Chicago-Skyline at State St. Bridge

Chicago-Skyline at State St. Bridge

Fernando Dourado

A

A tarde já se encaminhava para o fim e o sol ficou benevolente, quase convidativo. Veramundo assuntou o tempo enquanto tomava um chá gelado na varanda da casinha de madeira e achou que tinha alguns minutos de sobra para dar um passeio. Chicago gozaria da claridade estival até às oito, quase nove da noite. Dado o calor abafado do dia, cairia uma tempestade mais tarde, isso era certo. Mas quando começasse a chover e trovejar, lá pelas onze da noite, ele já estaria espichado na cama, lendo Lampedusa ou alguma novidade que tivesse comprado na Barnes & Noble da rua State, onde aparecia vez por outra para garimpar as novidades. Antes de qualquer coisa, o professor era um homem de letras. Se duvidasse, até a família vinha depois. Depois da livraria, tinha por hábito passar na sorveteria Ghirardelli e, geralmente, voltava para casa no trem para Elgin, que saía da Union Station. Lá pela sexta parada, depois da fábrica de chocolates da Mars, saltava em Elmwood Park e caminhava pela rua perpendicular à caixa d´água.

B

Bem que Veramundo gostava desse programa e até mesmo do movimento da estação central na hora do rush. Pois ali estavam todos os ingredientes de um filme americano dos anos 1960. Faltava, é verdade, o barulho dos gazeteiros bradando manchetes para vender vespertinos. Faltava a voz de Sinatra num alto-falante e os milhares de cigarros que as pessoas fumavam – estáticas ou em movimento -, hábito que felizmente ficara para trás. Em favor desses anos dourados – que ele não viveu – há de se ressaltar que os advogados e auditores que então acorriam às plataformas não trocavam os sapatos de cromo por tênis extravagantes, para uso fora do escritório. Onde já se viu manter a indumentária de cavalheiro e, do tornozelo para baixo, trajar um acessório adolescente? Era inadequado, inconcebível na Itália, onde a elegância era um todo, um atributo de respeitabilidade. Mas era a tal história: os ianques não sabiam o que era a vida adulta. Ainda ontem jogavam beisebol; amanhã, estarão de andador. E hoje? América, América.

C

Com ar disposto, o professor decidiu sair pela porta da frente, onde o sobrinho hasteara uma bandeira dos Estados Unidos no terraço. Explicou que era uma tradição do 4 de julho. E, embora a data já tivesse ficado para trás há quase dois meses, resolvera mantê-la. Ora, tudo tem um significado menos óbvio, mas Rota não estava preocupado com isso. Se estava bom para Fabio, estava bom para ele. De saída, recapitulou o endereço. Era fácil. A rua assinalava um ano neutro em sua vida, aquele em que nada de especial acontecera: 74, quando tinha vinte anos e ainda vivia com os pais. Quanto ao número da casa, era só lembrar o aniversário da mulher mais desprezível que tivera, não por acaso a mais divertida: 2803, ou seja, vinte e oito de março. O ene maiúsculo depois dos algarismos devia significar Norte, pois os americanos têm essa obsessão com os pontos cardeais. Mas para quem só ia até o Caputo, o supermercado italiano que ficava a quatro quadras cheias, essa preocupação não deveria existir.

D

De onde vinha tanto zelo e cuidado? Fabio, o anfitrião, achava que quem não estivesse munido das geringonças digitais de que dependia, fatalmente se desorientaria nas ruas. Como acontecia com toda a geração dele, aliás. Tinham perdido a intuição, isso sim. Já Veramundo tinha senso de direção raro. Nos dois fins de semana anuais que dedicava à caça de perdiz, guiava o grupo de amigos que, animados pela grappa, discutiam sobre as trilhas mais confiáveis. Ficavam igual a certo comandante de avião sobre quem lera. Pois bem, o homem se perdeu nas alturas da selva e foi obrigado a pousar sobre a copa das árvores. Tudo isso porque se distraíra e, para salvar o pescoço, se negou a declarar que não sabia onde estava. Daí veio a pane seca. Não, isso jamais aconteceria com ele. Pois fosse na floresta amazônica, na Noruega ou nas Ilhas Salomão, o crepúsculo vai sempre resplandecer a oeste. Ora, quem voa do sul para o norte à tarde, tem que saber que o sol estará à esquerda. E Deus nos livre do dia em que assim não for.

