Fernando Dourado

Rebeldia na terceira idade.

I – Adalberto

 

O velho desembargador primeiro apostou que o filho adotivo pudesse entrar numa dessas faculdades de Direito que se contam às dezenas e, aos trancos e barrancos, arrancar uma graduação. Se, mais adiante, o exame da Ordem dos Advogados constituiria um obstáculo maior para o trôpego bacharel – intransponível quase, dadas as evidências atuais -, alguns fatores poderiam reverter essa verdade. Primeiro, havia a possibilidade de que o jovem Adalberto tomasse gosto pelo curso e, digamos, se reinventasse à luz do saber. Em segundo lugar, o desembargador sempre poderia lhe conseguir um bom estágio e daí, bem, competiria ao filho mostrar a que viera. Mas, na verdade, nada disso aconteceu. Pois Adalberto era um rapaz inseguro e indolente e, havia de se admitir, tinha uma efetiva dificuldade de assimilar o que lia. Analfabeto funcional ou não, certo é que fora criado com carinho e até fizera cruzeiros em família pela costa brasileira, velha paixão dos pais, onde, infelizmente, entregava à sanha das máquinas caça-níquel o dinheirinho que o genitor lhe dava para os extras. Mas não seria da faculdade que Adalberto conseguiria meios de sobreviver, isso estava claro. Cabisbaixo, ensimesmado, estrábico, levemente obeso, mais para baixo do que alto e sem vestígio de carnes onde o comum dos mortais tem nádegas, Adalberto não se daria por vencido até apresentar aos pais um verdadeiro projeto de redenção. Tinha instinto de sobrevivência bastante desenvolvido para saber que essa era a última chance. A outra, só no testamento do magistrado. “E nesse páreo tem muito candidato”, disse para si mesmo, revirando os olhos verdes e pensando na outra família do homem honrado.

 

II – Gelta

 

Baixinha, olhos pretos cintilantes e cabelos curtos, ela era o dinamismo em pessoa. Sua melhor amiga, a aristocrática Fanny, costumava dizer que Gelta era uma connector, nomenclatura consagrada na literatura de negócios americana para designar aqueles que juntam as pontas e fazem as coisas acontecerem, não importa o grau de dificuldade. Na primavera fresca que vinha transformando São Paulo numa cidade quase agradável para quem tinha os meios de viver com um mínimo de conforto, Gelta disparava mensagens eletrônicas para as amigas que vinha cultivando obstinadamente, desde que se separara de Jaime. Não sossegaria até arregimentar doze delas para ver a Filarmônica de Viena na sua sala de concertos favorita, bem ali na região da Luz, na quinta-feira seguinte. Pena que algumas delas não resistiam a deixar o bate-papo para depois e, durante a convocação, já se enredavam em relatos lacrimosos sobre noras e netos. “Aguente firme, amiga, todas nós estamos no mesmo barco. Vamos conversar sobre isso depois do concerto. Posso dar seu nome como confirmado, então? Ótimo, os dados da conta estão no in-box que te passei. Deposite hoje ainda, se puder. Mas não deixe passar de amanhã, pois a Ruth está torcendo para que haja uma desistência embora o grupo prefira você. Aliás, viu que mudei o restaurante, não foi? Mirta achou o “La Casserole” deprimente, lembra o ex. Então falei com o Charlô que nos fará um menu a preço fixo caprichado. Conto contigo, hein? E sorria, assim você fica ainda mais linda”. Mal terminou de falar com Teresa, já ligou para Ruth, a ruivinha de Pinheiros, recém adotada pelas amigas: “Ru, consegui um lugar para você, minha linda”. Menos mal que aprendera algo no turismo. Melhor ter overbooking do que assentos vazios. E depois, se a lotação apertasse, o motorista daria um jeito.

 

III – Dora

 

