibra e combina os objetivos do socialismo e os valores e princípios do liberalismo, incorporando aspectos relevantes de cada um dos modelos e organizando doses significativas de liberdade e de igualdade, de mercado e de Estado, de competitividade e de equidade. Desde o pós-guerra, este tem sido o experimento social e político mais avançando, combinando a democracia política com um Estado provedor e regulador. Com diferentes combinações e ênfases, a social-democracia associou o liberalismo político – com a implantação e o fortalecimento das instituições democráticas e dos direitos civís – à atuação do Estado no provimento dos serviços públicos de qualidade de forma equitativa na sociedade e na regulação do funcionamento do mercado, orientando para a eficiência e a produtividade econômica.

Como toda construção social, a social-democracia é um sistema dinâmico e historicamente determinado e, portanto, em permanente mudança que decorre das suas próprias contradições internas – tensões entre liberdade e igualdade – e de transformações globais que impactam sobre a sua organização econômica, social e política. Ao longo das décadas, a social-democracia enfrentou dificuldades, conflitos e instabilidades que geraram mudanças e reacomodações, sem, contudo, comprometer os alicerces do Estado provedor e regulador e das liberdades e direitos civís. Mas é precisamente a complexidade do sistema econômico-social com instituições e cultura democráticas que conferem à social-democracia uma enorme capacidade de adaptação e renovação diante das contradições e conflitos internos e pressões externas. Ao contrário dos regimes fechados e inflexíveis, a social-democracia tem caracteristicas de adaptabilidade que permitem mudar e se reconstruir, capaccidade de mudança e renovação. Não apenas sobrevive nas adversidades, pode crescer mudando e se recriando com os desafios e as dificuldades.

O fantasma que assombra a social-democracia da Europa no momento é uma onda neopopulista – xenófoba, nacionalista e anti-européia – que cresce em vários países do continente, explorando a insegurança da população com o desemprego dos jovens, a pressão migratória e o terrorismo. O populismo isolacionista do governo Trump tende a animar estas retrógradas correntes politicas européias. Mas o descontentamento e a crítica generalizadas às suas medidas estapufúrdias e irresponsáveis pode ter o efeito inverso: alertar os europeus para os  riscos e ameaças das aventuras neopopulistas. De qualquer forma, pelo que reflete de inquietação e insatisfação na sociedade, este fantasma deve provocar mudanças na social-democracia europeia. Difícil imaginar, contudo, que os europeus abandonem os fundamentos do mais bem sucedido modelo de sociedade contemporâno que combina valores do liberalismo – democracia, liberdade e direitos civis – com a presença ativa do Estado como provedor de bens e serviços públicos que promove a igualdade de oportunidades.