E

Embora tenham sido muitas as vezes que Veramundo estivera ali, agora se perguntava a razão de tanto cuidado ao sair. Será por que não dormira bem a última noite? Ou estaria perdendo a confiança na memória gigantesca? Não, isso nunca. Melhor admitir a perda da virilidade do que a da memória. A primeira já lhe dera alegrias e tudo o que prometia doravante era uma satisfação esporádica, esparsa, literalmente a conta-gotas. A segunda, não. Era o grande estuário da vida. A memória era a plataforma de onde reescreveria o passado – podendo até publicar um opúsculo e dele encomendar uma tiragem para os amigos -; a partir dela, observaria o presente e teria munição para cotejar com o futuro, quando o corpo entrevasse e ele não pudesse mais sair dos limites da Lombardia. Sem memória, se esvairia a dignidade de um homem, mesmo que se chame Rota.  Mas tudo isso era para depois e havia de se confiar nos progressos da ciência e na disciplina de alguém que sempre se levantou da mesa com um mínimo de fome.

F

Fome, aliás, não foi feita para ser saciada. O bom vinho tampouco fora feito para regar bebedeiras; só para o prazer. Ocupar-se todo dia era vital – isso já ouvia do pai quando criança. Assim, apesar de padecer das pequenas dores de quem passara dos sessenta anos, o Professor estava longe de ser uma alma trôpega. Quase não dependia de carro, ao contrário dos americanos. O sobrinho e sua jovem esposa, uma polaca espadaúda da Cracóvia, cuja família vivia espalhada nos subúrbios a oeste de Chicago, iam de automóvel, em pleno verão, visitar vizinhos. É claro, eles tinham um dos piores invernos daquela parte do mundo, mas é da vida adulta mudar de hábitos de acordo com a estação. Isso o chocava. Veramundo, porém, não queria passar por chato e não se metia. Um hóspede tem que saber ficar calado e esperar ser perguntado para dizer o que acha. Ele não era, afinal, um sulista histriônico. A genealogia de sua estirpe, aliás, vinha de longe e antecedia a descoberta da América. De resto, mens sana in corpore sano.

G

Gostar de encarar as coisas de frente, é atributo dos homens iluminados. Se não dependia de navegadores de celular, de companhia conjugal – já ficara para trás – ou de bengala, o professor tampouco se perdia nos labirintos do idioma. Pelo contrário, falava inglês muito bem. Melhor do que a quase totalidade dos moradores daquele bairro de imigrantes. E, contrariamente ao que acontecia com o italiano natal, pelo menos em inglês não era traído pelos vestígios do dialeto bergamasco, brincava. Assim, ao virar a terceira esquina, na altura da avenida Harlem, só como reforço à geolocalização, ele ainda se voltou para a rua George e fixou bem uma alegre bandeira ucraniana, hasteada diante de uma das milhares de casinhas. O pavilhão era inconfundível e ganhara o mundo desde que os russos tinham anexado a Criméia: na grande faixa amarela de baixo, os trigais. Em cima, uma barra do mesmo tamanho de cor azul celeste, representando o céu. Madonna mia e pensar que os ventos de Chernobyl trouxeram radiação para a Itália.