“Eu sei, filha, eu sei. Mas saiba também que música clássica é uma coisa tediosa para sua mãe. Pouca gente ousa admitir, mas eu já passei da idade de esconder minhas reservas. Mil vezes um show de Chico Buarque, sinceramente. Mas esse aí não vai mais ter cara de se apresentar em meu tempo de vida. No fundo, eu até gostava dele, viu? Nesses tais concertos clássicos, passada a excitação da abertura, logo fico sonolenta e depois, durante o jantar, ainda tenho que encarar os comentários eruditos da Sylvia. Talvez seja isso o que mais me torture. Esse preciosismo de saber se o maestro estava num dia bom ou não, francamente. Dessa vez, pelo menos, nossa organizadora – a formiga atômica, como a chama a maluca da Clara Klug – dobrou o Charlô e o jantar será aqui, bem ao lado de casa. Portanto, se a barra pesar e a conversa começar a gravitar em torno de divórcio, invalidez, arrependimento e viuvez, alego uma boa enxaqueca e caio fora. É um trabalho a menos para o motorista que, coitado, não deve entender nada do que ouve. Aliás, justiça seja feita, a Gelta até que tem suas sacadas, viu. Dia desses eu disse à Hilda que se desse por muito feliz por tê-la organizando tudo. Se ela leva uns benefícios aqui e acolá, pouco importa. Quem é nesse país que não comete seus pequenos delitos no dia a dia? E depois, o que ela pode ter de grande vantagem? Uma mixaria, ora. No máximo, uns ingressos da Sociedade, uma cortesia num restaurante onde leve o grupo, uma mãozinha do motorista para pegar um neto numa festa. Importante para ela é ficar bem na fita com a Fanny. Esta sim, é poderosa. Vou te deixar agora, meu bem. Não, discordo de você, não vejo nada de mal em ficar em casa, mas estou no programa, filhota. Só te disse que estava em dúvida porque de fato estava. Aliás, nem conheço esse tal de Mahler, mas vou verificar no Google. Beijo, então. E outro bem especial na minha netinha amada”.

 

IV – A van

 

Em favor de Adalberto, se podia dizer que quase não ingeria bebida alcoólica e que tinha o polimento de quem vivera em bons endereços. Se era meio desengonçado, nada havia que o asseio e um bom blazer não resolvessem. Naufragada a experiência universitária, foi curto e sério: pediu ao desembargador que lhe comprasse um táxi e a licença respectiva. Pois bem, guiou-o a ritmo irregular durante dois anos e o fracasso não surpreendeu o patrocinador. “Agora é com você, meu filho”. Na verdade, as muitas multas e as corridas gratuitas que fazia para ganhar a simpatia de oportunistas logo apontaram para novas limitações. A principal delas era que não sabia dizer “não”. O resultado objetivo foi que terminou tendo que vender o carro para pagar dívidas contraídas com agiotas brutais. Desempregado, passou longo período deprimido, usando óculos de sol à noite. Foi Dona Olívia, bondosa senhora de Sertãozinho – a mãe que o tirara do orfanato – quem leu no jornal que uma empresa estava recrutando motoristas com habilitação profissional para atender públicos seletos. Essa nomenclatura incluía a chamada terceira idade, mas também grupos de adultos que se cotizavam para se deslocar de van para churrascos de família e programas de entretenimento em São Paulo e arredores. Era um serviço que demandava compostura e paciência. Em tempos de Uber, era uma oportunidade boa dentro do ramo, e Adalberto prometeu à mãe que não a decepcionaria. “Seu pai está ficando velho, meu filho. Pense no seu futuro. Depois, você sabe, não estamos sós”, comentou sem rancor, aludindo veladamente à outra família do marido. Foi assim que se apresentou a um asiático de nome Lee que o entrevistou com poucas palavras e fina observação. Lee tinha uma pequena frota e excelente clientela. Serviço é o que não faltaria. “Mas se você pisar na bola, é só uma vez”.

 

V – O escolhido

 

Aparentemente estabilizado no emprego e cuidadoso para não incorrer nas bobagens dos tempos de taxista autônomo, Adalberto recebeu do patrão – que por fim descobrira ser coreano, e não chinês –  a incumbência de levar mais uma vez algumas senhoras à Sala São Paulo para um concerto. Lee não sabia bem a razão, mas o fato é que Adalberto agradara à líder das mulheres – a tal que gostava de tratá-lo por mister – a ponto de ter sido bastante enfática ao reservar a van e indicar o motorista: “Ele já conhece onde moramos, Mr.Lee, e se comportou muito bem das duas vezes que nos acompanhou”. Adalberto, é óbvio, preferia dirigir para o pessoal do mundo artístico, especialmente o universo sertanejo. Mais do que tudo, para as comitivas que acorriam à cidade para ver a Fórmula 1. Não lhe desagradava de todo sequer o pessoal que vinha à Parada Gay, apesar de ser com ele que mais tinha dificuldade de coordenação, já que os integrantes nem sempre se apresentavam no ponto de encontro à hora marcada. Beber muito, todos bebiam. Salvo por ocasião de enterros – e nem todos – sempre que se alugava uma van, era quase inevitável que as pessoas estivessem ligeiramente calibradas. Mas aquele grupo de mulheres perfumadas não era dos piores. Moradoras da região dos Jardins, Pinheiros e Higienópolis, na maioria dos casos, Adalberto sabia que a pontualidade era de rigor e que havia que tratar muito bem a tal da Dona Gelta que, por sua vez, parecia exercer um estranho poder sobre ele. Num tom maternal, mais parecia que sabia alguma coisa a respeito de seu passado quando lhe disse do nada: “Errar todos nós erramos, Adalberto. Mas saiba que no que depender de mim, vou encher sua bola junto a Mr. Lee, viu? Tudo correndo bem, você terá sempre minha preferência”. “É uma honra, dona Gelta. Muito obrigado, pode contar comigo”, respondeu assustado.

