João Rego, junho de 2014.

Cena do filme Cinema Paradiso – Giuseppe Tornatori.

Cena do filme Cinema Paradiso – Giuseppe Tornatori.

Meu pai não era muito chegado a investir em geringonças tecnológicas e a TV, para ele, era uma delas. Assim, este moderno equipamento veio chegar na nossa casa algum tempo depois que muitas famílias da Rua 13 de Maio, em Caruaru, já tinham essa coisa mágica que iria mudar a forma de vermos o mundo. Era muito comum ficarmos esticando o pescoçoe “pescando” da calçada os filmes, as primeiras novelas da Rede Tupi e outros programas nas casas dos vizinhos. Não sabíamos que a TV iria acabar com uma época onde os vizinhos saiam para conversar na praça ou colocar as cadeiras na calçada, à noite, para prosear.

Ela, ao mesmo tempo em que nos abria um enorme e fantástico universo de conteúdo, qual um monstro bigbrotheano, iria nos enclausurar em nossas casas.

Lembro, muito claramente, eu e mais outras pessoas – e aí não tinha distinção de idade ou classe social, a única coisa que nos unia era a curiosidade e a enorme cara de pau de não se incomodar em incomodar o vizinho – em pé, na calçada, diante do janelão de Seu Ernesto, assistindo a novela Redenção ou a célebre e lacrimosa o Direto de Nascer. E Seu Ernesto com sua esposa, num gesto de generosa solidariedade para com nós, pobres mortais desprovidos de TV, nos acolhia sem nenhum incômodo. A horda era inconveniente, ficava dando pitacos e só faltava pedir água, café e uma bolachinha. Era como se você estivesse lendo seu jornal com um grupo de pessoas “fungando em seu cangote” para ler junto, sem ter sido convidado

Antes da Trancham chegar lá em casa, passei a usar outro recurso, que era TV da Casa de Mano, filho de seu Luiz Monteiro. Aí era um paraíso: Filmes como Bat Masterson “No velho oeste ele, nasceu, e entre bravos se criou…”; Bonanza, com sua bela música de abertura; O Homem do Rifle e a bem produzida série sobre a segunda guerra mundial, Combate. Como Combate era mais tarde, acabava entre às dez e onze da noite, saía cambaleando de sono para andar uns trezentos metros de calçada que separavam as nossas casas.

Com a compra da TV Trancham —, segundo mamãe, papai, por pirangagem, comprara a marca mais barata do mercado —, ganhei meu canal de acesso àquele fantástico conteúdo que trazia o mundo para dentro de mim. Ficava excitado esperando aparecer aquele sinal de ajuste na tela com a cabeça de um índio, que demorava, às vezes, uns vinte minutos ou mais parado com uma musiquinha que se repetia, e eu ali firme, de olho grudado, só esperando a sessão vespertina começar.

Assisti, embora já fosse fã dos Beatles, a Jovem Guarda nos Domingos à tarde, Roberto Carlos e sua turma: Erasmo, Wanderléia, Leno e Lilian, Martinha, Renato e seus Blue Caps; A Grande Família com Golias e Jô Soares no papel de mordomo, que era o ponto máximo dos domingos à noite. Um grande momento era o Concurso de Miss que galvanizava a cidade, formando, inclusive, torcidas. Foi através do Repórter Esso que recebemos as notícias das mortes de João XXIII e John Kennedy. Jota Silvestre, programa de desafios do conhecimento (A Noivinha da Pavuna!); Flávio Cavalcanti, tirando e botando os óculos com cara de brabo; Você faz o Show, produzido em Recife e apresentado por Fernando Castelão e o show de Rita Pavone em Recife. Momentos como o de Gilberto Gil, tendo os mutantes (ah! Rita Lee) como back vocal, cantando a, até hoje, revolucionária Domingo no Parque, são momentos perenes que inundaram, com intensa emoção, meu universo infantil ávido por novidades.

Emoção mesmo, porém, foi o impacto dos Beatles! Aquela música, o grupo e seu comportamento. Eles vieram para anunciar o fim de uma era e o começo de outra, livres das amarras estéticas e bem comportadas dos anos 40 e 50. Lembro da emoção de, aos treze anos, em 1967, ouvir na minha eletrola portátil Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band com sua misteriosa capa, quase como uma revelação divina, abrindo – como diria Aldous Huxley -, “as portas da minha percepção”. Era o som! Era o som que causava aquele efeito arrebatador em meu espírito, pois não sabia inglês e não entedia as letras.

No final da programação diária da TV – que, por sinal, anunciava o que iria passar no outro dia, com o nome do programa e seu horário rolando na tela-, acho que acabava lá pelas onze e meia da noite, eu ficava assistindo e cochilando até aparecer a cara do índio da TV Jornal do Commercio com a música Acalanto de Dorival Caymmi “E tão tarde a noite já vem, todos dormem a mamãe também…” acordava, muitas vezes, com meu pai, gentilmente me chamando e me conduzindo para a cama.

Com a morte dele, em maio de 1969, de enfarto fulminante, tudo se dissolveu como num filme em que a fita queima – assim como em Cinema Paradiso – e todo aquele universo infantil se esvaneceu num passe de mágica. Marcados pela dor abrupta da perda do pai migramos, sob a liderança da bela e brava Dona Teresa Rego, para o Recife. Hoje, já chegando aos sessenta anos, tenho ainda o hábito-, que por sinal nunca me abandonou-, de ficar à frente da TV cochilando e zapeando, talvez numa tentativa inútil e plena de desamparo infantil, esperando que o pai venha me acordar e, sob sua proteção, ser levado para a cama; ou, quem sabe? Seja uma busca vã de encontrar no meio destes inúmeros canais de TV a cabo, assim, por encanto, um que me leve à infância mágica onde o tempo e o espaço eram como um caderno em branco, nos esperando para escrevermos a felicidade dia após dia.

DITOS & ESCRITOS
João Rego
joaorego.com