H

Há de se reconhecer que Veramundo não desgostava daquele lugar de classe média baixa, a seu modo também cinematográfico. Não era Picasso que dizia que o bom era ser rico e viver como pobre? Vez por outra aparecia no jardim um veadinho desavisado e ele se divertia com os esquilos que, indiferentes à presença humana, escalavam os troncos em círculo. Fabio, que tinha o nome do avô, pai de Veramundo, errara muito na juventude. Mas quem não erra? Quem o mandara viver fora de casa e se meter em aventuras? Não tinha ele, o professor Rota, uma parcela de culpa? Não fora dele a responsabilidade de encaminhar o rapaz na vida, depois da morte trágica do irmão Rosário? Mas isso era passado. Acaso o jovem não estava bem agora, com sua mulherzinha polonesa, bem distante dos odiosos meridionais? Que ficasse em paz, pois. Um dia, Veramundo lhe legaria um bom dinheiro. O bastante para chegar ao Alasca, se alguém se metesse em seu caminho e quisesse reabrir mais um capítulo dos eternos acertos de contas.

I

Interessado em tudo que tivesse o toque da mão humana, o espírito peninsular do professor ficava perplexo com o mau gosto das lojas. Como faltava apuro estético aos americanos. Apesar disso, tinham operado um prodígio de engenharia social. Como disseminar um padrão de valores tão uniforme junto a centenas de milhões de pessoas? E como tê-las focadas no amanhã, seguras de que colherão o fruto do que plantarem hoje? Um traço, contudo, o desconcertava. Ninguém olhava para o passado e todos eram iguais diante da lei. A dominicana do café o recebia com um sorriso pois sabia que ele lhe deixaria três dólares de gorjeta – mais do que o valor do expresso sofrível. O que chocava Veramundo, contudo, era que ela jamais demonstrou a curiosidade de saber mais sobre ele. Afinal, os Rota não eram uma família qualquer. E o Professor chegara à idade em forma. Aliás, se o tomavam por sósia de Eco, ele não achava ruim, até pelo apreço intelectual que tinha por Umberto. Mas sem a barriga bidone do amigo.

J

Juntinhas umas às outras, as casas de comércio se alternavam à medida que o passeio se desdobrava. Academia de ginástica, funilaria, quiromante, lanchonete, taqueria, movelaria, barbearia, academia de artes marciais, drenagem linfática, manicure e creche. Tudo de gosto duvidoso, é verdade, mas funcional. Os edifícios eram feitos para durar quinze anos, e não para varar o milênio, como na Itália. Curioso que não passava por ali nenhum senhor distinto, que merecesse uma vênia respeitosa até de estranhos. Como acontecia com ele, Veramundo, quando saía à rua. Impressionava-o também como todo mundo – tirante quem o establishment qualificava de perdedores – parecia preocupado em dar a cada dia um passo adiante. Segundo Fabio, quem não se comportasse assim, era ejetado do sistema. A ambição aqui é mais importante do que lealdade ou cabelos grisalhos. E quem não a tivesse, estava condenado a vender sangue pela manhã para pagar um almoço gorduroso, único prazer dos negros em especial.

K

Ketchup, mostarda, molho Worcestershire, sódio à vontade, maionese, shoyu e corantes eram complementos indispensáveis à cozinha típica americana. Mas Fabio dissera que não era bem assim. O chamado wasp – white, anglo-saxon, protestant -, o estamento que manda no país, este não come tão errado já há muito tempo. A dieta rica em açúcares e carboidratos é própria dos mais pobres, aqueles que valorizam a saciedade em detrimento do valor nutritivo, e que se entediam mortalmente com as frutas, verduras e saladas. Nessa categoria se enquadram os hispânicos, os negros e imigrantes de baixa renda. Jamais, advertiu, se achasse que os atores e atrizes de Hollywood se mantinham à base de tacos, burritos e carne processada. Pelo contrário, aquele país era o principal consumidor de tudo o que mundo tivesse de exclusivo. No Whole Foods, onde se abastecia esporadicamente, as mulheres eram esguias e compravam comida orgânica. Mas esta custava o dobro do preço das grandes superfícies dos subúrbios.