 

VI – A primeira leva

 

Às seis da tarde em ponto, Adalberto esperava Gelta no térreo do edifício da rua Baronesa de Itu, um imóvel antigo, perto da pizzaria. Embora a logística mais sensata ditasse que ela poderia ser das últimas a embarcar, senão a última – privilégio acordado à amiga Fanny  -, certo é que a empedernida baixinha queria estar no comando dos trabalhos desde o começo, pouco importando que dali ainda tivesse que ir ao Itaim para, só de lá, começar o longo trajeto que culminaria na Sala São Paulo. De olho no telefone, ela se acomodou ao lado dele e disparou os primeiros comandos. Em silêncio, Adalberto seguiu para a rua Tabapuã, onde já os esperava Vera Abad, uma senhora de sorriso triste e com alguma dificuldade de locomoção. “Querida, vamos subindo. Veja bem, da próxima vez vou pedir que você nos espere na casa da Talita. Chegar até aqui foi difícil e a sorte foi que o Adalberto conseguiu achar os bons atalhos. Mas o importante é que você esteja bem. Pronta para uma grande noite?” Segundo o combinado, o motorista tocou para a casa de Talita, na rua Mariana Correa, onde foi recebido pelos latidos habituais do imenso cachorro enquanto a dona acenava da porta e o segurava pela coleira, como se em negociação com um ser humano: “Desculpa o atraso, Geltinha, é que minha filhota pediu para irmos ao shopping fazer uma troca. Mal tive tempo de tomar um banho, mas tudo bem”. “Estamos no horário, Talita, a Diana já está à nossa espera logo aqui na Gabriel Monteiro da Silva. Depois quero ver como Adalberto vai cruzar a Rebouças para pegar a Ruth, nossa ruivinha desconsolada. É logo ali, na Fradique Coutinho, quase na rua Pinheiros. Mas me conte de você, menina. Quer dizer que teremos casamento na família? Estou esperando o convite, viu?” Diana entrou falando ao telefone e assim continuaria por um bom tempo, despreocupada em ser simpática. Quando chegaram à casa de Ruth, surpreendentemente jovem para o grupo, o relógio já marcava sete e quarenta e dali tudo ficaria mais fácil. “Pronto, Adalberto, nossa princesa já está a bordo. Hora de irmos pegar a Dora que, como você sabe, mora perto do restaurante onde terminaremos a noite hoje”.

 

VII – A segunda leva

 

Dora aguardava na portaria do simpático prédio da Barão de Capanema e deu um beijo na filha e neta antes de embarcar. Se a intuição não traía Gelta, ela parecia a menos entusiasmada com o programa. Tida como pouco ilustrada por algumas, vinha de um passado boêmio mal resolvido e, como é comum acontecer, virara o protótipo da avó caseira. No começo da alameda Tietê, quase na Melo Alves, embarcou Clara Klug com sua extroversão habitual: “Tenho uma história boa para contar mais tarde. Mas essa só depois de um copo de vinho, viu? E longe dos ouvidos de Adalberto porque até ele ficaria vermelho. Cadê a Fanny? Ah, claro, será a última. Como é o ditado mesmo?” Quando Hilda embarcou, perto do mercado Santa Luzia, na alameda Lorena, uma vaga de sarcasmo pareceu varrer o ambiente e o único homem a bordo ficou desconcertado: “Ora, ora. Pois não é que temos o mesmo motorista?” Gelda pediu que ela afivelasse o cinto porque já passava das vinte horas e Adalberto teria que ser esperto para não perder semáforos. Assim pegariam Sylvia na Padre João Manuel em tempo. Mas esta também foi pontual e trouxe até um pequeno calhamaço para fazer circular entre as amigas: “É uma visão muito boa sobre Mahler e vale a pena que cada uma a leia antes do concerto. Temos luz interna?”. A travessia do eixo da avenida Paulista foi tranquila e, em minutos, já desciam a Angélica. Mirta, tão elegante quanto tristonha, assomou do edifício envidraçado da rua Pernambuco e dali foi um pulo até a Conselheiro Brotero, onde Teresa já as esperava fumando um cigarro, a tabagista remanescente da turma da van. “Agora vamos buscar a rainha”, disse Clara Klug para profundo desprazer de Gelda. Fanny morava num tradicional edifício da avenida Higienópolis e, aparentando um frescor que já faltava a quem embarcara horas antes, se desfez em humor e frivolidade: “Hum, Mahler com Charlô Whatley na mesma noite. Está ficando chique nossa Geltinha, não é, meninas?” Gelta não soube o que dizer: “Estamos nos dando um presente, ora. Se eles podem se dar a todos os prazeres, por que a gente não? Acaso valemos menos?” Todas se fizeram de desentendidas com o desabafo extemporâneo e até Ruth sorriu amarelo.

