Sérgio C. Buarque >

A controvérsia em torno do aborto tem sido dominada pela polarização entre as igrejas e o movimento feminista, quase sempre com uma grande simplificação da problemática e das implicações éticas, sociais e de saúde pública. A legislação brasileira aceita o aborto em determinadas condições excepcionais, que vão do estupro a eventuais deformações do feto, passando pelo risco de vida comprovado da mãe na gestação, sempre com autorização judicial. Com proibição ou não, o aborto tem sido feito em grande escala e em condições precárias, sem cuidados médicos e em clínicas despreparadas e irregulares, com alto risco para a vida e a saúde da mulher.

Quando o casal (não apenas a mulher) não deseja ou simplesmente entende que não pode ter filhos (razões financeiras, psicológicas ou estritamente familiares), arrisca o aborto ilegal e arriscado ou, ao contrário, joga no mundo filhos indesejados ou mesmo rejeitados, com os seus prováveis traumas e dificuldades psicológicas e carências afetivas que podem levar a desajustes sociais (crianças deixadas em lixões e córregos, crianças abandonadas à espera de adoção, soltas na rua e entregues à violência e às drogas). Entre o direito à vida latente no embrião e o direito a uma vida digna da futura criança, muitos pais preferem interromper a gestação se antecipando à condenação do filho às dificuldades materiais, psicológicas, afetivas e sociais. Que, numa escala social contribui para a desagregação social, violência e propagação de drogas.

Entretanto, a defesa do aborto não pode simplificar nem minimizar as implicações éticas e sociais da interrupção forçada e intencional da gravidez que contem um processo latente de vida em formação. O embrião, claro, não é uma pessoa, mas é sim um ser vivo. Desde a sua concepção, o feto contêm todos os elementos genéticos que, num ciclo definido de evolução própria, vai completar a sua formação como um ser pronto para a vida humana. O embrião é o gérmen da vida em gestação e evolução, que sairá para o mundo depois de um tempo previsível se não for esmagado ou extraído. De tal modo que, não havendo uma intervenção externa – o aborto – ele tem uma trajetória de vida que se diferencia apenas pelo fato de ser parasitário e dependente da interação com o corpo da mãe. O aborto constitui, portanto, a interrupção traumática de um ciclo vital e não uma simples operação para extração de um tumor ou um apêndice.

O fato de o embrião ser totalmente dependente do alimento materno não subtrai a sua qualidade própria de evolução natural na formação de um ser vivo, da mesma forma que a criança recém-nascida não sobrevive sem os cuidados e os alimentos externos com a única vantagem de que pode receber estes cuidados de outras pessoas. Mas, em certo aspecto, o recém-nascido é mais frágil e vulnerável que o feto porque este extrai diretamente o suprimento do corpo materno sem necessidade de cuidados e providências adicionais. Quase se poderia dizer que o aborto é uma violência semelhante ao abandono de uma criança recém-nascida que, até o primeiro ano de vida, não consegue sobreviver sozinha. E o que dizer, no outro extremo, de tantos enfermos, especialmente idosos, mantidos em estado de morbidez alimentados e estimulados por aparelhos sem os quais não terão mais vida? Desligar os aparelhos representa interromper uma vida mesmo em estado semivegetativo que, como sabem todos os que já experimentaram situações parecidas, é uma decisão dolorosa mas, muitas vezes, correta. A diferença entre o embrião e os enfermos mantidos com aparelhos é que a vida embrionária se fará criança e gente se deixarmos a natureza trabalhar, enquanto que os enfermos terminais respiram e batem o coração apesar da natureza já ter falhado.

Por outro lado, a decisão de fazer um aborto não pode ser um direito restrito e exclusivo da mulher, com o argumento de que é a gestante quem carrega e alimenta o embrião no seu próprio corpo. Ora, esta vida em gestação no seu ventre não foi gerada por ela sozinha, mas pelo encontro e fusão do óvulo – da mulher – com o espermatozoide – do homem. A mulher tem direito sobre o seu corpo, claro, mas não deveria ter poder para decidir solitariamente pelo destino do produto gerado em comum com um homem que escolheu para o ato sexual (a não ser, mais uma vez, se ela não escolheu e foi violentada). Se a mulher quer ter o filho mesmo com a resistência do pai, ela terá e ninguém pode intervir sobre ela para realização do aborto por constituir uma violência sobre seu corpo; mas o oposto deve ser considerado, mesmo sendo, normalmente, muito raro: ou seja, contra a vontade da mãe, o pai deseja que a concepção se complete com o nascimento do filho que está se desenvolvendo na barriga da mulher. A mãe pode decidir e realizar o aborto legal ignorando o desejo do pai, também criador do feto, pelo simples fato do ser em formação ocupar o seu ventre e se alimentar dos seus nutrientes?

Parece razoável considerar a necessidade de um entendimento e negociação entre as partes de modo que a decisão de ter o filho ou fazer o aborto seja acordada sempre que se trate de um casal com responsabilidades partilhadas na gravidez. E que, no caso de um pai desejoso de ter o filho contra a vontade da mãe, esta aceite manter a gravidez desde que o homem assuma completamente a responsabilidade futura pelo filho. Da mesma forma que a mulher decide sozinha ter o filho, ela pode cobrar que o pai assuma responsabilidades, mesmo que ele não tenha sido consultado ou tenha mesmo rejeitado a paternidade. No fundo, o que está consagrado hoje é que o homem tem apenas obrigações, mesmo se não quiser ser pai, e nenhum direito, mesmo que deseje ter o filho gerado pela sua companheira.

Apesar de toda esta argumentação, parece óbvio que a mulher, não tendo o direito total e solitário pela sua gravidez, tem sim o poder de decidir e de agir a despeito de opiniões diferentes da outra parte da reprodução. Começa que ela detém a informação sobre o verdadeiro parceiro, podendo negar ou disfarçar a contribuição do homem (embora este monopólio da informação seja atualmente minimizado pela ciência através de análise de DNA). Além do mais, se ela desejar forçar um aborto, mesmo sem recursos médicos e contra a vontade do pai, nada poderá impedir exceto a repreensão moral do companheiro com quem tenha gerado o embrião.

Considerando a análise acima, o mais razoável parece ser, antes de tudo, um cuidado nas relações sexuais para evitar uma gravidez indesejada que obriga a decisões tão delicadas e, normalmente, muito traumáticas. Os meios existem e são conhecidos para evitar a gravidez sem abandonar o prazer e a emocionante entrega humana no encontro sexual.