L

Lá pelo grande cruzamento da Harlem, antes de chegar ao supermercado Caputo, Rota estacou diante de uma cena banal. Um homem saía de um salão escuro, onde se via um grande forno e um atendente mexicano. O freguês era enorme. Sobraçava, afogueado, dois discos do diâmetro de sua cintura do que ali era chamado de pizza: uma vasta superfície de massa encoberta por ingredientes industrializados. Do molho de tomate às azeitonas; da linguiça aos funghi. Nada que não mate um paquiderme, enfim. O homem resfolegava, trajava bermudas frouxas, meias de compressão até os joelhos, uma camisa desbotada onde se lia Wrigley Field e cada passo lhe custava a vida. Nem que quisesse, poderia usar cadeira de rodas. O carro fazia às vezes dela. Veramundo sorriu apesar do alarido do buzinaço. Como podia um homem se deixar levar por tamanho desleixo? O pior é que eles já eram milhões. Lembrava-lhe o gordo do restaurante de Stradello Nava, em Modena. Mas só no diâmetro, jamais na postura.

M

Mobilizado pelo susto, o professor Rota percebeu que estava irritando os motoristas com a contemplação. Embora estivesse na calçada, e ainda não tivesse colocado um pé na faixa, os carros paravam em antecipação à intenção do pedestre. Vendo que o sujeito não se mexia, eles se desesperavam ao ver o semáforo voltar ao vermelho. Por que tudo isso? Ora, porque um velho se distraía na observação de um obeso mórbido. Depois de novo concerto de buzinas, porém um pouco envergonhado, ele atravessou. Isso porque não podia andar devagar a ponto de parecer ignorar os apressados; mas tampouco podia correr e arriscar a dignidade. Teve por um átimo a sensação de que já vivera aquela cena. E sentiu um alheamento à impessoalidade daquela geografia. O que fazia ali? Alguém gritou: se gostou do pneu de trator, leve-o para casa. Aquela gente não sabia o que era caminhar. Algum dia ainda praticaria tiro ao alvo nos poucos pedestres que restassem.  Essa guerra não sairia nos jornais e talvez já tivesse começado.

N

Não, os gritos não o intimidavam. Dante, sim, o comovia. Era isso que dizia aos alunos de filologia por ocasião de leituras que gostava de promover como programa extra-curricular. O que era aquele motorista grosseiro do Novo Mundo diante dos tesouros que abrigava a Itália? Chegando ao destino, Veramundo deambulou pelos corredores, deixando que o ar gelado neutralizasse o calor que trouxera da rua, mas evitando os congeladores polares. Já não lembrava ao certo o que pretendia comprar para o sobrinho, mas ficou bom tempo contemplando o balcão de frios onde nada parecia tão atraente quanto nas casas italianas. As opções não chegavam aos pés do salumificio Pasquini & Brusiani, onde encomendava uma mortadela aromática. Entrementes, examinava rótulos e entreouvia conversas entre pessoas que não sabia definir se eram amigas ou se tinham se avistado por acaso, tamanha a previsibilidade do script. Talvez vissem muita televisão; o roteiro era factual, apesar do tom pretensamente alegre.

O

Odiava intrometidos, mas adorava ouvir conversa alheia. Afinal, era um cientista, não um fuxiqueiro. Hallo, Bob. Hallo, Jim. How are you doing? Fine, thank you. How about yourself? I am ok. Good, I am glad to hear that. Glad to see you too. See you around, then. See you. Ou então uma versão mais complexa, diga-se mais dramática: Hi Jerry. How are you? Hey, it´s been a long time. Yeah, are you sure you know who I am? Oh, hold on a second. You´re Astrid, aren´t you? Oh, my gosh. How have you been? I´m all right, still alive, as you see. You look awesome, Astrid. Can´t say the same about you, sorry. So, shopping for the weekend? Uh-huh. Great to see you, anyway. Happy to see you too. Take care. I certainly will. Greetings to Martha, by the way. Too late, sorry. Oh, my God. Yeah, she had a massive stroke two years ago and passed. Oh, she was sweet. Take care of yourself and watch your weight. Yeap, I will. Os limites de minha linguagem assinalam os limites de meu mundo. De quem era isso?