 

 

VIII – O jantar

 

O restaurateur Charlô Whatley disfarçou com elegância a decepção de ver Gelda Lustig chegar à frente de um grupo menos numeroso do que o esperado. Tendo reservado a grande mesa à esquerda da entrada para doze pessoas, eis que o exército de Gelta parecia ter sofrido pesadas baixas. “Onde estão as outras?”, disse enquanto cumprimentava elegantemente a líder. Em seguida, deu dois beijinhos numa polaca espadaúda de nome Talita; numa ruivinha chamada Ruth que ele já conhecia de algum lugar; numa grisalha em trajes geométricos chamada Clara e na venerada professora Sylvia, de quem já fora aluno de História da Arte. “Ah, querido, sabe como são essas coisas: cada cabeça, uma sentença. A Fanny te mandou um abraço, mas não conseguiu vir. Encontrou duas amigas de trabalho e, sabe como é, tomou outro rumo. O resto está por aí. Cansei, sabe?” Na soleira da porta, Charlô ainda viu D. Dora que, vez por outra, aparecia com Vivi e a neta para o almoço do domingo. “Hoje não vou ficar, meu querido. A Liora está febril e quero cuidar dela”. Certo mesmo é que Vera Abud encontrara uma vizinha de prédio e voltara do concerto direto para o Itaim. Diana sumira desde o primeiro intervalo, o que fora um alívio. Isso porque não desgrudara um minuto do telefone, o que causou uma queixa obtusa de um senhor grisalho. Hilda, aparentemente, vira o ex-marido na companhia de uma amiga e o tempo fechara. Pedira para saltar ainda na rua Augusta e fizera a pé o trajeto até o apartamento da alameda Lorena. “Fiquem com meu magret de pato”, disse ao sair. Quanto a Mirta e Teresa, quase vizinhas, Adalberto disse a Gelta que, já no primeiro intervalo, ambas tinham tomado um Uber e, aparentemente, voltado para Higienópolis. A depressão da primeira contagiara a segunda que, por sua vez, já não estava entusiasmada com a página musical. Pensando bem, depois de uma garrafa de Prosecco, cada uma das sobreviventes concluiu que estava ali quem tinha que estar mesmo. E assim se divertiriam.

 

Epílogo

 

À medida que as línguas se destravavam, Gelda se queixou de que não merecia semelhante desfeita da parte de Fanny. Cumprir o programa até o fim era o mínimo de consideração para com quem se ocupara de todos os detalhes. Por que não chamara as duas amigas para se juntar a elas ao invés de se subtrair do grupo? Talita também desabafou. Ora, ela também não gostara nem um pouco de ver um ex-namorado com a nova companheira, uma conhecida artista plástica húngara. Mas nem por isso perdera o rebolado. Pelo contrário, fora até lá cumprimentar ambos e fixara a magiar nos olhos. Quanto a Clara, afinal contou a piada que estava guardando desde o começo da noite. Falava de um homem que salvara a vida da esposa ao lhe proporcionar o sexo anal que o médico recomendara. Mas que, ao vê-la recuperada, chorou de remorso diante do milagre da cura. Diante da perplexidade da mulher, não se conteve: “É que eu poderia ter salvado a mamãe também”. Diante da risada despudorada de Ruth, ela ainda emendou: “Não é minha não, hein. É do Grossman”. Quanto a Sylvia, comeu com recato e bebeu com moderação. Quando Charlô apareceu para saber se tudo ia bem, lhe pediu a gentileza de um ouvido atento e detalhou todas as sutilezas da regência que, com certeza, tinham escapado ao escrutínio das amigas. Mas que ele, homem fino, saberia apreciar. Adalberto deixou-a em casa e Clara aproveitou a carona. Gelda chamara a filha e o genro para vir se juntar a elas e voltaria com o casal logo mais. Como só restavam as quase vizinhas do Jardim Paulistano e de Pinheiros, já passava da meia-noite quando a van deixou uma Talita exausta em casa. Ao abrir a porta, deparou com o cão que deu mais uma escapada rua afora. Por fim, a caminho da Fradique Coutinho, louco para entregar Ruth em casa e se liberar para fumar um ansiado cigarro na calçada e, quem sabe, até tomar uma cerveja, qual não foi a surpresa quando Ruth lhe pediu para estacionar quase diante do prédio de tijolinhos. Intimou-o então a acompanhá-la ao elevador, e de lá subiram ao décimo andar. No vestíbulo, longe da câmara do circuito interno, a ruivinha balzaquiana enlaçou Adalberto pelo pescoço e, então, beijou-o sofregamente.