P

Precisava reconhecer que, na Itália de hoje, a conversa já não era o que costumava ser – viva, policrômica. Mesmo assim, era um exercício de musicalidade e sensibilidade táctil em que é fundamental saber segurar o interlocutor pelo braço ou, sendo este de cerimônia, gesticular com atitude e tocá-lo com a ponta dos dedos. Mesmo os mais tímidos, intuíam onde colocar a ênfase. Rota era da terra de Arlequim, sabia do que falava. Nos Estados Unidos, contudo, a comunicação era de uma simpatia proforma. Apesar de o diálogo entre jovens mal humorados da Itália estar cada dia mais parecido com aquele formato. A tese do professor era que as mães dos anos 80 haviam criado delinquentes ocos. Culpadas por deixar o lar para trabalhar, os filhos ficaram à deriva. Para compensar, estragaram moças e rapazes lhes fazendo as vontades para compensar as dores de consciência. Estes, por sua vez, já começavam a destruir a geração seguinte. Ainda bem que uma hora se morre e não se acompanha essa deterioração em cascata.

Q

Quando se viu de mãos vazias e cabeça saturada de tantas divagações, Rota se apercebeu que saíra do Caputo e, para sua surpresa, os arcos dourados da lanchonete ao lado da linha férrea estavam iluminados. Anoitecera, pois. Tudo o que não queria era caminhar pelas ruas escuras. Quem garantia que os esquilinhos adoráveis não se transformavam em criaturas sedentas de sangue? O que era bucólico com a luz do dia – imagens da Nossa Senhora Negra de Czestochowa no pórtico dos poloneses – parecia sinistro à noite e ele já vivera a experiência de passar pelas ruas e ver os cortinados se mexendo, um par de olhos azuis a lhe estudar as intenções. Deus o livrasse de pisar no jardim errado. Os americanos tinham armas em casa e o direito de receber à bala os intrusos. Explicações, só na autópsia. Como a cancela estava baixada para a passagem do trem, Rota margeou a rua da linha férrea. Isso porque algumas composições levavam cinco minutos para passar rumo ao Canadá. E ele tinha pressa. O trem apitou, dramático.

R

Rememorando o artifício mnemônico para se localizar, Rota entrou e saiu de algumas vias, mas procurou em vão a bandeira ucraniana de referência. Quando embicou na rua que achava ser a certa, viu não uma, mas três pavilhões alvirrubros. Abordou uma senhora gentil. Ela suspirou desolada e disse que a rua 47 estava bem longe. Não, senhora, tenho certeza de que estou perto de casa. Agora precisava pensar: será que era a rua 79? Não se dissera que o ano marcava a morte do irmão? O que quer que fosse, ficava no bloco do número 70, tentou se convencer. Veja bem, ela alertou, há de atentar para ver se é avenue, street ou mesmo court. Apontando o céu, disse que logo choveria e que o serviço de meteorologia lhe passara pelo celular que havia risco moderado de inundação na área. O professor começou a hiperventilar e a respiração ficou curta. Agradeceu, querendo mostrar confiança. Melhor voltar para o Caputo e de lá refazer o roteiro, pensou. Mas um hispânico disse que o mercado agora já estava longe.

S

Sedento e desorientado, Veramundo acelerou o passo, mas a chuva anunciada afinal chegou. Àquela altura, já não tinha a menor ideia de há quanto tempo estava perdido. Uma coisa era certa: não havia táxi nessa parte do mundo. O sobrinho bem que dissera que agora existe um comando de celular que aciona carros particulares nas redondezas. Mas quando ele achou que precisaria dessas coisas? Pensou em Ivana, o que estaria fazendo agora? Será que o imaginava naquele momento perdido na América, ensopado até os ossos, num desespero tão agudo quanto brusco e que não sabia nem como qualificar? Ademais, como acabaria o suplício? Àquela altura, mesmo que alguém se dispusesse a levá-lo até a porta de casa, o que ele diria ao motorista? Que fosse até o chalé de Fabio Rota? O desespero tomou conta de Veramundo ao passar por um curso d´água junto a um parque que não lhe trazia a mais vaga lembrança. Será que ia chorar? Não, isso não. Ou estava mais perto de sorrir da enrascada em que se metera? Indeciso, urinou.

T

Tiritando de frio, os trajes encharcados começavam a pesar. Encostou-se numa mureta do que lhe pareceu um depósito. Fizera o serviço militar nas Dolomitas e enfrentara banhos piores do que aquele. O oficial queria que fizesse carreira, era homem de disciplina e coragem. Mas como desistir de uma vida organizada em torno da construção intelectual? Dante jamais o teria perdoado se tivesse abraçado uma carreira de armas. Ivana talvez o aplaudisse de uniforme. Tinha noção das horas? O que importava? Perdera o medo, estava mais curioso do que apavorado. Enredado no labirinto de ruas assemelhadas, ofuscado pelos faróis das centenas de carros enormes que trafegavam no subúrbio, Veramundo Rota, professor de filologia e exímio caçador de perdiz, agora se sentia como um alvo minúsculo no espaço sideral, onde vagavam corpos em trajetória errática, passivos de colisão a qualquer momento. Onde estava? Afinal, comprara a soppressata que tinha ido buscar para o casal anfitrião? Ou não?

U

Uma soppressata? Ou tivera pudor de não levar um símbolo meridional para Fabio – embora soubesse que ele adorava comê-la quando mais jovem? Afinal era a iguaria daquela província que lhe deixara marcas dolorosas. Veramundo não sabia o que fizera desde que saíra do mercado. Chegara mesmo a ir até lá? Lembra que Bozena dissera que nada se comparava às salsichas e salames poloneses. Ele pensara em desforrar o sobrinho com uma soppressata que sabia estar à venda no Caputo. O professor apalpou os bolsos, mas nada achou. Seguiu caminho. As pernas começavam a pesar, à medida que a adrenalina caía e o esforço físico se mostrava vão, desolador. Tropeçou uma vez, quase caiu. Desmaiaria? O apito do trem o trouxe de volta à realidade. Como eles eram estridentes e dramáticos. Sem entender por quê, lhe veio à mente uma tarde de sol no embarcadouro de Livorno com Ivana; a saída para o ar salino e a escolta da nau embandeirada. Os trens apitam como corvetas. Mas sem o mar aberto para propagar o lamento.

V

Viu então uma luz mais adiante e se animou a ir até ela. Pelo menos havia algum movimento de carro no facho do halo frio do estacionamento alagado. O que seria? Sem o cuidado devido para atravessar na faixa, Veramundo voltou a ouvir xingamentos e buzinadas, mas não se incomodou. Queria chegar lá. Será que era uma dessas lojas de conveniência? Ou era um restaurante onde, após ter retomado os espíritos, poderia resgatar na memória as coordenadas do sobrinho e lhe pedir que viesse buscá-lo, ou mesmo encomendar um táxi? Por que sumiu, zio? Diria que saíra para passear e resolvera jantar fora. Não tinha cara de restaurante, mas entrou. Uma placa indicava “Room 3 – Diva Heymer”. Devia ser um salão de festa. Práticos, esses americanos criam espaços para eventos e os aniversariantes não se incomodam de receber os convidados num lugar meio impessoal, pensou. Pessoas endomingadas olhavam-no com atenção detida e um rapaz de barba e pequeno barrete veio perguntar se podia ajudá-lo. Sim, é claro, podia.

W

Washington fora a cidade que achara a mais escura das americanas de porte. San Francisco – a matriz da sorveteria Ghirardelli -, era a mais bela e Veramundo fora muito feliz no bairro de Nob Hill com aquela mulher desnaturada. Los Angeles era uma colagem de condados que apavorava qualquer motorista experiente, tantas eram as encruzilhadas imensas que, a um erro, levavam uma família a distantes pontos de retorno. Mas tinha lugares bonitos, especialmente na costa. Nova York fora durante anos sua favorita e, quando era conferencista ativo, ia com frequência à cidade onde se hospedava no apartamento de Pietro Argan – uma preciosidade encravada em Brooklyn Heights -, onde ele vivia com um amigo tailandês que, de tanto tentar, já se portava como verdadeira dama oriental. Detestara Atlanta e um homem de sua estirpe não era de frequentar Miami. Com a ida de Fabio para Chicago, contudo, conheceu a cidade-síntese, a mais amada. Só que nunca a vira tão escura e sinistra quanto naquela noite. Mamma mia.

X

Xenófobos, continuou, são pessoas nocivas ao convívio humano. O rapaz barbudinho ouviu sua longa preleção sobre a América. Quem seria aquele homem que falava com sotaque ítalo-britânico? Com tato, levou Veramundo ao banheiro. O inconveniente é que não tinha o copo de vinho tinto que o visitante inesperado pedira. Mas trouxe-lhe água e se identificou como médico. Começou a lhe fazer perguntas enquanto o afastava do recinto da festa da jovem Diva e iam a uma espécie de sala de espera. Disse que assim teriam mais privacidade, mas o professor Rota simplesmente não conseguia responder a algumas perguntas que lhe levantava o jovem sisudo em cujo ombro ele fazia um afago de amizade. Não se queixava do anfitrião; pena que não tivesse tempo de ouvir as respostas elaboradas que Veramundo tinha a dar. Nesse ponto, era mais um americano que acha que os mais velhos nada sabem e que o mundo lhe pertence. Não tardou para que a recepcionista carrancuda voltasse com notícias. Tinham localizado Fabio.

Y

Yourcenar, Broch, Schulz, Dante e Kafka constituíam o quinteto de ouro da literatura do velho mundo, costumava dizer. Enquanto a festa não esquentava, o clínico o ouvia com paciência e praticamente o obrigara a tirar o paletó encharcado, a camisa de algodão e lhe providenciara uma toalha felpuda com que lhe enrolou no tórax. Festa fantasia? Eram bem gentis esses parentes de Diva e, fosse ela quem fosse, ele faria questão de dizer isso quando a encontrasse logo mais. Qualquer família se regozija em saber que os seus são pessoas virtuosas, capazes de gestos que emanem do coração. Ele se chamava Benjamim, mas pedia para ser chamado de Ben – um traço da praticidade americana. Ele não gostava dessa tradição que reduzia até presidentes a jogadores de basquete: Jimmy, Bill, Jack, Dick. Profanava até a dignidade da função, pensando bem. Enquanto Ben lhe friccionava as costas e assentia com empatia, era só Veramundo quem falava. O homem erudito parecia em transe, talvez em choque, mas o surto passaria.

Z

Zio, zio Veramundo, Dio mio! Veramundo espirrou e o sobrinho entrou com expressão fechada e distribuindo desculpas aos familiares de Diva Heymer, fosse ela quem fosse. Quantos anos ela fazia, perguntou Veramundo a título de gentileza. Levando o tio pelos ombros, o acomodou no carro e o professor não teve tempo para explicações. Fabio tinha uma expressão amuada enquanto falava com a esposa ao telefone e dizia que agora estava tudo bem. Não era a primeira vez nem seria a última. Sim, iam direto para casa. No painel, o relógio marcava uma e meia da manhã. Na falta do que dizer diante do rosto contrafeito do sobrinho, recitou sua frase favorita na língua que o rapaz hoje mais bem entendia: How can those who live in the light of day possibly comprehend the depths of night? OK, zio, chega de Nietzsche. Hoje vou lhe dar os remédios eu mesmo, disse enquanto dava ré. Veramundo ainda leu o letreiro sem adornos onde, sobre fundo branco, sobressaíam as letras garrafais: BELMONT FUNERAL HOME. Então emudeceu.

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